Folha de S. Paulo
O princípio da liberdade de expressão não
existe para proteger todo tipo de discurso
Na semana passada, apresentei aqui os
argumentos mais usados para justificar a liberdade de expressão: o que diz que
a censura é o pior método para o esclarecimento recíproco; o que afirma que a
autonomia dos cidadãos é incompatível com as tentativas da autoridade de
protegê-lo de ideias nocivas; a visão segundo a qual ninguém pode se tornar
capaz de decidir o modo de viver que lhe convém sem expressar e ouvir
livremente as ideias dos outros; a posição segundo a qual não há democracia se
o Estado favorece determinadas perspectivas enquanto esconde outras; por fim, a
ideia de que sem expressão livre do pensamento não há realização humana.
A liberdade de expressão é, pois, essencial à democracia e às promessas que a tornam preferível a outros regimes: a liberdade de buscar a felicidade nos nossos próprios termos, de conciliar diferenças e igualdade política, de alcançar plena realização como seres humanos capazes de pensamento, vontade e deliberação.
Por outro lado, fala-se hoje muito de
"discurso de ódio", isto é, das expressões cujo propósito é
manifestar e/ou provocar o desprezo e a redução da humanidade de grupos de
pessoas designadas com base em uma característica comum e fundamental como
religião, origem geográfica, etnia, cor da pele e orientação sexual. E ninguém
quer que as nossas democracias sejam envenenadas pela troca infernal de ofensas
e pelas formas discursivas de opressão.
Eis então a questão: não se pode dispensar
a liberdade de expressão enquanto a democracia for entendida como um regime de
liberdades e de realização humana, mas tampouco se pode abrir mão do fato de
que absolutamente todos têm o direito de ter direitos e de gozar de estima social,
logo, de não serem humilhados, ofendidos e discriminados na fala de quem os
odeia e despreza.
Como "discurso de ódio" é
expressão genérica demais —e muitos dos problemas começam aqui—, autores mais
recentes recomendam que as diversas formas expressivas designadas desse modo
sejam decompostas e analisadas separadamente. Afinal, uma coisa é o vilipêndio
dirigido a um grupo, com a clara intenção de o desrespeitar e ultrajar, outra
coisa é a fala que faz exatamente o mesmo sem se dirigir diretamente aos que
deseja discriminar, voltando-se eventualmente a outra audiência, mas com igual
desprezo e convicção da inferioridade de uma determinada classe de pessoas. Uma
outra ainda é defender a destituição de direitos, a exclusão do âmbito da
cidadania ou outra forma de política eliminacionista de qualquer grupo com base
em desprezo étnico, religioso etc. E, por fim, há as opiniões e juízos sobre
fatos e valores cujo conteúdo é adverso, hostil e até ofensivo para
determinados grupos, embora não se destine, como fim primário, à sua eliminação
ou humilhação. Só assim pode haver um espaço para a ponderação.
A liberdade de expressão não oferece
proteção a manifestações de desprezo nem a discursos que defendem a eliminação
de certos grupos, mas pode eventualmente proteger a opinião desagradável, não
majoritária, mesmo a que pode ser vivenciada como ofensiva por determinados
grupos. A ofensa direta não transmite nenhum conteúdo cognitivo dentro do
escopo da liberdade de expressão: não há nela verdade a ser descoberta. A autonomia
das pessoas não se beneficia com insultos aos outros, não há na difamação
qualquer ideia que mereça ser preservada e a democracia não ganha em uma
sociedade em que as manifestações recíprocas de desprezo sejam impunes. Por sua
vez, nos juízos e avaliações em que se enunciam opiniões pode haver, sim,
valores protegidos pelo princípio da liberdade de expressão, mesmo que grupos
se sintam ofendidos por eles.
Não há liberdade de expressão apenas para
juízos construtivos, sábios ou politicamente corretos segundo o consenso do
momento. Nem basta, para banir um discurso, que pessoas ou comunidades se
sintam ofendidas; é preciso demonstrar que há ali um discurso cujo objetivo é
ofender em vez de sustentar um ponto de vista ou dar forma a um pensamento.
Acusar de discurso de ódio —como o fazem comumente grupos religiosos,
conservadores e minorias— pode ser simplesmente uma forma política de tentar
banir discursos de que não se gosta. Mas a vida pública não é um simpósio
socrático e um discurso não se torna "de ódio" quando me fez odiar
quem o proferiu, e sim quando se destina a fazer mal a outros membros da
sociedade e à democracia.
Complicado? Talvez. Mas quem disse que a
democracia é uma coisa simples?
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Excelente artigo.
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