O Globo
‘Que bobagem!’ não é uma bobagem. É bem
fundamentado. Mas opta por matar a vaca para acabar com o carrapato
Uma das fórmulas mais elementares do humor
é a “regra de três”: estabeleça, reforce, subverta. Em outras palavras, crie
uma expectativa e a quebre. Algo como dizer que há coisas que não se devem
engolir de jeito nenhum, tipo bala Soft, caroço de jabuticaba e Marcio Pochmann
no IBGE.
Da mesma forma, existem receitas infalíveis para causar polêmica. Misture galhos com bagulhos, junte uma pitada de argumento de autoridade e polvilhe provocação a gosto. Se for uma obra, dê-lhe um título lacrador — como “Que bobagem!”, o recém-lançado livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, que trata de “pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”.
Retomando (e ampliando) o esquema muito
usado pelos comediantes de stand-up, os autores agruparam, no mesmo raciocínio,
deuses astronautas, cura quântica e homeopatia. Gwyneth Paltrow, Uri Geller e
acupuntura. Horóscopo, discos voadores e psicanálise. Assim como, lá no
primeiro parágrafo, o pensamento econômico desenvolvimentista é (nada
sutilmente) associado a algo que pode ter consequências desastrosas, o que
Pasternak e Orsi fizeram foi colocar no mesmo balaio uma abordagem
investigativa e terapêutica da mente, ramos da medicina tradicional, modismos e
crendices — nivelando tudo por baixo.
Freud até quis, no início, que suas teses
tivessem o mesmo status da física ou da biologia — e a psicanálise, por isso,
se pauta por princípios similares. Suas hipóteses se modificam conforme os
resultados obtidos. Seus conceitos são provisórios, passíveis de reelaboração.
Mais que uma teoria, é uma prática: o que não se comprova na experiência
clínica é deixado para trás. Afirmar que ela seja uma pseudociência deveria ter
o mesmo impacto de tentar (des)qualificá-la como pseudoarte ou pseudoesporte.
Ela não se define como ciência (ou
esporte, ou arte), mas como método de investigação e instrumento de cura.
Que ciência validará o inconsciente? Como
comprovar, em laboratório, a existência do “eu”, do “super eu” e do “isso” (que
atendem por ego, superego e id, na tradução empolada a que estamos
acostumados)? Como mensurar sua efetividade, se sua aplicação varia de sujeito
para sujeito?
A inclusão da psicanálise, como um todo, na
categoria (muito pouco científica...) de “bobagem” tem sua lógica: que
interesse despertaria um livro limitado a refutar alienígenas do passado,
benefícios da ingestão de morcegos para tratar problemas de visão ou a cura do
autismo, por meio de associação livre, no divã?
Tenta-se convencer o leitor de que fora da
ciência (ortodoxa, positivista) não há salvação. E isso — em que pesem as 22
páginas de referências bibliográficas — só faz com que reste a impressão de
estarmos diante de uma ciência que se impõe quase como religião.
Talvez nem tudo o que existe entre as
constelações (não familiares) do céu e cientistas com o pé na terra possa ser
medido com os instrumentos da microbiologia. Não ser científico é diferente de
ser anticientífico.
“Que bobagem!” não é uma bobagem. É bem
escrito, bem fundamentado. Mas opta por matar a vaca para acabar com o
carrapato. Espera-se que o volume 2 inclua feng shui, extrema-unção e marxismo.
E yo no creo em acupuntura, pero que
ela cura, cura.
Muito bom !
ResponderExcluirNão há como chupar jabuticaba sem engolir o caroço,quanto à psicanálise,eu prefiro o espiritismo.
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