Carta Capital*
Se não há gasto e renda, a receita
tributária capota
Os economistas William Anderson, Myles S. Wallace
e John T. Warner escreveram o artigo Gastos do Governo e a Receita de
Impostos: O Que Causa o Quê? (Government Spending and Taxation: What Causes
What?)
No cipoal que enreda os economistas em suas
indagações, esta pergunta aparentemente simples, se não simplória, faz sentido,
sobretudo, quando o debate a respeito da reforma
tributária alcança a dignidade dos editoriais da grande mídia
brasileira.
Em editorial no dia 17 de julho, a Folha
de S.Paulo lançou seus pensamentos na direção da Reforma Tributária. O
título da peça opinativa é revelador: “O Problema É o Gasto”.
As manifestações do senso comum indicam a prevalência das concepções que entendem a anterioridade da arrecadação de impostos em relação aos gastos do Estado. É a falácia que proclama “primeiro arrecada, depois gasta.”
O estudo dos autores mencionados acima
entra de sola nessa banalidade enganosa. “Os resultados sugerem que, mesmo
que as despesas não sejam totalmente cobertas pelas receitas fiscais, o aumento
das despesas levará a um aumento das receitas fiscais. Nossos resultados
concordam com a tese de que as despesas ‘causam’ receitas. Discordam fortemente
da hipótese de Friedman de que o aumento das receitas causa aumento das
despesas.”
Seria conveniente observar que, ao longo de
sua história, o valoroso e enigmático capitalismo empenhou-se na constituição
de sistemas monetários-financeiros-fiscais compatíveis com sua estrutura e
dinâmica.
Karl Marx observou: “Como a dívida pública
se respalda nas receitas estatais, que têm de cobrir os juros e demais
pagamentos anuais etc., o moderno sistema tributário converteu-se num
complemento necessário do sistema de empréstimos públicos… O grande papel que a
dívida pública e o sistema fiscal desempenham na capitalização da riqueza e na
expropriação das massas levou um bom número de escritores, como William Cobbett,
Doubleday e outros, a procurar erroneamente na dívida a causa principal da
miséria dos povos modernos”.
Em sua caminhada irreverente, John Maynard
Keynes observou: “Se por algum motivo os indivíduos que compõem a nação não
estão dispostos, cada um em sua capacidade privada, a gastar o suficiente para
empregar os recursos com os quais a nação é dotada, então é o governo,
representante coletivo de todos os indivíduos, que deve preencher a lacuna. Os
efeitos das despesas governamentais são precisamente os mesmos que os efeitos
da despesa dos indivíduos. Assim, o aumento da receita fiscal fornece a fonte
das despesas públicas extras. Por isso pode ser vantajoso para um governo
recorrer a um empréstimo do sistema bancário”.
Vou recorrer agora a Marriner Eccles,
presidente do Fed indicado por Roosevelt: “Na depressão não há liquidez,
exceto a que pode ser criada pelo Federal Reserve, o Banco Central, no
exercício de seu poder de emissão”. Em uma crise como a atual, os poderes
estatais de tributar e de administrar as condições de crédito e de liquidez
estão intimamente associados. Os entes soberanos desfrutam de maior liberdade
para financiar o gasto ao emitir títulos públicos, riqueza privada de maior
qualidade, segurança e liquidez. Os sistemas monetários e financeiros modernos
estão ancorados nos ativos públicos de ‘última instância’”.
O antropólogo Jack Mosse escreveu em seu recentíssimo livro Pound and Fury: “Há implicações que decorrem da visão da economia como um ‘pote de dinheiro’”. Essa visão, diz Mosse, “deforma as estruturas institucionais que moldam o funcionamento da sociedade; demoniza ou elogia indivíduos e grupos que são vistos como tirando (ou colocando) grana do pote nacional. É também uma visão que limita a imaginação política e econômica, vinculando-nos à ideia de que estamos sempre restritos pela quantidade de dinheiro no pote, e que devemos estar sempre procurando ‘equilibrar o orçamento’. Além disso, não concorda com a realidade de como funciona a nossa economia. O primeiro ponto a fazer é (reconhecer) que os governos, assim como os bancos privados, criam dinheiro do nada. A ideia de que simplesmente não há dinheiro suficiente no pote não faz sentido. É um mito”.
Na conformação da estrutura e dinâmica da
economia monetário-financeira-fiscal do capitalismo, o sistema tributário opera
como um “fundo garantidor” do gasto do Estado e da dívida pública. Mas não é
recomendável isolar essa função dos demais componentes do sistema
monetário-financeiro-fiscal. Ele só opera como “fundo garantidor” na interação
com as demais formas desse sistema.
Para compreender essa articulação
sistêmica, talvez seja oportuno observar as crises do capitalismo. A crise dos
mercados é a crise dos bancos, a crise dos bancos é a crise de crédito. A crise
de crédito é a crise do gasto. E a crise do gasto é a crise da renda e do
emprego. A crise da renda e do emprego é a derrocada do resultado fiscal. Se
não há gasto e renda, a receita tributária capota.
A rede de pagamentos administrada pelo
sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados. Ela se
constitui na infraestrutura que facilita o clearing e a liquidação de operações
entre os protagonistas da economia monetária. A preservação dessas
instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de
pagamentos, justifica as intervenções de última instância dos bancos centrais,
sob pena de uma crise de liquidez se transformar numa crise de crédito com
efeitos desastrosos sobre a chamada “economia real”.
No entanto, o debate necessário a respeito
das relações receitas-gastos do Estado afasta do proscênio os objetivos
centrais dos sistemas tributários: a distribuição de renda e a alocação de
recursos. Cresce a resistência à utilização de transferências sociais e
previdenciárias, aumentando ao mesmo tempo as restrições à tributação da renda
e da riqueza. Isso porque a globalização, ao tornar mais livre o espaço de
circulação da riqueza e da renda dos grupos integrados, desarticulou a velha
base tributária do Estado do Bem-Estar, erigida sobre a prevalência dos
impostos diretos sobre a renda e a riqueza.
Keynes entendia que o sistema fiscal deve
ser construído para permitir a redistribuição da renda dos mais abonados –
especialmente, mediante a taxação dos elevados rendimentos e das heranças –
para as classes menos favorecidas, com o objetivo de manter o consumo crescendo
à mesma velocidade da expansão da renda. Ele dizia que a socialização do
investimento e o correspondente ajustamento da propensão a consumir da
comunidade é a única forma de preservar os princípios da iniciativa individual.
Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital,
em 26 de julho de 2023.
Gostaria de ver uma resposta de Marcos Lisboa a este artigo.
ResponderExcluirTer uma resposta de Marcos Lisboa a este artigo de Belluzzo realmente seria muito bom, e serviria para atualizar a discussão.
ResponderExcluir■Tem um livro, publicado pela Editora Letras em 2019: "O Valor da Ideias".
▪Independentemente de haver resposta atual, vale ler a discussão que Marcos Lisboa e Samuel Pessoa fazem com vários defensores do desenvolvimentismo no livro "O Valor das Ideias/ Debate em tempos turbulentos".
Organizado pelos dois economistas, o livro é a publicação de discussões de Lisboa e Pessoa com outros profissionais que fazem essa discussão entre Estado Sociedade e Economia. Belluzzo e Haddad estão no livro.
Valeu pela dica, amigo.
ExcluirAbraço.
( Não sei se leu, mas também vou sugerir um livro: " Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil ? ", de Marcos Mendes, Elsevier Editora.
Se não conhece, acredito que vá gostar. )
O blog tem comentaristas de alto nível.
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