sábado, 29 de julho de 2023

Eduardo Affonso - Provocação nada homeopática

O Globo

‘Que bobagem!’ não é uma bobagem. É bem fundamentado. Mas opta por matar a vaca para acabar com o carrapato

Uma das fórmulas mais elementares do humor é a “regra de três”: estabeleça, reforce, subverta. Em outras palavras, crie uma expectativa e a quebre. Algo como dizer que há coisas que não se devem engolir de jeito nenhum, tipo bala Soft, caroço de jabuticaba e Marcio Pochmann no IBGE.

Da mesma forma, existem receitas infalíveis para causar polêmica. Misture galhos com bagulhos, junte uma pitada de argumento de autoridade e polvilhe provocação a gosto. Se for uma obra, dê-lhe um título lacrador — como “Que bobagem!”, o recém-lançado livro de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, que trata de “pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”.

Retomando (e ampliando) o esquema muito usado pelos comediantes de stand-up, os autores agruparam, no mesmo raciocínio, deuses astronautas, cura quântica e homeopatia. Gwyneth Paltrow, Uri Geller e acupuntura. Horóscopo, discos voadores e psicanálise. Assim como, lá no primeiro parágrafo, o pensamento econômico desenvolvimentista é (nada sutilmente) associado a algo que pode ter consequências desastrosas, o que Pasternak e Orsi fizeram foi colocar no mesmo balaio uma abordagem investigativa e terapêutica da mente, ramos da medicina tradicional, modismos e crendices — nivelando tudo por baixo.

Freud até quis, no início, que suas teses tivessem o mesmo status da física ou da biologia — e a psicanálise, por isso, se pauta por princípios similares. Suas hipóteses se modificam conforme os resultados obtidos. Seus conceitos são provisórios, passíveis de reelaboração. Mais que uma teoria, é uma prática: o que não se comprova na experiência clínica é deixado para trás. Afirmar que ela seja uma pseudociência deveria ter o mesmo impacto de tentar (des)qualificá-la como pseudoarte ou pseudoesporte. Ela não se define como ciência (ou esporte, ou arte), mas como método de investigação e instrumento de cura.

Que ciência validará o inconsciente? Como comprovar, em laboratório, a existência do “eu”, do “super eu” e do “isso” (que atendem por ego, superego e id, na tradução empolada a que estamos acostumados)? Como mensurar sua efetividade, se sua aplicação varia de sujeito para sujeito?

A inclusão da psicanálise, como um todo, na categoria (muito pouco científica...) de “bobagem” tem sua lógica: que interesse despertaria um livro limitado a refutar alienígenas do passado, benefícios da ingestão de morcegos para tratar problemas de visão ou a cura do autismo, por meio de associação livre, no divã?

Tenta-se convencer o leitor de que fora da ciência (ortodoxa, positivista) não há salvação. E isso — em que pesem as 22 páginas de referências bibliográficas — só faz com que reste a impressão de estarmos diante de uma ciência que se impõe quase como religião.

Talvez nem tudo o que existe entre as constelações (não familiares) do céu e cientistas com o pé na terra possa ser medido com os instrumentos da microbiologia. Não ser científico é diferente de ser anticientífico.

“Que bobagem!” não é uma bobagem. É bem escrito, bem fundamentado. Mas opta por matar a vaca para acabar com o carrapato. Espera-se que o volume 2 inclua feng shui, extrema-unção e marxismo.

E yo no creo em acupuntura, pero que ela cura, cura.

 

2 comentários:

  1. Não há como chupar jabuticaba sem engolir o caroço,quanto à psicanálise,eu prefiro o espiritismo.

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