sábado, 24 de junho de 2023

Maílson da Nóbrega* - Autonomia estadual na reforma tributária

O Estado de S. Paulo

Argumentar que os governos subnacionais ficariam sujeitos a receber ‘mesada’ da União é desinformação. Isso não será permitido

A reforma tributária sob exame do Congresso pode criar um dos mais modernos e eficientes sistemas de tributação do consumo. Cinco tributos distorcivos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) serão substituídos por um IVA dual, isto é, um imposto sobre o valor agregado com duas fontes de arrecadação, uma a cargo da União e outra, dos Estados e municípios. A proposta se baseia nas melhores experiências do mundo. Infelizmente, a reforma começou a perder qualidade. O relatório do respectivo grupo de trabalho, ao buscar compreensivelmente as condições políticas que viabilizem a aprovação do texto, optou pela criação de múltiplas alíquotas. O padrão mais eficiente é o da alíquota única.

Pressões setoriais demandam alíquotas diferenciadas para a agricultura e os serviços, neste caso mantendo a baixa tributação de segmentos abastados, que consomem serviços pagos de educação, saúde e lazer. A alíquota mais alta incidirá sobre a cesta alimentar dos mais pobres. A perda de qualidade da reforma reduzirá os efeitos na produtividade e no potencial de crescimento da economia. O maior dano pode vir, contudo, de resistências que se opõem à própria reforma, movidas pela equivocada percepção de ameaça à autonomia estadual. Mesmo assim, a reforma acarretará enormes ganhos para o País, mas poderia ser muito melhor.

Governadores, prefeitos, parlamentares, tributaristas e cientistas políticos se irmanam na defesa da dita autonomia, que consideram a razão de ser do nosso federalismo. Aos Estados e municípios, diz-se, caberia decidir sobre regras de tributação e administrar suas receitas próprias. Mais, a centralização da arrecadação, uma característica comum nos IVAs mundo afora, constituiria ameaça adicional à autonomia. Argumenta-se que os governos subnacionais ficariam sujeitos a receber “mesada” da União, que disporia de poder discricionário na distribuição dos recursos. Trata-se de incrível desinformação. Isso não será permitido pela reforma.

É o contrário. A proposta confere aos entes federados o poder de estabelecer as alíquotas em seus respectivos territórios, exigindo apenas que não tributem bens e serviços de forma distinta. Mas isso não convence os renitentes. O que se reivindica, na verdade, é a autonomia para fixar alíquotas, hipóteses de incidência e bases de cálculo. Na prática, seria preservar a situação que levou à existência de 27 regimes de ICMS. Essa louca estrutura é a maior fonte do caos em que se transformou o sistema tributário. Tal realidade é causa relevante da perda de eficiência, de produtividade e de competitividade da economia brasileira, particularmente da indústria. A bagunça tem sua parcela de culpa por nossa desindustrialização precoce.

O fim da cumulatividade (tributação em cascata) será um dos pontos altos da reforma. O elevado grau de cumulatividade do sistema tributário é um dos fatores que induzem as empresas a se organizarem para pagar menos imposto, e não para alcançar maior eficiência. Isso faz sentido para elas, mas não para a economia e o desenvolvimento do País. A eliminação da cumulatividade tornou-se, assim, um imperativo para assegurar ganhos de produtividade e maior crescimento. Para alcançar esse objetivo, precisamos de um IVA moderno, simples e harmonizado em todo o território, como ocorre nos 174 países que adotam o modelo.

Na Europa, onde inicialmente surgiu e, depois, se expandiu o IVA, as regras são necessariamente uniformes. Nenhum país tem o poder de alterá-las. O mesmo ocorre na maioria de outros IVAs. Diante disso, as Federações europeias e outras tinham duas opções: 1) preservar a autonomia de cada ente para definir regras tributárias; ou 2) aceitar a proibição de mudá-las, privilegiando a prosperidade. Os participantes do projeto de integração europeia são obrigados a adotar a segunda opção.

Neste campo, a Alemanha é um caso interessante. Suas origens remontam à unificação de 1871, promovida pelo chanceler Otto von Bismarck. Vários pequenos reinos e ducados que tinham uma mesma raiz cultural foram agregados numa única nação. Surgiu uma Federação forte, construída de baixo para cima. Na adoção do IVA em 1980, os Estados alemães aceitaram a perda da autonomia tributária. Preferiram a prosperidade. No Brasil, a Federação nasceu de um Estado unitário, portanto de cima para baixo e pouco forte. Os governadores reivindicam a manutenção da autonomia, que lhes permitirá ditar regras e distribuir incentivos fiscais. Sobreviverá o manicômio que inibirá o crescimento da economia brasileira e a de seus próprios Estados.

São nove os princípios da ordem econômica constantes do artigo 170 da Constituição. O primeiro é a soberania nacional. A busca do pleno emprego é apenas o penúltimo. Seremos pobres, mas soberanos. A defesa da autonomia estadual na reforma tributária tem a mesma matriz cultural. Os Estados continuariam autônomos, teriam o poder de fixar regras tributárias, mas fariam com que o sistema tributário continuasse afastando o Brasil da aspiração a integrar o grupo dos países ricos. O Congresso precisa ignorar essa reivindicação de governadores e prefeitos.

*SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA

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