sexta-feira, 30 de junho de 2023

Vera Magalhães - Democracia não é relativa

O Globo

Eleito para assegurar a vigência da democracia no Brasil, Lula erra ao enaltecer Maduro e fazer vista grossa ao que acontece na Venezuela

É lamentável que, no curso de um julgamento histórico, que deverá tornar Jair Bolsonaro inelegível pelos graves ataques perpetrados por ele contra o Estado democrático de direito no Brasil, Lula, eleito com a promessa de defendê-lo, diga em alto e bom som que a democracia é algo relativo. Não é, presidente. Nem aqui nem na Venezuela.

Não é democrático um regime que muda as regras do jogo no Judiciário e no Legislativo para se manter. Não é democrático um regime que mantém presos políticos e persegue opositores. Não é democrático um regime que aparelha as Forças Armadas e cria aparatos paramilitares para se impor. Não é democrático um regime que sufoca a imprensa e persegue jornalistas.

Hugo Chávez e Nicolas Maduro cometeram todos esses ataques à democracia ao longo dos muitos anos em que o chavismo comanda a Venezuela.

A necessária retomada de relações diplomáticas e comerciais com o país vizinho não precisa vir acompanhado dessa sabujice quase semanal que Lula resolveu praticar com Maduro. Absolutamente nada justifica passar pano para autocrata, seja ele de direita ou de esquerda.

Não há um ínfimo interesse legítimo do Brasil que recomende essa dissociação do presidente da República entre o que acontece na Venezuela e os recentes e graves ataques que a democracia enfrentou aqui mesmo, sob Jair Bolsonaro.

Se as instituições brasileiras fossem mais tíbias, e se Bolsonaro contasse com o aparato subserviente que Chávez e Maduro tiveram a seu dispor, o destino do Brasil poderia ter sido estar hoje sob um regime semelhante ao praticado em Caracas.

Porque Bolsonaro flertou com o aparelhamento das polícias e das Forças Armadas, atacou a imprensa impiedosamente, tentou submeter e desacreditar o Judiciário e aliciar o Legislativo à base de Orçamento secreto. As eleições passaram a ser tratadas pelo presidente como ilegítimas, quando os fatos demonstravam a higidez do nosso sistema.

Isso é o oposto da Venezuela, que tem eleições, sim, mas eivadas de suspeitas de fraudes e não acreditadas pelas organizações internacionais. Não é a quantidade de vezes que um autocrata renova sua permanência no cargo que dita que o país é uma democracia. A alternância de poder com paridade de armas é um pressuposto absoluto da democracia, e relativizar também isso é um desserviço lamentável a uma luta que o Brasil trava nesse exato momento.

O julgamento do TSE tem trazido de volta à nossa memória, sempre desafiada por uma sucessão de fatos ainda mais aterradores que os anteriores, a gravidade extrema do que Bolsonaro foi capaz de fazer para tentar melar as eleições e se manter no poder.

O que ele faria se fosse reeleito depois de jogar com abusos flagrantes de poder político e econômico? Um bom mostruário do que ele tentaria é fornecido pela Venezuela do chapa de Lula, bem como pela Hungria e pela Polônia. O ditador ser de direita ou de esquerda não o faz menos repulsivo.

Muitos dos que votaram em Lula o fizeram para assegurar a vigência das liberdades, dos direitos civis, do meio ambiente e da democracia como valor absoluto, e não por concordar com o viés ideológico do petista. Ele se engana de forma crucial se acredita que conta com aval da maioria em sua reverência, reiterada de forma inexplicável e contraproducente, a Maduro ou a um desgastado Alberto Fernandes, que não é autocrata, mas não é modelo de governança para a maioria da população brasileira.

No momento em que o Brasil está prestes a se livrar da ameaça golpista de Bolsonaro, é triste ver o presidente eleito para assegurar a plenitude da democracia tão duramente conquistada dizer que esse é um valor cambiante. Que o TSE, nesta sexta-feira, demonstre ao Brasil que não se brinca com isso.

 

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