segunda-feira, 10 de julho de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo - De Mussolini a Bolsonaro

Carta Capital

A construção social da mentira como alavanca de comando unifica os dois personagens de egos transtornados

O historiador Mimmo ­Franzinelli, conhecido por seus trabalhos sobre o fascismo, escreveu o livro Mussolini Racconta Mussolini, uma antologia de textos autobiográficos do Duce. Nas linhas e entrelinhas são expostas as deficiências de Mussolini como chefe de Estado e ressaltados os lados sombrios de sua personalidade. Diz Franzinelli que o Duce nunca foi “um grande estadista”, capaz de projetos para o desenvolvimento do país.

A antologia nos dá uma imagem dos humores, exaltações, surtos psicóticos, volúpia e paixões políticas e culturais do Chefe. “Nada a ver com um projeto de nação, mas impulsos irracionais oriundos de um ego sem limites, de uma convicção e de uma autoconvicção da própria ‘­vontade de poder’ que não conhecem limites.”

O historiador fala de personalidades limítrofes – semelhantes à de Hitler – e de um regime esquizofrênico, submetido aos altos e baixos dos “instintos” pelos quais Mussolini se julgava dotado de uma faculdade profética, como ele chamava suas cognições e iluminuras.

Mussolini, que fala ou escreve sobre si mesmo, tal como seu símile Bolsonaro implementa falsificações contínuas da realidade. É a construção social da mentira como alavanca de comando. Muda e modifica suas posições, sem nunca fazer escolhas clarividentes ou que atendam ao interesse público. Ele move-se de acordo com humores e conveniências de seu ego transtornado.

Os comentários que fez à sua amante, Clara Petacci, sobre as leis antijudaicas de 1938, foram significativos. Demonstravam irritação com a solidariedade de seus concidadãos com os perseguidos. “Esses judeus imundos, você tem que destruí-los todos…”

No livro Delatori, Franzinelli sublinha a responsabilidade do Duce na estruturação de um sistema que perseguia e monitorava o cidadão até mesmo na esfera privada. Dezenas de milhares de pessoas adaptaram-se a essa prática, cuja disseminação reflete o contexto sociopolítico.

Nos tempos de Mussolini, “a delação foi uma guerra travada em terra de ninguém, onde público e privado são confrontados numa dimensão sociopolítica de transformação das mentalidades. A experiência de pessoas comuns revela – na análise do impressionante material acumulado nos arquivos policiais – uma carga de perversidade socializada.

Interferências indiscretas minavam a confidencialidade da vida privada ao mobilizar denúncias, usadas para benefício pessoal. Isso resultou em insegurança e medo na opinião pública. O conhecido casual – até mesmo seu amigo – poderia entregá-lo à polícia”.

Mussolini estava convencido de que suas considerações negativas mudariam a realidade. Ele pensou que poderia alterar o curso da guerra com seus discursos. Os aduladores que o circundavam corroboravam suas crenças irrealistas. Em seus delírios, Mussolini começou a desenhar os uniformes das mais altas patentes militares. “Como se um fato estético pudesse mudar o curso fracassado da Itália no conflito mundial.”

Decidida por um placar incontestável no TSE, a inelegibilidade de Bolsonaro foi tratada por muitos otimistas como presságio de desarticulação do bolsonarismo. Devo registrar minhas dúvidas a respeito de tais convicções.

As visões personalistas padecem de um vício que ressalta as características do indivíduo e esconde as determinações sociais de sua personalidade. Desconfio que o bolsonarismo engendrou Bolsonaro e não o revés.

Peço licença para recordar o que escrevi nos idos de 2018, em plena campanha eleitoral. Dizia, então, que a ascensão de Bolsonaro recebeu os favores do desencanto, do ressentimento e do ódio. O desencanto transmutou-se em ressentimento e o ressentimento decantou suas moléculas no ódio indiscriminado, “contra tudo isso aí”.

Nas precipitações químicas do desencanto para o ressentimento e do ressentimento para o ódio criou-se a cadeia de reações entre a mentira e a crença: o kit gay e outras tantas ridicularias posaram sem resistência nas consciências trôpegas e ansiosas dos brasileiros desamparados e desinformados. O truque consistiu em proclamar mentiras em nome dos bons costumes e dos valores familiares. Esta é uma peculiaridade interessante da comunicação na sociedade de massa: a mentira, a falsificação e o engano deliberado foram incluídos no rol dos bons costumes e das virtudes familiares.

Quem jogou bola na várzea de São ­Paulo não precisa estudar Durkheim, Max Weber, Hannah Arendt ou Wilhelm ­Reich para identificar as gentes que sustentam as tropelias e ilegalidades de Bolsonaro et caterva. Escrevo gentes para significar um modo de ser, uma forma de sociabilidade definida a partir de uma rede de relações que enformam as subjetividades, suas palavras, seus gestos e sestros. 

Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.

5 comentários:

  1. Melhor deixar Beluzzo no canto dele, lá no Palmeiras, que seja.
    Confiscador de poupança, não se pode confiar.

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  2. Achei uma reflexão potente. O autor fulanizou em Bolsonaro ; realmente a reflexão cabe como uma luva para Bolsonaro, mas cabe muito bem para outros personalistas também!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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