O Globo
Para alguns prisioneiros políticos do
regime ditatorial de Ortega, aceitar a extradição seria desalmar-se em vida
Tonitruante defensora de trabalhadores sem direitos nos Estados Unidos do início do século XX, foi Mary Harris Jones quem cunhou a frase “Meu endereço é como meu sapato — viaja comigo para onde há luta”. Viveu admirada como Mother Jones entre mineiros e sindicalistas da época e temida pelos donos das minas como “a mulher mais perigosa da América”. Na Nicarágua de 2023, Mary Jones não teria caminhos por onde gastar sola de sapato. Os endereços de luta lhe estariam vetados. Seria uma errante desterrada sem documentos nem cidadania, sem chão. A liberdade física equivaleria a uma morte cívica. Para alguns prisioneiros políticos do regime ditatorial de Daniel Ortega, como o bispo católico Rolando Álvarez, aceitar a extradição seria desalmar-se em vida.
Muitos não tiveram opção. Tome-se o exemplo
de Félix Maradiaga, aliado de primeira hora da fase inicial do governo Ortega.
Ocupou cargos políticos de peso, como o Departamento de Reintegração de
Combatentes e a Secretaria Geral do Ministério da Defesa, até declarar sua
intenção de concorrer à Presidência do país. Em 2021, tornou-se um dos presos
políticos de Ortega. Durante 18 meses, permaneceu jogado em cela escura, sem
acesso a material de leitura, telefonema, visita ou correspondência. No 611º
dia, em plena madrugada de 9 de fevereiro de 2023, um agente penitenciário
acordou todos da cela de Maradiaga ordenando que se vestissem. Dali foram
encaminhados a vans de vidros vedados. Desconheciam seu destino até serem
despejados na pista do aeroporto de Manágua. Apesar de algemados, tiveram de
assinar uma declaração que continha uma só linha: “Eu (nome) deixo o país por
vontade própria rumo aos Estados Unidos”. Um grupo de diplomatas do
Departamento de Estado que acompanhou o embarque dos 222 prisioneiros expulsos
por Ortega lhes disse:
— Agora vocês estão livres.
Livres? Em longo relato à National Public
Radio (NPR) dos Estados Unidos, Maradiaga relembra a montanha-russa emocional:
— Entramos no voo fretado e continuamos em
silêncio por alguns minutos. Depois começamos a cantar o Hino Nacional, a
rezar, ouvimos um dos diplomatas americanos dizer que estávamos voando para
Washington.
Somente ao desembarcar no aeroporto
internacional Dulles, no Estado da Virgínia, ficaram sabendo que sua cidadania
havia sido roubada. Ortega os condenara a ser apátridas, à morte cívica. Entre
os acusados de “traição à pátria” estavam sete possíveis candidatos à sucessão
de Ortega, advogados, jornalistas, ativistas, ex-aliados dissidentes. A
identidade cívica de outros 94 adversários políticos do regime que já viviam no
exterior também foi apagada. Em graus variados, os governos de México, Espanha,
Colômbia, Estados Unidos e Equador lhes ofereceram proteção, nacionalidade ou
cidadania plena. Maradiaga optou por continuar sendo apátrida:
— Sou nicaraguense e tenho o direito de
continuar sendo nicaraguense.
Como se sabe, pelo mesmo decreto de
expulsão, todos os bens, propriedades e ativos em empresas dos agora apátridas
foram confiscados. Ainda no mês passado, até mesmo o casarão colonial da
Fundação Luisa Mercado, que já fora interditado no ano anterior, foi
vandalizado pela polícia de Ortega. Desde 2018, início dos protestos de massa
contra o autoritarismo, mais de 3 mil ONGs e instituições culturais foram fechadas
pelo regime. A Luisa Mercado não era uma qualquer. Fora presidida pelo escritor
Sergio Ramírez Mercado, prêmios Cervantes, Carlos Fuentes e Alfaguara de
Literatura, banido do país desde a publicação de seu romance “Tongolele no
sabía bailar”, que conta a história de um agente de Segurança Interna de um
Estado repressivo. Ramírez, que serviu o país como vice-presidente na fase
inicial do governo sandinista (1985-1990), foi uma das primeiras vozes a
apontar para a falência democrática do regime. Vive a dor do exílio na Espanha
e sofreu amargor adicional recente quando a Suprema Corte nicaraguense anulou
seu diploma de Direito. Pequenas vinganças de ditaduras rotas.
— A Nicarágua é quem eu sou, o que tenho e
nunca deixarei de ser nem de ter. É minha memória e minhas lembranças, minha
língua e meu escrever, minha luta e minha liberdade. Quanto mais tiram a
Nicarágua de mim, mais Nicarágua tenho em mim — escreveu em postagem no
Twitter.
Para o bispo Rolando Álvarez, que cumpre
pena de 26 anos na prisão La Modelo e nesta semana teve o direito de recusar
ser um expatriado a mais, seu endereço cívico é ali, na ditadura de Daniel
Ortega. Seus sapatos conhecem o caminho da luta.
Não há teoria da relatividade democrática
capaz de justificar tantas décadas de arbítrio. Melhor mudar de teoria,
presidente Lula. E de prática.
Lula está devendo um pedido de desculpa.
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