sábado, 24 de junho de 2023

Pablo Ortellado - Dez anos depois, a hora da tarifa zero

O Globo

Ela é uma ideia revolucionária que, se bem implementada, traz uma série de benefícios à população

Pode ser difícil explicar o que fez com que a onda de protestos de junho de 2013 emergisse, mas não deveria ser difícil entender o que os manifestantes queriam.

No banco de dados “Grafias de junho”, que reuniu o registro fotográfico de mais de 6 mil cartazes de 40 cidades brasileiras, o tema mais frequente é mobilidade urbana, como mostrou Roberto Andrés no excelente livro “A razão dos centavos” (Zahar, 2023). No dia 17 de junho de 2013, em São Paulo, o Datafolha perguntou a motivação dos manifestantes, e 56% disseram “protestar contra o aumento da passagem”. No dia 20 de junho, o Ibope entrevistou manifestantes em oito capitais e descobriu que o principal motivo dos protestos era a redução das tarifas de transporte (o segundo era a corrupção). Não era apenas pelos 20 centavos, mas era também, e era sobretudo, pelos 20 centavos.

Em julho de 2013, 59 dos 90 municípios com mais de 200 mil habitantes tinham reduzido as tarifas de transporte para responder aos protestos. Para 70% dos habitantes das grandes cidades, foi ampliado o subsídio ao transporte público naquele ano. De lá para cá, porém, a política para o transporte público foi oscilante, com algumas cidades ampliando o subsídio, outras chegando a reduzi-lo.

A tarifa zero era, naquele ano de 2013, uma espécie de utopia. Tinha sido testada apenas em cidades pequenas ou que tinham receita extraordinária com royalties do petróleo. De lá para cá, uma revolução silenciosa aconteceu. As experiências com tarifa zero passaram de 17 cidades em 2013 para quase 80 em 2023. Mais de 3 milhões de brasileiros já vivem sem precisar pagar pelo transporte.

Com a redução drástica no uso do transporte público depois da pandemia, muitas cidades adotaram a tarifa zero para tentar reerguer o sistema. Apenas nos dois últimos anos, 39 a implementaram. O debate sobre a gratuidade saiu das pequenas cidades para as grandes capitais. Em 2020, o prefeito de Porto Alegre, do PSDB, propôs tarifa zero nos ônibus da cidade, mas foi derrotado na votação na Câmara Municipal. Pelo menos quatro capitais estudam hoje instaurá-la: Cuiabá, Fortaleza, Palmas e São Paulo.

A tarifa zero é uma ideia revolucionária que, se bem implementada, traz uma série de benefícios à população. Em primeiro lugar, retira a barreira de preço que dificulta o deslocamento urbano para os mais pobres. Tomando o valor médio de R$ 6, apenas a ida e volta ao trabalho pode custar mais de R$ 240 mensais, 18% do salário mínimo. É verdade que o trabalhador registrado em carteira é beneficiado pelo vale-transporte, mas metade da nossa força de trabalho é informal e não dispõe do benefício. A tarifa zero não apenas facilitaria o deslocamento para o trabalho, mas também os deslocamentos para educação, lazer e compras. Seria uma revolução os mais pobres poderem transitar pela cidade sem barreiras econômicas.

Para quem tem um pouco mais de recursos, a tarifa zero seria um enorme incentivo econômico que levaria usuários do transporte particular para o transporte público, desafogando o trânsito e tornando mais rápidos todos os deslocamentos. Por fim, do ponto de vista ambiental, as mudanças reduziriam a emissão de gases de efeito estufa, já que o carro particular é a principal fonte de emissão nas cidades.

A capital mais próxima de implementar a tarifa zero é São Paulo. Hoje o sistema de ônibus da cidade custa cerca de R$ 10 bilhões, e a Prefeitura já o subsidia com R$ 5 bilhões. Seguindo o caminho de Porto Alegre, São Paulo quer que a contribuição das empresas para o vale-transporte seja destinada a um fundo municipal de transportes que somaria outros R$ 2,8 bilhões em subsídio. A economia com o fim do sistema de venda e recebimento de bilhetes e a exploração de publicidade nos ônibus e terminais gerariam outro R$ 1,2 bilhão, cobrindo 90% do custo atual. Mas, como a gratuidade elevaria a demanda, seria preciso complementar o financiamento, seja com recursos do Tesouro, seja com a municipalização da Cide, o imposto sobre a gasolina — ideia defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quando era prefeito. A conta fecha.

Muitas cidades grandes europeias estudam hoje a tarifa zero pelos efeitos ambientais. Temos agora a rara oportunidade de virar modelo de política pública para a Europa e para o mundo. Só precisamos fazer bem feito — e com cuidado.

 

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