Correio Braziliense
O ex-presidente parece conformado com a sua
própria situação política, diante da iminente condenação pelo TSE por atentar
contra a realização das eleições presidenciais do ano passado
Os livros mais lidos nas bibliotecas das
cadeias brasileiras são clássicos da literatura. O campeão é Crime e Castigo,
do escritor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881), por motivos óbvios. Fazem
parte desse ranking Incidente em Antares, do gaúcho Érico Veríssimo
(1905-1975); Sagarana e Grande Sertão: Veredas, do mineiro Guimarães Rosa
(1908-1967); e Dom Casmurro, do carioca Machado de Assis (1839-1908), considerado
um clássico da literatura universal. A razão é simples: com base na legislação
penal, cada livro resenhado vale por quatro dias de cadeia. Apesar de um certo
oportunismo, muitos presos acabam adquirindo o saudável hábito da leitura.
Poderia haver preferência pelos livros de autoajuda. Sem preconceito, Poder do Hábito (Charles Duhigg) ajudaria a recuperar estelionatários, traficantes, homofóbicos, racistas e até homicidas, concomitante ao cumprimento das penas, é claro. Esse livro explica a formação dos hábitos e comportamentos e como mudá-los. Há outros: Hábitos Atômicos (James Clear), pequeno manual para transformação de hábitos; Mude seus horários, mude sua vida (Suhas Kshirsagar), ajuda a sintonizar o relógio biológico com os afazeres do dia a dia; e Pequenas Atitudes, Grandes Mudanças (Caroline R. Arnold), decisões que criam novas rotinas.
Mas a preferência nas cadeias por Crime e
Castigo, e não por livros de autoajuda, tem explicação: o sentimento de culpa.
O protagonista é Raskólnikov, um ex-aluno brilhante, que por razões econômicas
não pode mais estudar e tenta se manter em São Petersburgo. Quando o seu
desespero aumenta, surge a ideia de matar a velha agiota Alyona Ivanovna, que
lhe aluga um quarto e ameaça colocá-lo para fora, se não lhe pagar o que deve.
Seus pertences mais valiosos foram
entregues como pagamentos de suas dívidas. Não sobrou nada. O que fazer?
Raskólnikov dividia os indivíduos em ordinários e extraordinários, numa
tentativa de explicar a quebra das regras em prol do avanço humano. Seguindo
esse preceito, Raskólnikov planeja e executa o crime. Flagrado pela sobrinha da
vítima, comete mais um assassinato. Rouba joias, mas não chega a se beneficiar
disso; com medo de ser descoberto, as esconde.
Para ele, não houve crime, não matou um ser
humano, matou um “princípio”. No entanto, aos poucos, cai numa ciranda de culpa
e insanidade. O gatilho é um maluco inocente, em busca de notoriedade e
realização, que assume o crime. Até então insuspeito, Raskólnikov é tomado de
remorsos, influenciado pela descrição da ressurreição de Lázaro no Novo
Testamento. Acaba por confessar o crime. O peso da própria consciência e as
suspeitas de parentes foram insuportáveis. Não era uma daquelas pessoas que
julgava extraordinárias, porque seriam capazes de tudo sem culpa alguma. Graças
à confissão, ao arrependimento e à falta de antecedentes criminais, porém, sua
pena é reduzida a oito anos em uma cadeia na Sibéria.
Conformismo
Curiosamente, Recordações da Casa dos
Mortos, o livro de Dostoiévski que fala da cadeia, não faz o mesmo sucesso nos
presídios. Seria como falar de corda em casa de enforcado. Ele havia passado
quatro anos encarcerado na Sibéria, dos 10 em que esteve no exílio. Como os
prisioneiros eram proibidos de escrever memórias e relatos, Dostoiévski
disfarçou a obra como ficção, dizendo-a ser o diário de um homem preso por
assassinar a esposa em crise de ciúmes.
Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro
estão inconformados com a sua abulia, isto é, a falta de interesse pela sua
própria situação política, diante da iminente condenação pelo Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), por atentar contra a realização das eleições presidenciais do
ano passado. Segundo eles, o ex-presidente deveria esbravejar e mobilizar seus
apoiadores. Grosso modo, a abulia se traduz pela falta de atividade e a
ausência de respostas emocionais.
Quando uma pessoa sofre de abulia, perde a
vontade de agir, é tomada por indecisão e sentimento de impotência. Sente
apatia e indiferença por questões que antes lhe costumavam proporcionar
satisfação. Na psicologia, a abulia pode ser um sintoma de doenças mentais,
como a depressão, a esquizofrenia, o transtorno bipolar e a distimia.
Relator do processo de Bolsonaro, o ministro Benedito Gonçalves já tem apoio da maioria dos colegas do TSE à tese de que é preciso levar em conta, no julgamento, as “circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório”. Entre eles, estão as revelações constantes no relatório da Polícia Federal sobre o celular do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, que preparava um golpe militar. Ninguém ainda sabe qual o verdadeiro envolvimento de Bolsonaro nos fatos, mas ele sabe. Puro Dostoiévski.
Boa analogia.
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