sexta-feira, 28 de julho de 2023

Almir Pazzianotto Pinto* - Democracia relativa ou ditadura?

O Estado de S. Paulo

As palavras democracia, justiça, direito e liberdade são indefiníveis. Não passam de aspirações que o cidadão comum alimenta, imagina e pacientemente aguarda

Em rasgo de sinceridade – atitude que lhe é incomum –, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o regime democrático se caracteriza pela relatividade.

Examinando os fatos da nossa história e a afirmação feita pelo presidente Lula, devemos concluir que o regime militar (1964-1985) foi ditadura relativa, ou, em sentido contrário, democracia relativa.

Lendo o Ato Institucional de 9 de abril de 1964, a conclusão não poderia ser outra. Afinal, no documento determinavam os integrantes do Comando Supremo da Revolução que mantinham a Constituição de 1946, limitando-se “a modificá-la, apenas na parte relativa aos poderes do presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas no sentido de drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo, como nas suas dependências administrativas”. Já ferida de morte, congelava-se o cadáver da Constituição, instituindo-se o modelo da democracia relativa.

A Constituição de 1967, discutida e aprovada em prazo marcado, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, convertidos pelo presidente Castelo Branco em Assembleia Constituinte, também implantou democracia relativa, na medida em que manteve o Poder Judiciário e o Poder Legislativo, ambos em precário estado de funcionamento. Excluiu, todavia, de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964 e todos os demais cometidos com base nos Atos Institucionais números 1, 2, 3 e 4, além de outras medidas de arbítrio relacionadas no Art. 173.

Na opinião de Lula, as ditaduras de Nicolás Maduro, de Daniel Ortega e de Cuba devem ser democracias ou ditaduras relativas. Idêntica avaliação deve fazer da Rússia de Vladimir Putin, o criminoso invasor da Ucrânia, e da República Popular da China, governada por Xi Jinping desde 2013 com poderes absolutos.

Embora o preâmbulo da Constituição de 1988 diga que os “representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte”, ali se encontravam para “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar os direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos (...)”, há muito deixamos de ser a democracia dos nossos sonhos.

O filósofo e historiador político italiano Norberto Bobbio (1909-2004) consome páginas do precioso Dicionário de Política (Ed. UNB, Brasília, DF, 1994) sem conseguir nos oferecer definição objetiva de democracia. Para ele, “na teoria política contemporânea as definições de democracia tendem a resolver-se e a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo, segundo os autores, de regras de jogo, ou, como se diz, de ‘procedimentos universais’” (vol. 1, página 326).

Segundo o professor Ricardo Peake Braga, no recente livro Juristocracia e o Fim da Democracia, “nem a etimologia da palavra democracia (poder/governo do povo) impediu a apropriação indébita do termo para que designasse regimes em que, claramente, o povo não tinha qualquer influência ou participação no exercício efetivo do poder. Exemplos dessa incongruência foram as chamadas ‘democracias populares’, como se intitularam os regimes comunistas de inspiração soviética no século 20” (Ed. E.D.A., Londrina, PR, 2021, página 41).

Estou convencido de que as palavras democracia, justiça, direito e liberdade são indefiníveis. Não passam de aspirações que o cidadão comum, impotente diante do arbítrio dos agentes do Estado, alimenta, imagina e pacientemente aguarda.

Nas eleições de 1986, sob o manto da Emenda Constitucional n.º 1/1969, os eleitores ignoravam que elegeriam deputados e senadores com poderes constituintes. A conversão do Poder Legislativo em Poder Constituinte foi iniciativa do presidente José Sarney, no exercício de prerrogativa concedida pela Emenda Constitucional n.º 26, de 17/11/1985, para saldar compromisso de campanha do dr. Tancredo Neves.

A Assembleia Constituinte se deixou dominar por clima de revanchismo festivo, impregnado de forte componente anárquico. Produziu a segunda maior Constituição do mundo, com 245 artigos, secundados pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, com outros 70, aos quais o Poder Legislativo acrescentou 44 por conta própria.

A Constituição está desfigurada por 126 emendas. A mais recente, em tramitação, trata da reforma tributária. Outras mais virão, informadas pela crença no poder sobrenatural da palavra. Muitos dispositivos aguardam regulamentação. Outros são fontes de intrigas e de intermináveis disputas, causadas pela impossibilidade de racional interpretação. É o caso do art. 142, sobre as Forças Armadas, colocadas “sob a autoridade suprema do presidente da República”. Admite, porém, a possibilidade (jamais tentada) de um dos Três Poderes convocá-las para garantia da lei e da ordem.

Entenderam? Eu não.

*Advogado, autor de ‘Greve – o grevismo na nova República’, foi ministro do Trabalho e Presidente do Tribunal Superior do Trabalho

 

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