sábado, 22 de julho de 2023

Demétrio Magnoli - Sinal verde para o PT

Folha de S. Paulo

Declaração contra ditadura venezuelana desinterdita opinião democrática dentro da sigla

A ditadura de Maduro sofreu, em Bruxelas, sua mais dura derrota diplomática. A declaração conjunta que apela por "eleições justas, transparentes e inclusivas, que permitam a participação de todos que desejem, com acompanhamento internacional" é o contrário do pleito farsesco preparado pelo regime venezuelano, que inabilitou os três principais líderes oposicionistas e anunciou um veto à presença de observadores europeus. Brasil, Argentina e Colômbia, governados pela esquerda, assinaram o texto ao lado da França e da União Europeia.

A iniciativa abre uma via para a eliminação das sanções à Venezuela e, ao mesmo tempo, traça o roteiro de uma transição pacífica rumo à democracia. Pode não dar em nada: Maduro sabe que, inapelavelmente, seria batido em eleições livres e justas. Contudo, mesmo nessa hipótese, a declaração tem seu valor, pois assinala uma reviravolta radical na posição brasileira –e, com ela, uma desinterdição da opinião democrática dentro do PT.

A renúncia de Lula à antiga aliança com a "ditadura companheira" deriva de cálculos de política interna. O patético apoio ao fracassado regime pós-chavista desmoraliza a denúncia lulista do autoritarismo bolsonarista e, como sabe o Planalto, provoca forte impacto negativo nas sondagens de opinião. Finalmente, porém, gestos e palavras ganham a oportunidade de um reencontro.

A passagem não será indolor nem isenta de penosas contradições. Enquanto firmava a declaração, Lula proclamou que "só o povo venezuelano" pode solucionar o "problema" ou a "situação" (termos que usa no lugar de "ditadura", no caso de ditaduras de esquerda). É uma senha ritual destinada a criticar a "ingerência externa" –ou seja, ações diplomáticas como aquela à qual se associava. Mas, de qualquer modo, ao queimar o que adorava, Lula apaga um sinal vermelho. O PT já pode condenar, com igual vigor, ditaduras de direita e de esquerda.

O PT nasceu numa singular encruzilhada histórica, marcada pelo declínio concomitante do totalitarismo soviético e do regime militar brasileiro. Na sua origem, o partido tinha tudo para liderar uma renovação da esquerda latino-americana. Durante um longo capítulo introdutório da trajetória petista, vozes democráticas de peso contestaram os dogmas das correntes internas castristas. Num editorial hoje esquecido, a revista teórica do PT repudiou a ditadura cubana, chamando as coisas pelo seu nome.

O sinal vermelho acendeu-se apenas em meados da década de 1990, quando Lula recusou um convite para juntar-se à direção da Internacional Socialista, preferindo estabelecer uma parceria com o regime de Fidel Castro. A opção trancou o partido na caverna sombria da velha esquerda latino-americana.

De lá para cá, o discurso político petista cindiu-se entre o "dentro" e o "fora": a celebração simultânea da democracia brasileira e das ditaduras de esquerda em Cuba, na Venezuela e na Nicarágua. A cisão provocou uma perene hemorragia intelectual. Seu produto são notas partidárias oriundas da secretaria de Relações Internacionais que parecem escritas pelos cinzentos burocratas soviéticos de outrora e, ainda, as típicas manifestações de militantes em redes sociais tecidas ao redor de chavões tão anacrônicos quanto estúpidos.

Há consequências. No Brasil, as juras de amor eterno aos "ditadores certos" ofereceram um campo de legitimidade à nostalgia autoritária da extrema direita: se Maduro é ok, por que não Geisel ou Médici? Lá fora, lideranças de esquerda mais novas (o chileno Boric) ou tradicionais (o uruguaio Mujica, o colombiano Petro) argumentam que ditaduras são sempre condenáveis, ameaçando deslocar o lulismo para uma posição quase arqueológica.

Agora, de Bruxelas, premido pelas circunstâncias, Lula desinterditou um caminho. O PT ganhou o direito de pensar de novo. Saberá usá-lo, tanto tempo depois?

 

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