Folha de S. Paulo
Declaração contra ditadura venezuelana
desinterdita opinião democrática dentro da sigla
A ditadura de Maduro sofreu, em Bruxelas,
sua mais dura derrota diplomática. A declaração conjunta que apela por
"eleições justas, transparentes e inclusivas, que permitam a participação
de todos que desejem, com acompanhamento internacional" é o contrário do
pleito farsesco preparado pelo regime venezuelano, que inabilitou os três
principais líderes oposicionistas e anunciou um veto à presença de observadores
europeus. Brasil, Argentina e Colômbia, governados pela esquerda, assinaram o
texto ao lado da França e da União Europeia.
A iniciativa abre uma via para a eliminação das sanções à Venezuela e, ao mesmo tempo, traça o roteiro de uma transição pacífica rumo à democracia. Pode não dar em nada: Maduro sabe que, inapelavelmente, seria batido em eleições livres e justas. Contudo, mesmo nessa hipótese, a declaração tem seu valor, pois assinala uma reviravolta radical na posição brasileira –e, com ela, uma desinterdição da opinião democrática dentro do PT.
A renúncia de Lula à antiga aliança com a
"ditadura companheira" deriva de cálculos de política interna. O
patético apoio ao fracassado regime pós-chavista desmoraliza a denúncia lulista
do autoritarismo bolsonarista e, como sabe o Planalto, provoca forte impacto
negativo nas sondagens de opinião. Finalmente, porém, gestos e palavras ganham
a oportunidade de um reencontro.
A passagem não será indolor nem isenta de
penosas contradições. Enquanto firmava a declaração, Lula proclamou que
"só o povo venezuelano" pode solucionar o "problema" ou a
"situação" (termos que usa no lugar de "ditadura", no caso
de ditaduras de esquerda). É uma senha ritual destinada a criticar a
"ingerência externa" –ou seja, ações diplomáticas como aquela à qual
se associava. Mas, de qualquer modo, ao queimar o que adorava, Lula apaga um
sinal vermelho. O PT já pode condenar, com igual vigor, ditaduras de direita e
de esquerda.
O PT nasceu numa singular encruzilhada
histórica, marcada pelo declínio concomitante do totalitarismo soviético e do
regime militar brasileiro. Na sua origem, o partido tinha tudo para liderar uma
renovação da esquerda latino-americana. Durante um longo capítulo introdutório
da trajetória petista, vozes democráticas de peso contestaram os dogmas das
correntes internas castristas. Num editorial hoje esquecido, a revista teórica
do PT repudiou a ditadura cubana, chamando as coisas pelo seu nome.
O sinal vermelho acendeu-se apenas em
meados da década de 1990, quando Lula recusou um convite para juntar-se à
direção da Internacional Socialista, preferindo estabelecer uma parceria com o
regime de Fidel Castro. A opção trancou o partido na caverna sombria da velha
esquerda latino-americana.
De lá para cá, o discurso político petista
cindiu-se entre o "dentro" e o "fora": a celebração
simultânea da democracia brasileira e das ditaduras de esquerda em Cuba, na
Venezuela e na Nicarágua. A cisão provocou uma perene hemorragia intelectual.
Seu produto são notas partidárias oriundas da secretaria de Relações Internacionais
que parecem escritas pelos cinzentos burocratas soviéticos de outrora e, ainda,
as típicas manifestações de militantes em redes sociais tecidas ao redor de
chavões tão anacrônicos quanto estúpidos.
Há consequências. No Brasil, as juras de
amor eterno aos "ditadores certos" ofereceram um campo de
legitimidade à nostalgia autoritária da extrema direita: se Maduro é ok, por
que não Geisel ou Médici? Lá fora, lideranças de esquerda mais novas (o chileno
Boric) ou tradicionais (o uruguaio Mujica, o colombiano Petro) argumentam que
ditaduras são sempre condenáveis, ameaçando deslocar o lulismo para uma posição
quase arqueológica.
Agora, de Bruxelas, premido pelas
circunstâncias, Lula desinterditou um caminho. O PT ganhou o direito de pensar
de novo. Saberá usá-lo, tanto tempo depois?
Tomara que saiba.
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