O Estado de S. Paulo
Livro afirma que o presidencialismo de
coalizão brasileiro praticamente inviabiliza reformas
Numa cena clássica da série The Newsroom, o
âncora de TV Will McAvoy resume os Estados Unidos em números. “Somos líderes
apenas em três categorias: presidiários per capita, gastos militares e
porcentagem da população que acredita em anjos”, diz McAvoy em debate numa
universidade. O tom provocativo assusta a aluna que havia perguntado de forma
singela: “Por que somos o melhor país do mundo?”
E se McAvoy, personagem inesquecível interpretado por Jeff Daniels, fosse instado a falar do Brasil? Poderia responder: “É o quinto país do mundo em superfície e o oitavo em população, mas não está entre as dez maiores economias do mundo. Na América do Sul representa a metade de tudo: superfície, população e economia. Destaca-se por sua maravilhosa cultura e estatísticas ruins: apenas 1% do comércio internacional e 15% dos homicídios globais”.
Esses dados estão num dos verbetes sobre o
Brasil incluídos no Dicionário Arbitrário de Política, de Andrés Malamud, um
dos principais cientistas políticos argentinos. Ele é presença constante na
mídia de seu país pelo poder de síntese, clareza de pensamento e humor afiado –
qualidades que transporta para o livro, recém-lançado na Argentina e que pode
ser comprado pela internet.
No livro, Malamud diz que o
presidencialismo de coalizão brasileiro não impede que o
País seja governável, mas praticamente
inviabiliza reformas. “Brasil, Argentina, México e EUA são federações de Estados
com sistema presidencialista, mas só o Brasil combina isso com uma alta
fragmentação partidária, o que exige do presidente poder de negociação de
primeiro-ministro europeu”, disse Malamud em entrevista ao minipodcast da
semana. No livro, ele resume nosso dilema numa frase: o orçamento brasileiro é
usado mais para pagar políticos do que para financiar políticas.
Os insights sobre o Brasil, factuais como a
fala de McAvoy, nos fazem pensar que poderíamos estar falando sobre modelos de
desenvolvimento, papel do Brasil no mundo e em como tornar o País mais
“reformável”. Em vez disso, discutimos bobagens como o risco de Lula
transformar o Brasil numa “nação comunista”.
Novamente Malamud vem em nosso socorro –
com fatos. “Nem com Lula nem com Dilma o Brasil constituiu governos de
esquerda: tratava-se de um partido de esquerda liderando governos de
fragmentos”, diz num verbete. Em outro, define comunismo: “Sistema de ideias e
governo que desconfia do indivíduo. Sua implementação produziu milhares de
mortos. Insulto favorito de fascistas e ignorantes”.
O debate público brasileiro tem muito a
ganhar se superar a ignorância e abraçar os fatos.
*Escritor, pesquisador do Observatório da Qualidade
da Democracia na Universidade de Lisboa e professor da Faap
Correto.
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