Folha de S. Paulo
Um perigoso sentimento surgiu em mim após Câmara aprovar reforma
Um sentimento estranho, perigoso, começou a
se esgueirar em meu peito nessa última semana. Teve a ver com a aprovação na
Câmara de uma Reforma
Tributária cuja necessidade e teor se discutem há 30 anos e que
por tanto tempo foi tida por impossível.
Some-se à aprovação outras possibilidades
auspiciosas: inflação sob controle e consequente queda paulatina dos juros;
marco fiscal aprovado dando previsibilidade para a trajetória dos gastos
públicos nos próximos anos; desmatamento da Amazônia caindo
paulatinamente, mostrando ao mundo que o compromisso ambiental brasileiro é
real; aprovação do acordo UE-Mercosul, abrindo nosso país aos ganhos de troca e
aos investimentos europeus.
É cedo para cravar o sucesso desses pontos. Cada um deles pode desandar facilmente, inclusive a reforma. E, no entanto, o sentimento cochicha: e se tudo der certo?
Se, de fato, se concretizarem, o Brasil
estará posicionado para crescer e receber investimentos. E isso num momento em
que o mundo está mais instável, a inflação está
em alta, Rússia, China e Índia cada vez mais imprevisíveis. Num mundo assim,
uma nação em desenvolvimento politicamente estável, fazendo sua lição de casa
econômica, tomando a dianteira no debate ambiental e distante de conflitos
militares torna-se ainda mais atrativa.
Se der tudo certo, Haddad terá
um histórico de políticas liberais superior ao de Paulo Guedes. Somemos
a esse panorama econômico ainda possíveis melhoras na educação básica —com a
universalização do ensino em tempo integral— e da saúde, com a retomada dos
números da vacinação; e o perigoso sentimento já exige ser nomeado: a
esperança.
É improdutivo discutir o quanto disso tudo
é mérito do Lula, salvo
para afastar as duas posições extremas e obviamente falsas: a de que Lula é um
grande sortudo que não tem nada a ver com as boas notícias e a de que Lula é o
"craque do jogo" cujo toque mágico resolve todos os problemas.
Lula teve sorte? Olha, alguns desses
fatores realmente não se devem à ação dele: a reforma veio do Congresso, o
controle da inflação foi obra do Banco Central, que trabalhou à revelia do
governo. O crescimento econômico puxado pelo agro ajuda a manter a agenda nos
trilhos.
O papel do Congresso, aliás, nunca foi tão
central: nosso Legislativo federal não é mera massa passiva esperando ser
moldada pelo governo. Tem uma agenda reformista de centro-direita e parte de
seu mérito não é só levar adiante essa e outras reformas, como barrar más
ideias que venham do governo: retrocesso no marco do saneamento, reversão de
privatizações, interferência no Banco Central.
Todos esses ímpetos têm sido derrubados.
Mas o próprio governo também fez sua parte:
a Reforma Tributária andou porque o governo a priorizou; o novo marco fiscal
foi produto da equipe econômica atual; a nova projeção do Brasil no mundo
focando o meio ambiente também é obra do governo. Os novos aportes ao Fundo
Amazônia, embora ainda pequenos, já mostram o avanço inegável.
Para equilibrar as expectativas, não
ignoremos também as áreas do governo das quais podem vir notícias não tão boas:
a política de preços nebulosa da Petrobras; o
possível uso dos bancos públicos para alavancar o crescimento via crédito, que
segue como promessa/ameaça. Como dito, cada um dos pontos positivos elencados
ainda pode desandar. É um risco criar grandes expectativas. Mas, ao menos neste
momento, é impossível não sentir aquele perigoso sentimento: a esperança de que
o Brasil pode dar certo.
Mesmo que seja Lula, seja Bolsonaro ou seja outro parecido com eles que esteja no governo, não importa, temos é que torcer pelo melhor. Mas não podemos abdicar das críticas, elas só não podem ser má-intencionadas e feitas por raivinha ou doença ideológica.
ResponderExcluirExatamente.
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