domingo, 2 de julho de 2023

Muniz Sodré* - O Recruta Zero

Folha de S. Paulo

Notório pela inconsistência mental, Bolsonaro surgiu como aberração num interregno político-social: um chupa-cabra de civilidade

Tornar alguém inelegível é uma forma branda de banimento. Nas sociedades tradicionais, o banido era expulso da cidade, o que implicava perda de solo próprio, logo, um nomadismo infamante.

Sócrates, condenado pelo conselho de justiça, preferiu beber veneno a deixar Atenas. Hoje existe o exílio forçado por circunstâncias políticas, mas o banimento propriamente dito comporta atenuações jurídicas, como a temporária inelegibilidade eleitoral.

A pena cabível ao ex-presidente pode ser apenas um começo, tendo em vista a sua folha corrida de atentados à saúde pública e à normalidade republicana. Subsiste, porém, um problema de natureza ético-política: neutraliza-se agora a pessoa física, mas sua imagem deletéria continuará produzindo efeitos na vida pública. E isso é exatamente o desejável no âmbito de sua inserção partidária: espera-se que, zerado em termos competitivos, ele ganhe força como cabo eleitoral.

Não é fenômeno novo. Há toda uma história de lideranças como Vargas, Perón e outras que, fora do poder, continuavam a destilar efeitos ideológicos de caráter populista, amplificados por máquinas de propaganda partidárias e jornalísticas. Nessa crônica não costuma sobressair um rol tão extenso de imputações deploráveis, capaz de perfilar o político como figura penal. Este, no entanto, é o caso do ex-presidente.

Para eleger MaduroChávez, já morto, não virou propriamente cabo eleitoral, mas entidade do popular espiritismo venezuelano, cultuada e incorporada por devotos. Trata-se de um verdadeiro prodígio transpolítico: o chavismo não é nenhuma ideologia bolivariana, é uma seita. Apertar a mão de Maduro é entrar na corrente mediúnica.

Entre nós, apesar de toda a chantagem politiqueira em curso, vive-se agora um estado de coisas com razoabilidade econômica e alívio da tensão psicossocial: a nação escapou por um triz de mergulhar no inaturável. No balanço que se faz, porém, o saldo é tão ignominioso quanto preocupante.

Intriga a consciência de boa memória o fato de que o ex-presidente, embora extinto eleitoralmente, possa dispor do capital político exibido nas pesquisas. Notório pela inconsistência mental, ele surgiu como aberração num interregno político-social: um chupa-cabra de civilidade. Teria sido escolhido por isso mesmo, como o Recruta Zero dos quadrinhos, cujo horizonte era o moroso Sargento Tainha. No limite, um desaguadouro de virulência, influencer do vácuo.

Mas se espera que o zeramento jurídico-político não prejudique seus espelhamentos populares, os seguidores, ainda irradiados pelo bolsa-sadismo das redes sociais em que o passado tóxico cria futuro e pessoas adoecem. De fato, é tarefa tão árdua banir o peso de coisas mortas que elas terminam acumulando-se como capital político na miséria da dignidade civil.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

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