terça-feira, 27 de junho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Produtividade agrícola não evita competitividade menor

Valor Econômico

Tradicionalmente, cumprir as exigências tributárias brasileiras é o que mais penaliza as empresas

A agropecuária não apenas salvou o Produto Interno Bruto (PIB) do início do ano, mas também garantiu o primeiro aumento da produtividade trimestral desde 2021, que agora está acima do nível pré-covid. A descoberta é do Observatório da Produtividade Regis Bonelli, do FGV Ibre, antecipado pelo Valor.

Medida por horas efetivamente trabalhadas, que levam em conta picos de produção e compensação, assim como feriados ou cortes de jornada, a produtividade subiu 1,3% no primeiro trimestre em relação ao mesmo período de 2022. O índice foi puxado pela agropecuária, cuja produtividade saltou 23,5%. Na indústria a variação foi de 0,6%, e nos serviços houve queda de 1,1%. Mesmo com a agropecuária representando pouco das horas trabalhadas na economia (8,5%), seu desempenho foi tão expressivo que determinou o aumento do índice total, compensando a queda dos serviços, que significam quase 70%.

A produtividade havia aumentado em um primeiro momento da pandemia, com a saída do mercado dos trabalhadores menos produtivos, voltou a cair ao longo de 2021 e 2022, e reagiu agora. O estudo do FGV Ibre detalha que a produtividade da agropecuária aumentou apesar da redução da população ocupada no setor e das horas trabalhadas. Ao comentar a contribuição da agropecuária para o PIB, especialistas já haviam notado o impulso proporcionado pela expansão da demanda externa e pela abertura de mercado para novos produtos, que estimularam o investimento em tecnologia e insumos.

Os pesquisadores do FGV Ibre alertam, porém, que a posição de locomotiva da agropecuária pode não se manter ao longo do ano tanto em relação ao PIB quanto à produtividade, dado que a atividade tende a perder força nos próximos meses por motivos sazonais. Por outro lado, os demais setores não dão sinais de melhora, um dos fatores que prejudicam a competitividade global do País.

O Anuário de Competitividade Mundial, elaborado pelo IMD Competitiveness Center em parceria com a Fundação Dom Cabral, mostra que o Brasil caiu mais um posto no ranking global deste ano e ficou em 60º lugar em relação de 64 países. Só está à frente de África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela. A lista é liderada por Dinamarca, Irlanda e Suíça.

O ranking do IMD leva em conta cerca de 300 dados econômicos e a percepção de 6 mil executivos entrevistados. O Brasil ficou em último lugar na percepção dos entrevistados a respeito de como os jovens chegam ao mercado de trabalho. Além da deficiência na educação, os principais pontos que justificam a colocação do Brasil são a percepção negativa sobre a legislação tributária e as dificuldades para se fazer negócios.

Um outro modo de se avaliar o problema é o estudo feito pelo Movimento Brasil Competitivo (MBC) em parceria com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) e FGV, que mede quanto o setor produtivo gasta a mais para produzir em comparação com a média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O levantamento deste ano constatou que o chamado Custo Brasil atingiu R$ 1,7 trilhão, o equivalente a 19,5% do Produto Interno Bruto (PIB). O número é superior ao R$ 1,5 trilhão calculado há quatro anos, então equivalente a 22% do PIB.

Seis das 12 diretrizes monitoradas por serem consideradas vitais para a competitividade de uma empresa representam mais de 80% do Custo Brasil, e, nada surpreendente, muitas delas coincidem com as avaliações colhidas pelo IMD. São a complexidade do sistema tributário, o financiamento do negócio, emprego de capital humano, infraestrutura disponível, ambiente jurídico-regulatório e integração de cadeias produtivas globais.

Tradicionalmente, cumprir as exigências tributárias brasileiras é o que mais penaliza as empresas. O estudo constatou que uma empresa brasileira leva 62 dias para preparar seus impostos, dez vezes mais do que os seis dias da média dos países da OCDE. Em termos de custo fica em segundo lugar, com até R$ 310 bilhões, ou pouco mais de 18% do total de R$ 1,7 trilhão.

Mais oneroso é empregar capital humano, que custa até R$ 360 bilhões, ou 21%. Somente o treinamento de pessoal para compensar as deficiências educacionais custa para as empresas R$ 145 bilhões, quase o mesmo valor empregado integrar cadeias globais. Em terceiro lugar vem a infraestrutura, cujas deficiências oneram as empresas em até R$ 290 bilhões.

Nesse cenário, a discussão sobre, entre outros temas, a reforma do Ensino Médio é um alento ao ampliar a oferta de cursos profissionalizantes e a carga horária dos estudantes. Mas há ameaças quando surgem propostas de sua simples revogação em vez do aprimoramento do modelo.

Vem do governo a sugestão de criação de um Observatório do Custo Brasil em parceria com o MDIC para estabelecer um Plano de Redução do Custo Brasil, mapeando projetos que podem avançar nesse objetivo. Boas ideias não faltam. Resta colocá-las em prática, sem desvios.

Guerra às drogas ceifa milhares de vidas e custa bilhões

O Globo

Perda de 4,2 meses na expectativa de vida e de R$ 50 bilhões por ano justifica rever estratégia que fracassou

A guerra às drogas reduz 4,2 meses na expectativa de vida dos brasileiros e representa um custo de R$ 50 bilhões anuais, ou 0,77% do PIB, segundo estudo publicado na semana passada pelo Ipea. Isso equivale a mais da metade do valor reservado para o Bolsa Família neste ano (R$ 71,4 bilhões) e mais de um terço do que o país investiu em infraestrutura no ano passado (R$ 135 bilhões). “O proibicionismo, e em particular a guerra às drogas, é a forma mais eficiente de desperdiçar recursos públicos e sociais”, afirma a publicação “Custo de bem-estar social dos homicídios relacionados ao proibicionismo das drogas no Brasil”, do pesquisador Daniel Cerqueira.

Os efeitos nefastos são visíveis no dia a dia. Por todo o país, vastas extensões dos territórios, especialmente nas comunidades pobres, são subjugadas e exploradas por facções criminosas que impõem suas leis perversas. Por décadas, o enfrentamento dessas quadrilhas, baseado mais na força bruta que na inteligência e no planejamento, tem resultado em homicídios, com perda de vidas de policiais e inocentes. Apesar do aparato empregado, os índices de violência costumam variar mais em decorrência da disputa entre as facções que propriamente das políticas públicas.

O estudo do Ipea afirma que o grande número de homicídios afeta o consumo e a geração de renda não apenas das famílias das vítimas, mas de toda a sociedade. É preciso, segundo Cerqueira, deixar de lado visões preconcebidas e tabus para debater alternativas no enfrentamento às drogas, como noutros países, “onde a violência é substituída por ações mais inteligentes de natureza educacional, por políticas de redução de danos e por regulação e legalização dos mercados”.

Um olhar atento sobre o estudo do Ipea é oportuno no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá retomar o julgamento da ação movida pela Defensoria Pública de São Paulo questionando a constitucionalidade do artigo da Lei Antidrogas que criminaliza o porte para consumo pessoal. O caso envolve um detento condenado por ter sido flagrado com meros 3 gramas de maconha. Pela lei em vigor, é crime adquirir, guardar ou transportar droga, não importando a quantidade.

A formulação sem sentido tem uma série de implicações. Uma das principais: como a lei não estabelece a quantidade de droga que distingue o usuário do traficante, deixando a interpretação ao sabor das inclinações de policiais e juízes, as cadeias estão cheias de cidadãos flagrados com pequenas quantidades de droga que não deveriam estar ali, ao lado de homicidas, estupradores, pedófilos e outros criminosos, gerando gastos para o Estado e servindo de mão de obra barata para o crime. Usuário e traficante devem ter tratamento distinto na lei e nas políticas públicas. O primeiro deve ser tratado como caso de saúde pública. O segundo deve ser submetido ao rigor da lei.

A dificuldade —ou a pouca disposição — para abordar tema tão sensível fica clara no próprio histórico da ação, que se arrasta há oito anos. O julgamento, previsto para o início do mês, acabou adiado. É fundamental que seja retomado. São conhecidas as pressões para que fique tudo como está, mas os ministros do Supremo têm, diante da omissão do Legislativo, obrigação de enfrentar a questão. Está na hora de a sociedade discutir o assunto de forma madura e serena. O tratamento dado hoje às drogas, como revela o estudo do Ipea, é caro, cruel e ineficaz.

Não tem cabimento ressuscitar benefício para juízes extinto em 2006

O Globo

Pagamento retroativo de adicional por tempo de serviço custaria R$ 1 bilhão aos cofres públicos

Num momento em que o país precisa conter gastos para cumprir as metas do novo arcabouço fiscal, não tem cabimento a mais nova tentativa de ressuscitar o acréscimo na remuneração dos juízes conhecido como adicional por tempo de serviço. A benesse, extinta em 2006, garantia promoções automáticas num valor que hoje chega a R$ 10 mil mensais. Enquanto faz pressão para aprovar no Congresso uma emenda constitucional para restaurar o privilégio — a PEC do Quinquênio —, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para recobrar os pagamentos suspensos em 2006, com efeito retroativo.

Se prosperar, a ação promete trazer até R$ 2 milhões a cada juiz beneficiado e representaria uma conta imprevista de R$ 1 bilhão para o Tesouro Nacional. Aprovado no Conselho de Justiça Federal, o pagamento foi suspenso pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Chegou a ser referendado pelo corregedor nacional de Justiça, ministro Luis Felipe Salomão, mas ele voltou atrás na véspera da decisão do TCU, diante de pressão que, segundo noticiou o jornal O Estado de S.Paulo, envolveu até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. No Supremo, o caso foi distribuído para relatoria do ministro Dias Toffoli.

O STF tem uma excelente oportunidade para deixar claro que se trata de demanda descabida num país em que os juízes já usufruem um sem-número de privilégios e regalias na forma de penduricalhos ao salário, manobra para driblar o teto do funcionalismo. Magistrados são um terço dos que recebem supersalários acima do teto. Em 24 estados, o vale-refeição supera o salário mínimo. Para não falar em auxílios transporte, moradia, paletó e saúde, serviços extraordinários, férias de 60 dias etc. Cada juiz custou aos cofres públicos mais de R$ 60 mil mensais em 2021, segundo o último relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Só o Judiciário — sem contar o Ministério Público — consumiu 1,2% do PIB, em 2021, ou 9,6% dos gastos da União — o correspondente a 11 vezes o custo espanhol, dez vezes o argentino e nove vezes o americano.

Ninguém duvida que o trabalho da Justiça é essencial para a sociedade, nem que é necessária uma remuneração justa, capaz de manter a independência dos magistrados diante das pressões. Mas não faz sentido econômico, muito menos moral, o Tesouro arcar com mais uma despesa cujos únicos beneficiados integram a categoria mais privilegiada do serviço público e a faixa mais rica e mais bem remunerada da sociedade. Ainda mais num momento em que falta no Orçamento dinheiro para tudo — de programas sociais a infraestrutura.

Motim na Rússia

Folha de S. Paulo

Putin controla rebelião de mercenários, mas desgaste está por ser mensurado

Paralelos históricos são tentadores quando o extraordinário se desenrola em tempo real.

A Rússia é pródiga em episódios dramáticos, como mostrou o jornalista americano John Reed em seu clássico e panfletário "Dez dias que abalaram o mundo", de 1919, o mais próximo de uma narrativa instantânea da crise de 1917, que viria a parir a União Soviética em 1922.

De sexta a sábado (24), Vladimir Putin enfrentou o primeiro motim armado em 23 anos de poder no Kremlin —e por dois dias, se não foi abalado, o mundo prendeu a respiração. Por distintas que sejam as realidades, foi o líder russo o primeiro a lembrar de 1917.

Em um discurso severo, prometendo punir as forças mercenárias de seu ex-aliado Ievguêni Prigojin, citou "facada nas costas do povo", "colapso do Exército" e "russos matando russos", itens na ordem do dia 106 anos atrás.

A dramaticidade acompanhava o movimento dos soldados do Grupo Wagner, uma criação de Prigojin alimentada por Putin, ao tomar a importante Rostov-do-Don e avançar em comboio, com combates esporádicos, rumo a Moscou.

Com a mesma rapidez, veio a dissolução da crise, com ares de pastiche. Prigojin chamou seus homens de volta e rumou para Belarus. Nesta segunda-feira (26), disse que não buscava derrubar Putin, mas evitar a destruição de seu grupo e "responsabilizar" os culpados pela campanha errática da Rússia na Ucrânia.

Com escassez factual, não falta quem teorize uma conspiração para desarmar o Wagner —que ganhou muita musculatura, sendo central na Guerra da Ucrânia, além de operar em vários países.

Prigojin, o rude ex-presidiário tornado "chef de Putin", por servir as refeições do Kremlin e pela amizade com o chefe, em si não era talhado para liderar uma revolução, como comentaristas ocidentais chegaram a sugerir na crise.

Seu objetivo agora declarado era derrubar o ministro da Defesa, Serguei Choigu, seu rival que buscava enquadrar os mercenários.

Putin —um dirigente autocrático que explora politicamente a imagem de sua força— manteve o controle da Rússia em meio ao maior desafio doméstico que enfrentou, mas o preço real do desgaste evidente que sofreu ainda terá de ser mensurado.

No mínimo, o motim mostrou que as divisões estimuladas pelo presidente para manter o poder têm preço impagável. Um país com vários Exércitos não tem nenhum.

Essa é uma péssima assertiva para quem está em guerra, como a Rússia já teve a oportunidade de aprender em sua história A opacidade em torno dos acontecimentos, todavia, torna a resultante da revolta insondável por ora.

Perdas e danos

Folha de S. Paulo

Estudo do Ipea reforça avaliação de que política de drogas é ineficiente e letal

Uma política pública eficiente precisa se basear em evidências e alocar recursos de modo racional para que obtenha o retorno estimado com o menor gasto possível. Considerando esses parâmetros, a política brasileira para as drogas é exemplo de ineficiência.

Estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que o país arque com um custo, em termos de bem-estar, de R$ 50 bilhões anuais, em valores de 2017, ou 0,77% do PIB, com a proibição do uso de drogas e a repressão ao tráfico.

Ademais, a partir do cálculo das mortes violentas associadas a substâncias ilícitas, a pesquisa conclui que a chamada guerra às drogas diminui em 4,2 meses a expectativa de vida do brasileiro.

Como aponta o documento, 46,6% das mortes intencionais na cidade do Rio em 2017 eram relacionadas a drogas; no estado de São Paulo, o índice era de 27,7%.

Números sempre podem variar conforme a metodologia utilizada. De mais certo, os dados reforçam o diagnóstico de que a proibição, mais que inócua, é danosa.

Isso porque diversas pesquisas, feitas aqui e no exterior, mostram que a ilegalidade causa mais mortes do que o consumo.

"É como se cada brasileiro pagasse um imposto de R$ 269 por ano da guerra às drogas", diz o economista Daniel Cerqueira, do Ipea, coordenador da pesquisa.

Além de deixar de produzir riquezas, gastamos muito. Em 2017, os estados mais populosos do país, Rio de Janeiro e São Paulo, desembolsaram juntos cerca de R$ 5,2 bilhões no combate às drogas.

E gastamos mal. Num ranking de 30 nações do Global Drug Policy Index, que avalia a eficácia da política de drogas, o Brasil está em último lugar, atrás de países muito pobres, como Uganda. O que puxa nossa nota para baixo é a precariedade de ações na área da saúde e o abuso no uso da força policial.

Primeira colocada, a Noruega tem altíssimo aporte em saúde. Em terceiro, Portugal descriminalizou a posse para consumo pessoal em 2001. Cerca de 30 países no mundo já o fizeram para uma ou mais substâncias, dos quais 8 na América Latina para todas as drogas.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal julga ação que pode levar à descriminalização do uso de maconha ou até geral. Já passou da hora de Congresso Nacional e sociedade debaterem mudanças em uma política pública que já se mostrou cara, ineficiente e letal.

Inelegibilidade é constitucional

O Estado de S. Paulo

Que a Justiça Eleitoral aplique com rigor a lei – e só a lei – em todos os casos.

Observa-se certo mal-estar com as decisões da Justiça Eleitoral que declaram a inelegibilidade de algumas pessoas, como se isso contrariasse o princípio democrático. A retirada de um candidato da disputa eleitoral – ou a cassação posterior de seu mandato – representaria um paternalismo estatal. O sistema desconfiaria da capacidade do eleitor, atribuindo a alguns juízes o poder de decidir em quem a população pode votar. Segundo essa lógica, o mais democrático seria permitir que tudo fosse resolvido nas urnas.

Essa contraposição entre inelegibilidade e democracia não é, no entanto, a perspectiva da Constituição de 1988. Precisamente para que os cidadãos possam escolher livremente, sem interferências indevidas, quem ocupará os cargos públicos, o texto constitucional prevê requisitos para concorrer às eleições e determina que a lei deverá estabelecer hipóteses de inelegibilidade “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (art. 14, § 9.º).

Frágil seria o regime democrático que autorizasse alguém, depois de ter abusado da função pública, a continuar concorrendo a cargos políticos. Longe de reduzir a liberdade de escolha do eleitor, a inelegibilidade assegura a igualdade de condições entre os candidatos, aspecto fundamental do regime democrático. Por isso, para que o regime democrático não esteja refém de quem não respeita as regras do jogo democrático, a Constituição determinou que o Legislativo deve definir, por lei, as hipóteses de inelegibilidade.

Em 1990, cumprindo essa atribuição constitucional, o Congresso aprovou a Lei Complementar (LC) 64/1990, que regulamentou o art. 14, § 9.º da Constituição. Vinte anos depois, a legislação foi alterada pela LC 135/2010, a Lei da Ficha Limpa.

A crítica da suposta oposição entre democracia e inelegibilidade desconsidera um ponto básico: o regime democrático é definido e configurado pela Constituição. Ele não é uma ideia abstrata, cujo conteúdo seria preenchido por cada um como bem entender. Ao determinar que a lei estabeleça as hipóteses de inelegibilidade, a própria Constituição afirma que nada há de antidemocrático na exclusão do processo eleitoral de alguém inelegível, por mais votos e apoio popular que possa ter.

Nesse tema há um ponto muito importante. A inelegibilidade não é fruto da vontade de um juiz ou de um tribunal. Ninguém tem esse poder no regime democrático. A inelegibilidade é decorrência da lei. Ou seja, ao avaliar se uma pessoa deve ser declarada inelegível, o Judiciário deve ser extremamente parcimonioso, atendo-se estritamente aos termos da lei. Só assim a decisão terá legitimidade democrática.

A sentença sobre a inelegibilidade não pode estar baseada no juízo de conveniência de um grupo de juízes para os quais, por exemplo, retirar determinada pessoa do processo eleitoral seria bom para a democracia. Se fosse assim, além de antidemocrática, a decisão violaria garantias fundamentais. Ninguém, nem mesmo um juiz, tem direito de impor, por vontade própria, restrições aos direitos políticos do restante da população. As causas de inelegibilidade são definidas em lei. O que a Justiça Eleitoral deve fazer é apenas aplicar a lei, excluindo do processo eleitoral quem a lei diz que não deve participar desse processo.

A aderência à mais estrita legalidade nas decisões sobre a inelegibilidade é condição para que a Constituição seja respeitada e a democracia, protegida de fato. No Estado Democrático de Direito só existe inelegibilidade com base na lei, e não em voluntarismos ou em idiossincrasias, o que ocorreria, por exemplo, com interpretações extensivas da legislação.

Inelegibilidade, portanto, não é perseguição política. É proteção do regime democrático por meio do Direito. Que a Justiça Eleitoral aplique com rigor a lei – e só a lei – em todos os casos.

A ameaça ao poder de Putin

O Estado de S. Paulo

O poder autocrático de Putin depende de uma barganha: mais estabilidade ao custo de menos liberdades. Mas rebelião de uma de suas criaturas mostra que sistema pode estar desmoronando

Foi a maior ameaça ao regime de Vladimir Putin em 20 anos. O motim de Yevgeni Prigozhin e seus mercenários do Grupo Wagner se dissipou tão inesperada e nebulosamente quanto começou. Mas deixou sangue na água e a sensação de que a estocada pode ter ferido o coração do sistema de Putin.

Putin subiu e se manteve no poder renovando uma barganha: mais eficiência e estabilidade ao custo de menos democracia e liberdades. No caos dos anos 1990, ele prometeu unidade, segurança e o resgate das glórias da Mãe Rússia. Valendo-se de sua experiência na KGB, empregou estruturas informais, intrigas e intimidação para, tal como a máfia, arbitrar facções rivais.

O próprio Prigozhin é um expoente.

Após ser condenado por liderar uma gangue de assaltantes, ele entrou no ramo de cassinos e restaurantes, um deles frequentado por Putin, recebeu milhões em contratos públicos e fundou sua milícia, que fez o serviço sujo para Putin na Líbia, Mali e Síria. Na Ucrânia, além das vitórias na batalha, Prigozhin se mostrou útil a Putin em suas invectivas contra o desempenho do establishment militar. Quando sua virulência começou a sair do controle, o Kremlin decidiu integrar parte de seus homens ao Exército. Neste ponto, a criatura se rebelou, expondo fissuras no sistema do criador que podem estar se abrindo em crateras.

O mundo viu atônito a retirada das tropas de Prigozhin do front na sextafeira e seu avanço pela Rússia. Ele capturou sem resistência Rostov, a nona maior cidade russa, e chegou a 200 km de Moscou, denunciando os pretextos de Putin para a guerra – uma ameaça coordenada pela Otan e a opressão de etnias russas por “fascistas” ucranianos – como farsas.

Compare-se a reação de Putin à de Volodmir Zelenski após a invasão. No dia seguinte, enquanto os russos avançavam para Kiev, Zelenski e seus colegas circularam a céu aberto prometendo defender o país. Já Putin desapareceu – houve rumores de que fugira de Moscou – e só na manhã seguinte se manifestou na TV. Falando de um escritório, acusou uma “punhalada nas costas” similar a 1917 – quando facções do Exército instadas pelos bolcheviques abandonaram o front, dando início à guerra civil – e prometeu trucidar os traidores. À tarde, foi anunciado um acordo: as acusações seriam retiradas e Prigozhin se exilaria na Bielorússia. “De um lado, coragem, camaradagem e uma demonstração de unidade nacional; de outro, medo, isolamento e divisão”, notou o articulista Gideon Rachman, do Financial Times.

Agora, Putin luta pela sobrevivência em duas frentes. Internamente, os russos viram seu Exército condescender à milícia rebelde. Punir seus generais soaria a uma concessão a Prigozhin. Integrar os rebeldes soa a fraqueza. Mas abrir mão deles enfraquecerá a Rússia no combate. Seria preciso convocar mais reservistas, ameaçando estimular a revolta de um povo que já se pergunta sobre o sentido dessa guerra. Externamente, essas vulnerabilidades serão exploradas pelos ucranianos em sua contraofensiva. A estratégia de Putin é que uma guerra longa de atrito levaria os ocidentais à distração e à exaustão. Mas ela está acelerando as tensões e debilidades do regime de Putin. “Duas décadas de domínio (de Putin) esvaziaram as instituições russas”, sentenciou Chris Donnelly, ex-conselheiro da Otan para a Rússia. “O sistema não pode funcionar sem uma mão forte no volante, e a mão de Putin já não é mais forte.”

A ironia é que os abusos de Putin despertaram o que ele mais temia. A invasão à Ucrânia deveria coroar seu sistema, esmagando os anseios por um regime democrático pró-ocidental em Kiev (e o risco de contágio para Moscou) e humilhando e dividindo os países da Otan. Mas está acontecendo o contrário. Para o Ocidente, o motim é uma faca de dois gumes: ele traz oportunidades, mas serve como uma advertência de que uma queda de Putin pode elevar ao comando da potência nuclear forças ainda mais radicais e virulentas.

Até aqui, nada é inevitável. Mas é possível que no futuro a história registre o putsch não só como o início do fim da guerra, mas como o início do fim do regime de Putin.

A escalada da inadimplência

O Estado de S. Paulo

Quase metade dos brasileiros não consegue pagar suas dívidas, maior proporção desde 2016

Levantamento da Serasa Experian de abril informa que 71,4 milhões de brasileiros, o equivalente a 43% da população adulta, estão comprometidos com dívidas em aberto. É o maior número verificado desde janeiro de 2016, quando o Brasil vivia os efeitos de uma forte recessão. Em conjunto, esses inadimplentes devem R$ 340,6 bilhões, outra cifra impressionante. Ao constatar que boa parte do passivo se concentra no cartão de crédito e no cheque especial, a pesquisa expõe a espiral de endividamento que corrói o poder de compra das famílias e torna a poupança inviável.

O quadro é dramático para os fundamentos da economia. Mas, sobretudo, pesa no dia a dia de famílias apertadas para cobrir suas despesas básicas com o orçamento disponível, que recorrem às dívidas e à escolha de quais contas não pagar. Em abril, 700 mil pessoas físicas ingressaram na lista de inadimplência. Na comparação com o mesmo mês de 2022, foram 5,3 milhões a mais acossadas pelas cobranças.

Os dados mostram que 69,6% dos inadimplentes estão na faixa etária de 26 a 60 anos de idade. Em tese, em plena capacidade de trabalho. Há crescimento gradual nessa esfera e também na dos negativados com mais de 60 anos, que em abril responderam por 17,8% do total. Entre aposentados e trabalhadores ainda ativos, os mais velhos estão expostos a assumir o papel de arrimo de família e aos apelos da armadilha do crédito consignado.

As causas desse cenário são há muito conhecidas. O aperto monetário em vigor pelo Banco Central, sem sinal de arrefecimento desde agosto de 2022, vem sendo apontado como indutor da escalada gradual da inadimplência. Desde janeiro passado, há mais de 70 milhões de brasileiros nessa condição. Na ponta, a Selic e a alta inadimplência alimentam a lógica dos juros extorsivos aplicados por bancos e empresas financeiras, que tendem a tornar as dívidas impagáveis.

A renda do trabalho, estagnada há quase um ano, também tem efeito direto sobre esse cenário, que certamente seria pior sem os benefícios do Bolsa Família. Há de considerar ainda o fato de a desaceleração dos índices de preços ao consumidor em abril não ter sido suficiente para conter o aumento da inadimplência de pessoas físicas. A inflação continua a roer a renda e a provocar o endividamento.

Há potencial alívio desse quadro no segundo semestre com a antecipação do pagamento do 13.º salário para os aposentados e com a aprovação do projeto de lei sobre o aumento do salário mínimo acima da inflação. O programa Desenrola pode dar contribuição substancial, porém não definitiva, ao aliviar o peso das dívidas. Sua implementação pelo governo federal tarda já quatro meses.

A solução para esse drama depende essencialmente do crescimento sustentável, numa escala mais ambiciosa que a atual, para que tenha real impacto sobre a renda do trabalho e o emprego formal. Até o momento, a inadimplência de quase metade dos brasileiros é um dos freios a esse objetivo. É preciso considerar, também, que a situação real provavelmente é bem pior: a Serasa Experian não inclui as dívidas com os agiotas. 

Feminicídios, a letalidade indomável do machismo

Correio Braziliense

No primeiro trimestre deste ano, os assassinatos de mulheres aumentaram 350% em relação a 2022

A cada seis horas, uma mulher é vítima de feminicídio no país. Mais de 1.400 mulheres foram executadas no ano passado pelos ex-companheiros, maridos, ou ex-namorados. Hoje, no ranking global, o Brasil é a quinta nação mais violenta para as mulheres. A taxa deste crime chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres, segundo a Organização Mundial da Saúde(OMS). O trágico cenário resulta da fragilidade das políticas públicas e do subfinanciamento de ações do Estado para conter a fúria masculina. Um desafio ainda não superado pelo poder público.

O Distrito Federal registrou neste semestre 18 feminicídios — todo o ano passado foram 17. No primeiro trimestre deste ano, os assassinatos de mulheres aumentaram 350% em relação a 2022, segundo a Secretaria de Segurança Pública da capital federal. Uma escalada que se apresenta indomável, apesar dos anúncios feitos pelo governo local, com a criação de grupo de trabalho para conter os assassinatos por questão de gênero. Em Minas Gerais, só em janeiro último, 11 mulheres foram assassinadas e 14 sofreram atentados, segundo a Secretaria de Segurança Pública. A escalada revela que em 2021 foram mortas 155 mulheres e, 170 foram vítimas da violência letal em 2022.

Nos últimos anos, os cortes orçamentários para as ações de proteção à mulher chegaram a 95%. O Estado virou as costas à situação dramática enfrentada pelas mulheres, sobretudo àquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Embora a violência masculina não seja menor na camada mais rica da sociedade. As medidas protetivas decretadas pela Justiça têm se revelado inócuas na salvaguarda da vida, na maioria dos municípios e estados.

Ainda que ela recorra às forças de segurança, praticamente, na maioria dos casos, nada é feito para proteger e preservar a integridade física da vítima da fúria do seu algoz. Ele segue em liberdade, sem qualquer monitoramento, quando a Justiça determina que fique afastado do seu alvo. Ou seja, o agressor não é contido por nenhum instrumento disponível ao poder público. Assim, o homem desafia a lei, a Justiça e todo o aparato policial. A morte de mais uma mulher torna-se inevitável.

A sanha assassina que afeta os homens deve-se aos conceitos desprezíveis do machismo e do patriarcalismo, que rotulam o sexo feminino como inferior. As mulheres, por tradição primitiva, são enquadradas como objeto de propriedade do homem. Esse entendimento é reforçado pela sub-representação feminina nas instâncias de poder, calcado em falsas teorias depreciadoras da capacidade decisória das mulheres.

A cultura do machismo e o modelo patriarcalista estão disseminados em todas as camadas da sociedade. Há uma resistência à presença feminina em todas as instâncias de poder, que, historicamente, consolida a depreciação da mulher, e reforça prepotência e a falsa supremacia do macho, que pode decidir sobre a vida e a morte da companheira ou da ex-companheira. A situação se repete quase sempre que ela decide dar um "não" ao relacionamento violento.

Aliada a essa dura realidade está a falta de educação, que afeta até algumas mulheres, condicionadas desde criança a serem subservientes ao sexo oposto. O respeito e a igualdade de direitos entre os sexos deveriam ser ensinados desde a infância. Mas esta não é realidade nacional, o que revela a incapacidade das autoridades de reeducar os homens para uma relação harmoniosa e respeitosa com o sexo oposto. Impõe-se ao poder público e a todas as instituições de Estado — e até mesmo às organizações privadas — desconstruir essa visão equivocada e incompatível com valores civilizatórios. Faltam campanhas nacionais contra a violência crescente contra as mulheres e a outros gêneros, que mobilizem a sociedade e despertem a sororidade — a solidariedade inquebrantável do universo feminino. Esta é uma luta de todas e todos.

 

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