Folha de S. Paulo
Convém cuidar com urgência da guerra
interna no país para evitar uma coalizão de criminosos no poder
Estarrecedor, mas sinistramente nacional: o
Ministério Público do Rio revelou uma tentativa de coalizão entre políticos da
Baixada Fluminense (municípios de Nova Iguaçu, Queimados, Seropédica e
Mesquita) e integrantes de uma milícia, para se infiltrar nos poderes
constituídos.
Isso já tem, aliás, um grau de realidade. Mas numa reunião pré-eleitoral secretamente gravada, um chefe miliciano expunha a meta abrangente de aliados no Executivo, no Legislativo, no Judiciário e no próprio Ministério Público. Um fuzil enfeitava a mesa, e circulava o vídeo em que ele, orgulhoso, exibia seis cabeças de jovens que tinha acabado de decapitar. O Estado Islâmico não faria melhor.
Nenhum dos políticos envolvidos foi eleito,
todos estão sendo processados por organização criminosa, mas continua relevante
o teor da conversa no encontro: "É uma coisa normal. É o governo normal.
Só quem precisa saber são as partes". Ou seja, uma semioficialização do
crime.
A afirmação dessa oblíqua
"normalidade" leva a supor que os ilegalismos sejam fato nacional,
não exclusivo de uma região. É sabido que uma sociedade se ordena pela
neutralização permanente das convulsões coletivas por repressão policial ou por
legitimações ideológicas. Mas sob a normalidade catalogada como esfera civil,
pode haver outra, que viceja numa escala de brutalidade superior às exações
impiedosas, embora legais, do Estado.
Essa outra é notória, mas nem tanto a sua
extensão, agora transparente no episódio desvendado pelo MP carioca e latente
nas sombras estatais e municipais: a obscena complementaridade entre poder
público e quadrilhas. Dela foi vítima Marielle Franco. Irradiada, a
mafialização constitui uma "mesoestrutura", mediadora entre o
submundo político e frações de classe social periféricas.
O fenômeno evidencia-se na região
fluminense pelo avanço do controle territorial por facções. É nacional, porém,
a exacerbação da violência nas cidades com tiroteios diários e ameaças de
"novo cangaço". A promiscuidade entre política e crime organizado,
mesoestrutura mafiosa, sintoma de apodrecimento do laço social, repontou no
governo passado e persiste em representações parlamentares de todos os níveis.
Não se cortam cabeças à toa. A itinerância
internacional do presidente da República seria até de bom alvitre, não fosse o
odor de naftalina do passado. Convém cuidar com urgência da guerra interna.
Enquanto Estado e nação não acordarem para a desenhada decapitação da
civilidade pela ausência de um projeto global de segurança, operações
judiciárias apenas patinarão no gelo sob holofotes. O risco é sobrevir a médio
prazo uma catastrófica coalizão do crime no poder, maior do que a intentada
entre 2018 e 2022.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Mais uma vez posso ferir susceptibilidades, mas qual exemplo para combater o embricamento entre o crime e o poder público nos âmbitos municipal e estadual se há repetidamente esse embricamento no âmbito federal, incluindo presidentes da república no arranjo criminoso?
ResponderExcluir