Correio Braziliense
Durante quase seis horas, o ex-ajudante de
ordem de Jair Bolsonaro negou-se a responder todas as perguntas, mesmo aquelas
mais inofensivas, tipo revelar sua idade
No dia 30 de setembro de 1937, a Voz do
Brasil, até hoje o programa radiofônico oficial do governo federal, anunciou
uma “bomba”, como se dizia antigamente: o general Góes Monteiro, chefe do
Estado-Maior do Exército brasileiro, revelou a descoberta de um plano cujo
objetivo era derrubar o presidente Getúlio Vargas. O Plano Cohen supostamente
era um projeto de tomada do poder pelo Partido Comunista Brasileiro, com apoio
de organizações comunistas internacionais.
Seria uma nova insurreição armada, semelhante à Intentona de 1935, na qual haveria greves de operários, manifestações estudantis, libertação de presos políticos, incêndio de casas e prédios públicos, saques e depredações e eliminação de autoridades civis e militares que se opusessem à tomada do poder. No dia seguinte, diante da “ameaça vermelha”, Vargas solicitou ao Congresso a decretação do Estado de Guerra, promoveu uma intensa perseguição aos comunistas e aos demais opositores políticos, como o governador gaúcho Flores da Cunha. No dia 10 de novembro, suspendeu as eleições marcadas para 1938 e o Brasil amanheceu sob a ditadura do Estado Novo.
Nos estertores desse regime autoritário,
porém, o general Góes Monteiro revelou que o Plano Cohen não passara de uma
fraude, para justificar a permanência de Vargas no poder. Para dar veracidade
ao plano, a cúpula militar responsável pela “descoberta” do documento deu-lhe o
nome do líder comunista Bela Cohen, que governara a Hungria entre março e julho
de 1919. O general contou que o documento havia sido escrito pelo capitão
Olímpio Mourão Filho, na época chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista
Brasileira (AIB), que apoiava o governo Vargas.
O plano fora elaborado a pedido de Plínio
Salgado, dirigente da AIB, que afirmou tratar-se de uma simulação de
insurreição comunista, apenas para efeito de estudos e utilizado exclusivamente
no âmbito interno da AIB. No entanto, uma cópia do documento chegou ao
conhecimento da cúpula das Forças Armadas. Mourão revelaria em suas memórias
que Góes Monteiro teve acesso ao documento por meio do general Álvaro Mariante,
e dele se apropriou. E justificou seu silêncio diante da fraude em razão da
disciplina militar a que estava obrigado.
Já Plínio Salgado, líder maior da AIB, que
participara ativamente dos preparativos do golpe de 1937, mais tarde, diria que
não revelou a fraude por temor de desmoralizar as Forças Armadas, única
instituição, segundo ele, capaz de conter o “perigo vermelho”. O capitão
Mourão, mais tarde, já general, viria a liderar o golpe militar que destituiu o
presidente João Goulart, em 1964, deslocando suas tropas de Juiz de Fora (MG)
para o Rio de Janeiro.
Bico calado
Cabe a pergunta: por que lembrar disso
agora? Porque a história serve para melhor compreender o presente e não repetir
os erros. O silêncio do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, o “coronel”
Mauro Cid nos bastidores do governo Bolsonaro, de quem era ajudante de ordem,
valeu por mil palavras na CPI que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro.
Durante quase seis horas, negou-se a
responder todas as perguntas, mesmo aquelas que não teriam nenhuma consequência
negativa — tipo revelar sua idade. O silêncio foi tão eloquente que o
presidente da CPI, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), estuda as “medidas
cabíveis” contra Cid por exorbitar em relação ao habeas corpus que fora
concedido pela ministra do Supremo Tribunal Federal(STF) Cármen Lúcia.
O habeas corpus garantia o direito de
permanecer calado quanto a fatos que o incriminasse, não os demais. Entretanto,
ao anunciar que se manteria calado, Cid revelou que já responde a oito
inquéritos no Supremo Tribunal Federal: envolvimento no 8 de janeiro, no caso
da falsificação do atestado de vacina de Bolsonaro, no rolo das jóias e outros
presentes da Arábia Saudita, no vazamento de informações sobre inquérito da
Polícia Federal (PF), nas fake news contra o STF, na organização de milícias
digitais e nos demais atos antidemocráticos durante o governo passado.
O silêncio de Cid é uma estratégia duvidosa
de defesa. A perícia no seu celular apreendido pela PF revelou uma minuta de
decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) a ser assinado por Jair Bolsonaro,
com objetivo de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva,
e conversas comprometedoras com o então subchefe de Estado Maior do Alto
Comando do Exército, coronel Jean Lawand Junior. Ambos estão muito enrolados.
Como podem se enrolar alguns que o
visitaram no quartel onde está preso, com regalias de oficial superior: o
ex-ministro da Saúde e deputado federal Eduardo Pazuello; o general ex-diretor
de logística do Ministério da Saúde, Ridalto Lúcio Fernandes; o ex-secretário
de Comunicação e advogado de Bolsonaro, Fabio Wajngarten; o ex-comandante do
Exército, general Júlio César de Arruda. A lista foi fornecida pelo Ministério
da Defesa, a pedido da CPI.
Nos bastidores da comissão, assessores
parlamentares do Exército fizeram apenas um pedido: não “esculachar” o militar,
que compareceu ao depoimento fardado, por recomendação do comando. A afirmação
de que Cid era um mero estafeta de Bolsonaro é furada. Hanna Arendt, ao
analisar o caso do criminoso nazista Adolf Eichmann, no seu julgamento em
Jerusalém, desmontou a tese de que um burocrata que cumpre ordens criminosas
não é culpado. Isso é a banalização do mal.
Um silêncio eloquente,como diria Reinaldo Azevedo.
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