quarta-feira, 19 de julho de 2023

Nicolau da Rocha Cavalcanti - O perigoso encanto da indignação

O Estado de S. Paulo

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se

Por suas desigualdades, preconceitos, privilégios, incertezas e injustiças, o Brasil oferece muitíssimas ocasiões de indignação. E, verdade seja dita, nós sabemos aproveitar as oportunidades. Não temos receio de expor nossa revolta e perplexidade diante dos variados absurdos que testemunhamos frequentemente.

A proficiência brasileira na indignação é refletida em expressões famosas, que fazem parte de nossa identidade nacional. O Brasil não é para amadores. No Brasil, até o passado é incerto.

Podemos ser sinceros? Indignar-se é muito bom. Quando nos indignamos, sentimo-nos valentes, corajosos, despertos, responsáveis, comprometidos com o interesse público, não ingênuos, não manipulados. De alguma forma, indignar-se é colocar-se num lugar superior. Significa dizer: nesta situação, eu faria diferente. Se tivesse poder, se ocupasse aquele cargo, eu atuaria de modo muito melhor, mais digno, mais assertivo. A mensagem é unívoca. Se dependesse de mim, o Brasil seria bem melhor.

Mas a indignação é sentimento complexo, não é só superioridade. Com frequência, ela também representa o reconhecimento de que não fomos capazes de vislumbrar sentido em determinada situação. É o absurdo – o fato sem sentido – o que nos indigna. Certamente, isso diz muito sobre o que suscitou nossa indignação, mas também sobre nossa própria percepção. Parece-nos impossível que aquilo seja de determinada maneira e, por isso, nos indignamos. A indignação pode, portanto, representar certo desconhecimento sobre o tema em questão.

Eis um primeiro ponto que gostaria de destacar. Se diariamente mais coisas nos indignam – por exemplo, no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na Presidência da República –, isso pode ser sintoma da situação do País, como também pode sinalizar nossa dificuldade de entender muitos temas. Podemos nos indignar com assuntos de que temos inteiro domínio, mas o fato é que, quanto menos compreendemos, mais assuntos são capazes de despertar nossa indignação.

No mundo da advocacia – especialmente na esfera do contencioso –, é muito comum a reação de indignação. Pelo tempo que os processos demoram. Pelas petições que a outra parte escreve. Pelas decisões que os juízes proferem. Muitas sentenças parecemnos absurdas, desconectadas dos fatos e à revelia da lei.

São muitas as decisões judiciais que afrontam profundamente nossa percepção do que deveria ser a Justiça, mas – e aqui está um segundo ponto a ser destacado – só com indignação não se faz um recurso. A mera revolta é incapaz de expor o erro contido na sentença que nos parece absurda. É preciso identificar as causas que levaram o juiz àquela decisão. É preciso entender os argumentos e os motivos que moldaram a compreensão do magistrado. Por mais absurda que seja, a decisão judicial tem de se tornar absolutamente compreensível aos nossos olhos. Só assim será possível refutar bem os seus erros.

A mesma dinâmica aplicase aos outros campos da vida pública, também ao político. A indignação é necessária, mas é insuficiente por si só para transformar a realidade. Ela pode ser uma boa e justa reação inicial, mas é um engano satisfazer-se com ela. É necessário ir além. A indignação é uma resposta emocional e, para detectar as causas da situação revoltante, a reflexão é imprescindível.

Trata-se de um dos grandes desafios contemporâneos. Temos muitos espaços para expressar indignação. As redes sociais são especialmente propícias para isso. No entanto, há carência de âmbitos de reflexão, onde sejamos incentivados não somente a julgar, a condenar e a lacrar, mas a entender os processos, as dinâmicas, as perspectivas.

Às vezes, o ponto de vista inicial já é um empecilho. Ver de cara o outro lado políticoideológico como um completo absurdo é dificultar, ou mesmo impedir, a compreensão sobre os fatores que o tornam socialmente relevante ou eleitoralmente competitivo, por exemplo. Nesse sentido, um ambiente cultural que estimula aprioristicamente a indignação prejudica a reflexão, diminuindo paradoxalmente as possibilidades de transformação e de melhora.

O jornalismo tem papel fundamental, como espaço de compreensão qualificada do tempo presente, sem cair na mera incitação à indignação. Infelizmente, não raro, o que se vê é a busca pelo engajamento a partir do escândalo. O jornalismo de denúncia é importante, mas, se se contentasse com a denúncia, contribuiria para manter as coisas como estão. Um bom jornal leva-nos a ver mais coisas – mais aspectos e mais perspectivas – do que, a princípio, gostaríamos de ver. A realidade é mais rica do que as cores binárias de nossa cólera.

Se o Brasil for apenas o país da indignação, ele continuará a ser exatamente isto: um país com muitos motivos para indignar-se. A realidade que nos revolta deve conduzir também à reflexão, ao estudo, ao diálogo. Só assim poderemos ter um diagnóstico maduro e realista dos problemas que tanto nos incomodam para, de fato, enfrentá-los. A indignação, faísca genuinamente humana, deve desencadear soluções, e não apenas nos ruborizar.

Um comentário:

  1. Alguns participantes deste blog poderiam se beneficiar bastante da leitura deste magnífico artigo.

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