O Globo
Kissinger voltou à China, outra vez de
surpresa, aos 100 anos, 52 anos depois da primeira visita
Ele voltou à China, outra vez de
surpresa, aos 100 anos, 52 anos depois de sua primeira visita. Naquele julho de
1971, desembarcou em Pequim como assessor de Segurança Nacional e principal
formulador da política externa de Richard Nixon. Agora, como enfatizou o
governo de Joe Biden,
na condição de cidadão privado, “por sua própria vontade”. Xi Jinping, contudo,
recebeu o “amigo da China” e Wang Yi, uma espécie de ministro do Exterior,
disse que “a política chinesa dos EUA precisa da sabedoria diplomática de
Kissinger”.
A “sabedoria”, cimentada por mais de cem
visitas à China, expressa-se como crítica implacável da política chinesa
redefinida por Donald Trump e,
nas suas linhas gerais, adotada por Biden. “Nem os EUA, nem a China, podem se
dar ao luxo de tratar o outro como adversário”, explicou Kissinger, segundo o
comunicado chinês.
Guerra Fria 2.0 — eis como a imprensa ocidental habituou-se a caracterizar as relações sino-americanas. O paralelo com a Guerra Fria original parece captar os impulsos da política chinesa de Washington.
Os EUA engajam-se na contenção
multifacetada da China. No plano militar, costura um duplo cordão de bases
insulares que se estende do Japão à Malásia e
à Indonésia. No plano estratégico, oferece à Índia uma cooperação de longo
prazo. No plano econômico, cerceia a transferência para a China dos
semicondutores mais avançados. O tripé da contenção reflete uma visão de
política distorcida pela experiência da prévia confrontação com a URSS.
A contenção da URSS, por meio da Otan,
assentava-se no conceito de equilíbrio de poder na Europa. Mas, como argumentou
Kissinger numa entrevista recente, aquela estratégia não serve como modelo para
o desafio atual.
— A História da China, ao longo de milhares
de anos, é de uma potência hegemônica na sua região. Isso produziu um estilo de
política externa no qual os chineses projetam sua influência pela escala de
seus feitos e a majestade de sua conduta, reforçados quando necessário pela
força militar, mas não dominados por ela.
A China quer ser tratada como potência
igual aos EUA no sistema internacional. Kissinger avalia que não há outro
caminho viável.
— Uma política de longo horizonte para a
China exige dois elementos. Um é força suficiente, de forma que o poder chinês
experimente contraponto sempre que se exerça com propósitos dominantes. Mas, ao
mesmo tempo, um conceito no qual a China possa se ver tratada como um igual e
como participante no sistema.
É quase o contrário da orientação que
obteve algo como um consenso bipartidário nos EUA.
A postura do governo Biden difere, em grau,
da hostilidade inconciliável praticada por Trump. Contudo, seus pressupostos
são os mesmos. Como sublinhou Kissinger, o diálogo americano com a China
“usualmente começa com uma declaração sobre as perversidades chinesas” e coloca
ênfase na questão de Taiwan, “o que provocará confrontação”. A visita à China é
uma tentativa pessoal de colocar ordem na bagunça.
A Guerra Fria 2.0 não é sustentável, sob os
pontos de vista dos dois polos da equação. No lado americano, a invasão russa
da Ucrânia evidenciou que o “giro ao Indo-Pacífico” não é tão simples. A
segurança da Europa continua a merecer prioridade estratégica e, portanto, a
Otan deve ser poupada da “morte cerebral” antevista por Macron. Ao mesmo tempo,
a agressividade chinesa no Estreito de Taiwan acendeu o alerta sobre o risco de
uma guerra devastadora.
No lado chinês, a desglobalização,
acelerada pela pandemia, iluminou dilemas econômicos estruturais. A
fragmentação de cadeias globais de suprimentos e a reconcentração de unidades
produtivas colocam a economia chinesa numa encruzilhada: a China precisa dos
mercados dos EUA e da Europa.
As visitas sucessivas à China do secretário
de Estado, Antony Blinken, da secretária do Tesouro, Janet Yellen, e do enviado
especial para o clima, John Kerry, assinalaram algum descongelamento. A visita
de Kissinger vale tanto ou mais que as três. Aos 100, o diplomata ancião
personifica uma “sabedoria” capaz de subordinar os impulsos ideológicos ao
cálculo rigoroso dos interesses nacionais.
Perfeito
ResponderExcluirVerdade.
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