terça-feira, 13 de junho de 2023

Maria Clara R. M. do Prado - Menos inflação, mais juro real

Valor Econômico

A definição da meta de inflação no Brasil funciona como se fosse uma espécie de roleta russa tupiniquim

Ao contrário do que se faz crer, a inflação não é um fenômeno homogêneo único nem autônomo. Tem características próprias que podem variar em momentos distintos de uma mesma economia, sem ignorar que não é passível de ser comparada entre países.

A retomada da inflação imediatamente pós pandemia foi praticamente universal e os motivos são fartamente conhecidos. Hoje, as taxas de juros praticadas pelos bancos centrais variam muito em termos nominais, mas têm se mantido, em média, ao redor de 2% em termos reais (depois de descontada variação dos índices de preços).

Nos países em desenvolvimento, a discrepância é maior. Há juros reais praticados por bancos centrais no patamar de 6% e 5%, em especial na América Latina.

O Brasil, sabe-se, é uma exceção. Não só a taxa de juro real de curto prazo é a mais alta do mundo, como continua a aumentar. Esta é uma constatação irrefutável, concorde-se ou não com a atuação da autoridade monetária brasileira. Pior é que a despeito de manter por dez meses seguidos o juro de curto prazo ao nível de 13,75%, o BC não conseguiu até agora trazer a inflação para a meta de 3,5% fixada para 2023.

O IPCA fechou maio em 0,23%, acumulando variação positiva de 3,94% no acumulado de 12 meses. Isso significa que hoje o juro real de curto prazo no Brasil está em 9,44% ex-ante, ou seja, considerando-se o índice divulgado até aqui.

Há, a rigor, peculiaridades muito específicas no comportamento da inflação do país que merecem ser consideradas não apenas com respeito ao nível dos juros, mas principalmente na determinação da meta de inflação. Nenhuma delas é novidade, apenas têm passado ao largo das discussões mais recentes.

Primeiro ponto a ser levado em conta é o grau de rigidez da inflação brasileira. Sabe-se que a economia brasileira roda com uma participação ainda significativa de indexação. O Plano Real, perto de comemorar o seu 29º aniversário, conseguiu acabar com o reajuste automático dos salários, que representam cerca de 70% da renda, mas não foi capaz de extinguir a cultura do reajuste pela variação inflacionária de outros contratos, como o de aluguel, por exemplo, e até de alguns tipos de serviço.

Um exemplo característico foi anunciado ontem, com a decisão da ANS (Agência Nacional de Saúde) de autorizar o aumento anual de até 9,63% nos planos de saúde a partir deste mês. Os preços dos remédios também foram recentemente reajustados. Tarifas como as de energia elétrica, água e transporte público aumentam em linha com a inflação. Já os combustíveis são majorados através de fórmulas específicas atreladas aos preços do mercado internacional. Em nenhum desses casos a política monetária do Banco Central tem qualquer influência. Quando a inflação é ascendente, aqueles preços mudam para mais não importa qual seja o nível de juros fixado para a Selic, a taxa do BC.

Estima-se que cerca de 23% do IPCA seja composto por produtos e serviços passíveis de sofrerem reajuste total ou parcial pela variação da inflação passada. São conhecidos como preços “administrados”, cujos aumentos são denominados pelo BC na categoria inercial. A rigor, trata-se da velha indexação pura e simples.

Segundo ponto a ser tratado diz respeito à meta da inflação. Há aqui uma relação com os parágrafos acima, uma vez que estão atrelados uns aos outros. Com praticamente um quarto do IPCA amarrado à inflação passada, a definição da meta de inflação no Brasil funciona como se fosse uma espécie de roleta russa tupiniquim. Qualquer tipo de catástrofe interna ou externa que afete os preços em geral para pior terá um efeito multiplicador maior na inflação brasileira pelo alto grau de rigidez observado no IPCA, o índice que serve de referência para a meta de inflação.

Neste sentido, pode-se dizer que a variação dos preços dos chamados produtos e serviços “administrados” nunca recua. Fica onde está ou aumenta. Aqueles itens só teriam condições de contribuírem positivamente para o IPCA se os preços em geral dos bens considerados livres (não passíveis de reajustes fixados a priori ou vinculados à inflação) se estabilizassem em zero ou menos do que zero.

É difícil saber em que ponto a inflação brasileira se torna totalmente insensível aos efeitos do aumento da taxa de juros. Seria no nível de 2%? De 3%? De 4%? Exigiria um exercício com inúmeras hipóteses, mas não se supõe impossível de ser realizado. Ajudaria imensamente na definição de uma meta factível de ser atingida e evitaria equívocos como o de junho de 2021, quando o governo decidiu fixar em 3% a meta de inflação para 2024 e 2025. Uma decisão absolutamente aleatória, difícil de ser cumprida.

Naquela altura, os preços em geral no mundo ainda estavam relativamente contidos antes de explodirem inesperadamente nos meses seguintes, no rastro de uma demanda que tinha acabado de sair da quarentena.

Na próxima reunião do Conselho Monetário Nacional, prevista para o dia 29 deste mês, espera-se que alguma decisão sensata venha a ser tomada com respeito à meta de inflação. O ideal e mais lógico é que a meta para os próximos dois anos seja ampliada para no mínimo 3,5% e que este seja o nível fixado para os anos posteriores.

Fala-se na mudança da forma como a meta é definida em termos temporais. Hoje, utiliza-se o ano calendário de modo que o nível de inflação fixado pelo CMN deve ser atingido no fim de dezembro de cada ano. Alternativamente, estuda-se o abandono da definição do prazo a favor de uma meta atemporal, como ocorre nos países desenvolvidos, uma espécie de meta a perder de vista.

Gente do mercado tem defendido o uso do chamado “core” da inflação para efeito de fixação da meta. Isso excluiria os itens mais sujeitos às variações extemporâneas de preços, como os combustíveis, mas não faria muito sentido em uma economia ainda tão indexada como a brasileira. Até que o CMN aconteça, espera-se um amadurecimento no debate em torno da meta de inflação, com mais racionalidade e menos parcialidade.

 

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