O Globo
Eleito para assegurar a vigência da
democracia no Brasil, Lula erra ao enaltecer Maduro e fazer vista grossa ao que
acontece na Venezuela
É lamentável que, no curso de um julgamento
histórico, que deverá tornar Jair Bolsonaro inelegível pelos graves ataques
perpetrados por ele contra o Estado democrático de direito no Brasil, Lula,
eleito com a promessa de defendê-lo, diga em alto
e bom som que a democracia é algo relativo. Não é, presidente. Nem
aqui nem na Venezuela.
Não é democrático um regime que muda as
regras do jogo no Judiciário e no Legislativo para se manter. Não é democrático
um regime que mantém presos políticos e persegue opositores. Não é democrático
um regime que aparelha as Forças Armadas e cria aparatos paramilitares para se
impor. Não é democrático um regime que sufoca a imprensa e persegue
jornalistas.
Hugo Chávez e Nicolas Maduro cometeram todos esses ataques à democracia ao longo dos muitos anos em que o chavismo comanda a Venezuela.
A necessária retomada de relações diplomáticas
e comerciais com o país vizinho não precisa vir acompanhado dessa sabujice
quase semanal que Lula resolveu praticar com Maduro. Absolutamente nada
justifica passar pano para autocrata, seja ele de direita ou de esquerda.
Não há um ínfimo interesse legítimo do
Brasil que recomende essa dissociação do presidente da República entre o que
acontece na Venezuela e os recentes e graves ataques que a democracia enfrentou
aqui mesmo, sob Jair Bolsonaro.
Se as instituições brasileiras fossem mais
tíbias, e se Bolsonaro contasse com o aparato subserviente que Chávez e Maduro
tiveram a seu dispor, o destino do Brasil poderia ter sido estar hoje sob um
regime semelhante ao praticado em Caracas.
Porque Bolsonaro flertou com o
aparelhamento das polícias e das Forças Armadas, atacou a imprensa
impiedosamente, tentou submeter e desacreditar o Judiciário e aliciar o
Legislativo à base de Orçamento secreto. As eleições passaram a ser tratadas
pelo presidente como ilegítimas, quando os fatos demonstravam a higidez do
nosso sistema.
Isso é o oposto da Venezuela, que tem
eleições, sim, mas eivadas de suspeitas de fraudes e não acreditadas pelas
organizações internacionais. Não é a quantidade de vezes que um autocrata
renova sua permanência no cargo que dita que o país é uma democracia. A
alternância de poder com paridade de armas é um pressuposto absoluto da
democracia, e relativizar também isso é um desserviço lamentável a uma luta que
o Brasil trava nesse exato momento.
O julgamento do TSE tem trazido de volta à
nossa memória, sempre desafiada por uma sucessão de fatos ainda mais
aterradores que os anteriores, a gravidade extrema do que Bolsonaro foi capaz
de fazer para tentar melar as eleições e se manter no poder.
O que ele faria se fosse reeleito depois de
jogar com abusos flagrantes de poder político e econômico? Um bom mostruário do
que ele tentaria é fornecido pela Venezuela do chapa de Lula, bem como pela
Hungria e pela Polônia. O ditador ser de direita ou de esquerda não o faz menos
repulsivo.
Muitos dos que votaram em Lula o fizeram
para assegurar a vigência das liberdades, dos direitos civis, do meio ambiente
e da democracia como valor absoluto, e não por concordar com o viés ideológico
do petista. Ele se engana de forma crucial se acredita que conta com aval da
maioria em sua reverência, reiterada de forma inexplicável e contraproducente,
a Maduro ou a um desgastado Alberto Fernandes, que não é autocrata, mas não é
modelo de governança para a maioria da população brasileira.
No momento em que o Brasil está prestes a
se livrar da ameaça golpista de Bolsonaro, é triste ver o presidente eleito
para assegurar a plenitude da democracia tão duramente conquistada dizer que
esse é um valor cambiante. Que o TSE, nesta sexta-feira, demonstre ao Brasil
que não se brinca com isso.
Lula errou miseravelmente.
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