sexta-feira, 21 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Governo precisa manter controle de pastas estratégicas

O Globo

Entregar ao Centrão ministérios como o da Saúde em uma reforma desfiguraria a administração

Em nome da governabilidade, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prepara uma reformulação na Esplanada dos Ministérios, com maior espaço para partidos que não estavam com o PT na campanha eleitoral de 2022. A decisão faz todo o sentido para que o governo tenha um bloco de sustentação no Congresso e, assim, pare de negociar apoio a cada votação.

Embora necessária, a adesão em maior peso do Centrão não pode se dar a qualquer preço. Para evitar eventuais acusações de estelionato eleitoral, ministérios estratégicos precisam permanecer sob o comando daqueles ligados ao grupo vitorioso em outubro.

Num sistema presidencialista e multipartidário, como o brasileiro, a regra é o presidente ser eleito sem maioria no Parlamento. Por isso a necessidade, comum a todos os vencedores desde a primeira eleição direta em 1989, de formar uma coalizão.

No passado, porém, a construção da base era menos complexa, porque o tamanho médio das bancadas era maior e caciques tinham mais controle sobre como elas votavam. Com o apoio de apenas três partidos, PFL, MDB e PPB, o tucano Fernando Henrique Cardoso obteve maioria de quase 70%. Em seu primeiro mandato, Lula governou com seis partidos.

De lá para cá, a costura política ficou mais difícil. Mudanças na legislação e no comportamento dos eleitores incentivaram transformações no “presidencialismo de coalizão”, termo criado pelo sociólogo Sérgio Abranches em artigo de 1988. Apesar da redução da fragmentação partidária, o Congresso passou a ter um número maior de bancadas médias. Elas formam blocos e federações, mas isso não necessariamente significa coesão.

Diante do problema que ajudou a criar, o governo anterior decidiu abdicar de fazer política, ao entregar o orçamento secreto às lideranças do Congresso. Em certa medida, a reforma ministerial agora em gestação tenta escrever um novo capítulo no presidencialismo de coalizão, com a maior presença de políticos de diferentes partidos pertencentes ao Centrão dentro do governo, mesmo sem a garantia de apoio amplo das respectivas bancadas. A meta tem os seus desafios.

Ávidos por ministérios com verbas vultosas para gastar, eles miram os maiores alvos, como Saúde, Desenvolvimento e Assistência Social e Educação. Mas mesmo que os partidos prestes a entrar ou elevar o poder na Esplanada tivessem nomes com capacidade comprovada para assumir essas pastas, não seria a melhor solução.

Governos se definem pelos ministérios que consideram intocáveis. Isso valia no passado e continua valendo hoje. Os partidos que agora tentam negociar o comando de pastas estratégicas são os mesmos que estavam nesses postos no governo Bolsonaro.

Por óbvio, a reforma ministerial só terá chance de sucesso se Lula oferecer postos do interesse de quem deseja atrair. Nesse sentido, o PT e os partidos aliados deverão ceder algumas de suas pastas. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, reconheceu ao GLOBO que o governo precisa ter base no Congresso e está disposto a perder espaço. Esse é, sem dúvida, o primeiro passo.

Redução de mortes violentas é positiva, mas combate ao crime ainda desafia

O Globo

É estarrecedor que no ano passado o Brasil tenha registrado o maior número de estupros da história

Contém boas e más notícias a nova edição do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A boa é que o país registrou no ano passado o menor número de mortes violentas (homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte, mortes decorrentes de intervenções policiais) da última década: 47.508. A taxa de mortalidade ficou em 23,4 por 100 mil habitantes, uma queda de 2,4% em relação ao ano anterior. A péssima é que em 2022 aconteceu o maior número de estupros da História. Foram 74.930 casos, um aumento de 8,2% em relação a 2021.

A tendência de queda nas mortes violentas vem desde 2018 e pode ser explicada por vários motivos: mudança no perfil da população brasileira, com diminuição do número de adolescentes e jovens, grupo de maior risco; políticas públicas implantadas por estados; períodos de armistício na guerra entre quadrilhas. Claro que qualquer redução da violência é bem-vinda, mas o Brasil ainda apresenta indicadores inaceitáveis. Basta dizer que, a cada hora, cinco brasileiros são assassinados.

Há que ressaltar ainda que as realidades são diferentes conforme o estado e a região. No Nordeste, houve redução de 4,5% na taxa de mortes violentas por 100 mil habitantes. Já as regiões Sul, Norte e Centro-Oeste apresentaram aumento (3,4%, 2,7% e 0,8% respectivamente). Segundo o Anuário, o Amapá, com 50,6 mortes por 100 mil habitantes (mais que dobro da média nacional), é o estado mais violento. São Paulo (8,4) e Santa Catarina (9,1) surgem como os menos violentos.

Na contramão de outros indicadores, o aumento no número de estupros é estarrecedor. A cada hora, oito vítimas foram estupradas em 2022. A maior parte (61,4%) tinha menos de 14 anos. Convém lembrar que essas estatísticas representam apenas os casos registrados em delegacias, e a subnotificação é alta nesse tipo de crime. Está claro que os governos precisam formular políticas públicas específicas para combater essa chaga que avilta o Brasil.

O combate à violência continua sendo um desafio. Os tiroteios constantes, as balas perdidas, os assassinatos a qualquer hora do dia e em qualquer lugar não dão aos brasileiros a sensação de que a situação está melhorando. É verdade que há experiências bem-sucedidas, mas de modo geral faltam políticas para enfrentar as quadrilhas. As que existem muitas vezes são equivocadas, baseadas mais na truculência do que na inteligência e no planejamento.

Está certo o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, ao cobrar a implementação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Aprovado em 2018, ele prevê uma integração maior entre os estados. O Brasil só conseguirá domar a violência quando tiver uma estratégia nacional, que envolva todas as forças de segurança. Sabe-se que as facções do Sudeste agem em todo o país — e até no exterior. Enquanto o problema não for tratado de forma distinta, o Brasil pode até obter reduções nas taxas de mortes, mas dificilmente conseguirá convencer o cidadão de que ele está mais seguro.

Um viés de investimento ainda não mapeado

Valor Econômico

Com a retomada da discussão sobre a reforma tributária dedicada à renda, a sociedade tem uma oportunidade para discutir se há ajustes a serem feitos

Qualquer ser humano, na hora de tomar suas decisões financeiras, já tem que lidar com seus vieses psicológicos e cognitivos, conforme o campo da psicologia econômica vem documentando há algumas décadas. Estamos falando de comportamentos como efeito manada, Fomo (fear of missing out), excesso de confiança e outros que, como se sabe, podem levar os indivíduos a tomar decisões ineficientes ou pouco racionais na hora de investir.

Aqui no Brasil, porém, há outro viés que interfere na decisão das pessoas na hora de decidir o que fazer com suas aplicações financeiras, que é a assimetria regulatória entre os produtos. Dados divulgados pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) mostram uma retirada vultosa de recursos de fundos de investimento, numa soma que alcançou R$ 379 bilhões nos últimos 12 meses até junho. Sem olhar os dados no detalhe, alguém poderia imaginar que, numa época de Selic elevada, os investidores brasileiros estão fugindo do risco de aplicações mais voláteis em um período de incerteza nos mercados globais, e que tiraram os recursos que estavam em fundos multimercados e de ações. Mas embora isso também seja verdade, o fato é que a maior parte dos resgates se concentra em fundos de renda fixa. Foram sacados R$ 256 bilhões em 12 meses. E isso justo quando a taxa básica de juros está em 13,75% ao ano, nível que tanto incomoda o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e gera atritos recorrentes com o presidente do BC, Roberto Campos Neto.

Com uma remuneração tão alta na renda fixa, por que os investidores estão resgatando suas aplicações? E a resposta é que não estão resgatando. Mas migrando os recursos para outro tipo de aplicação de renda fixa, que tem regulação diferente. Outro dado recém-divulgado, desta vez pela B3, aponta que as Letras de Crédito imobiliário (LCIs) e Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs) foram os produtos de maior destaque de captação também no período de 12 meses até junho. Foram R$ 273 bilhões em dinheiro novo entrando nessas aplicações nesse intervalo, com o estoque investido nesses dois produtos saltando 61% em um ano, para mais de R$ 722 bilhões. Não que seja uma novidade, mas as LCIs e LCAs gozam de duas importantes diferenças ante os fundos de investimento. Elas não têm marcação a mercado e, portanto, o valor que o cliente vê aplicado na conta não oscila diariamente, e são isentas de Imposto de Renda sobre o ganho. Já os fundos de investimento precisam registrar seus investimentos, tanto em títulos públicos quanto em corporativos (inclusive os feitos em papéis de captação bancária), pelo valor de mercado, o que faz o preço de suas cotas sacudir quando as condições de mercado mudam para pior. Além disso, estão sujeitos a tributação, inclusive pelo come-cotas, que penaliza em 15% o retorno das aplicações de investidores não multimilionários a cada seis meses (lembrando que os fundos exclusivos ainda escapam desta tributação antes do resgate). Esse diferencial competitivo das LCIs e LCAs, embora não seja novo, se mostra ainda maior em um ambiente de taxa de juros mais elevada - e hoje com alcance facilitado pelas plataformas digitais de investimento. É uma questão matemática. Os 15% de IR que na melhor das hipóteses incidem sobre o ganho em fundos de renda fixa podem representar 0,3 ponto percentual ao ano se a Selic estiver a 2%, como ocorreu no auge da pandemia, ou mais de 2 pontos percentuais com a Selic nos atuais 13,75% ao ano.

Apenas trocando a aplicação de um produto menos eficiente do ponto de vista tributário por outro mais favorecido, mas permanecendo na mesma classe de ativos, o investidor já ganha mais 2 pontos de retorno no ano. De quebra, ainda escapa de ver seu investimento oscilar durante a jornada - e aí a psicologia econômica explica essa relutância em se encarar a realidade. Há que se dizer que provavelmente fez uma escolha certa o investidor que fez essa troca, a depender do seu horizonte de investimento, de sua necessidade de liquidez - já que muitas LCIs e LCAs só podem ser resgatadas no vencimento -, e do seu apetite a risco de crédito (lembrando que nem todo emissor honra seus compromissos e que o Fundo Garantidor de Créditos tem cobertura limitada a R$ 250 mil).Mas há que se pensar se é isso que se deseja do ponto de vista regulatório. Que um investimento tenha vantagem sobre o outro não pela sua qualidade em si, mas pela diferença de regras a que está sujeito. Para citar mais um exemplo, recentemente o Tesouro Nacional tomou a iniciativa de lançar títulos públicos desenhados para os brasileiros programarem sua aposentadoria. Chamado de Tesouro Renda+, o produto é de longo prazo e prevê amortizações em parcelas mensais ao longo de 20 anos, e que funcionarão como renda complementar ao INSS para os compradores.

O investimento não tem, porém, nenhuma vantagem fiscal como os tradicionais PGBL e VGBL, e que carregam consigo, por outro lado, os custos e taxas ligados à contratação de um plano de previdência. Com a perspectiva de que a discussão sobre a reforma tributária dedicada à renda seja retomada no segundo semestre, a sociedade tem uma oportunidade para discutir quais desses incentivos tributários criados há bastante tempo atingiram os objetivos inicialmente esperados, e se há ajustes a serem feitos, seja com sua revisão ou com possível equiparação à de outros produtos, para que a tributação seja neutra na tomada de decisão dos indivíduos.

Ambiente tenso

Folha de S. Paulo

Lula diz não ceder em acordo entre Mercosul e UE, mas pode ter de voltar atrás

O giro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pela Europa, no que diz respeito ao meio ambiente, foi marcado por alguma tensão e pouco resultado. O mandatário falou grosso, saiu de mãos vazias e não demorará a ter sua gestão cobrada por coerência nessa matéria.

O governo brasileiro tinha expectativa de ver a Dinamarca contribuir com o Fundo Amazônia, reativado após o congelamento obtuso, por Jair Bolsonaro (PL), do dispositivo bilionário que recompensa o Brasil por preservar florestas. O desembolso não ocorreu, mas a primeira-ministra Mette Frederiksen declarou empenhar-se por incluir algum valor no orçamento.

O fundo destravado já havia colhido promessas de doações equivalentes a R$ 108 milhões da União Europeia (UE), R$ 500 milhões do Reino Unido e R$ 2,5 bilhões dos EUA. Antes de ser paralisado, Noruega e Alemanha haviam depositado R$ 3,3 bilhões.

O ponto focal do périplo europeu foi a reunião de cúpula com 33 países da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e 25 da UE, em Bruxelas. Ao final do encontro, em entrevista coletiva, o petista elevou o tom ao abordar o acordo Mercosul-UE.

O ponto de atrito está na carta adicional sobre o acordo enviada pela UE em março, tratando de padrões ambientais a serem exigidos. Em abril, o Parlamento Europeu já havia aprovado lei proibindo produtos oriundos de desmatamento —criticada por parte do setor agropecuário no Brasil.

"Era uma carta que ameaçava com punição se a gente não cumprisse determinados requisitos ambientais. Tem que haver dois parceiros estratégicos, não discutir ameaças", queixou-se Lula na entrevista. Ele enviará uma contraproposta, mas assegurou que não vai ceder na questão.

O tempo dirá. Não se descarta que Lula esteja a engrossar a voz mais no intuito de manter trunfo de negociação, talvez para tentar salvar o que puder da política de compras estatais para favorecer produtos nacionais. Nada a estranhar num governo que vê, equivocamente, o Estado como principal agente da atividade econômica.

Péssimo será, entretanto, se Brasília seguir implicando com cláusulas ambientais por subscrever a velha alegação do agronegócio de que se trataria do também antigo protecionismo europeu. Se assim foi no passado, deixou de ser.

Combater mudanças climáticas (e, portanto, o desmatamento) representa hoje anseio legítimo de muitas nações, um imperativo ditado pela ciência. O próprio governo brasileiro promete desmatamento zero; assim, precisa adequar sua ação estratégica no tema, por coerência e por não haver meia volta nessa marcha global.

Cracolândia ambulante

Folha de S. Paulo

Estado e município batem cabeça sobre política que enfrente o problema em SP

Não há bala de prata para resolver um problema complexo cuja causa é multifatorial, como a cracolândia na cidade de São Paulo. Mas governo do estado e prefeitura parecem confusos até mesmo para decidir qual caminho seguir.

Recentemente, o Palácio dos Bandeirantes esteve calado, recusando entrevistas sobre o assunto.

O silêncio foi quebrado na terça (19), com o anúncio de que o governo moveria a aglomeração de usuários do bairro Santa Ifigênia para o Bom Retiro, ambos no centro.

O objetivo seria afastar a cracolândia de áreas residenciais e comerciais e aproximá-la de equipamentos públicos como o Complexo Prates, da Prefeitura, que integra uma unidade de acolhida para pessoas em situação de rua, um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e uma unidade da Assistência Médica Ambulatorial.

Contudo, na quarta (20), o prefeito Ricardo Nunes (MDB) disse que não havia sido informado sobre a intenção do estado.

A abordagem da prefeitura tem sido a do confronto para desfazer grandes aglomerações, como a megaoperação policial na Praça Princesa Isabel em maio de 2022 —o que facilitaria o contato de assistentes sociais com os usuários.

O resultado, entretanto, foi a dispersão da cracolândia por bairros do centro como Campos Elíseos e Santa Ifigênia, gerando transtorno para comerciantes e moradores. Aumentaram os ataques a lojas e os furtos de celulares de motoristas e de passageiros de ônibus.

Enquanto isso, moradores do Bom Retiro se mobilizaram por meio de um abaixo-assinado contendo milhares de adesões.

Com a repercussão, Tarcísio recuou. Na quinta (20), o governo desistiu da transferência. Em nota oficial, disse que novas possibilidades para solucionar a questão "serão divulgadas em breve".

Mudar o problema de lugar está longe de resolvê-lo. A prisão de traficantes também não é panaceia, já que novos jovens são recrutados por organizações criminosas.

É preciso aumentar o policiamento para coibir furtos, mas, enquanto os poderes municipal e estadual não se entenderem para implementar um programa integrado e interdisplinar de longo prazo (com saúde, segurança, moradia e geração de renda), a cracolândia continuará perambulando pela cidade.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado, desde abril, o número de usuários no centro passou de 800 para 1.100.

O escandaloso jeitinho de tolerar o ilegal

O Estado de S. Paulo

Plano do governo de taxar apostas online é mais um sintoma da pouca importância que se dá à lei. O jogo continua sendo ilegal. Eventual legalização deve ser debatida antes no Congresso

Os jogos de azar são ilegais no Brasil. A Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), que proibiu a jogatina no País, segue vigente. No entanto, o governo federal anunciou que vai editar uma medida provisória (MP) para taxar as apostas online. Os porcentuais de cobrança já estariam definidos: 16% sobre a receita obtida com os jogos e 30% de Imposto de Renda sobre o prêmio, com isenção até R$ 2.112. Também já foi pensado o destino do dinheiro a ser arrecadado com as apostas: seguridade social (10%), Fundo Nacional de Segurança Pública (2,55%), clubes (1,63%), Ministério do Esporte (1%) e educação fundamental (0,82%).

A rigor, o plano do governo federal é uma aberração. O poder público não pode ser indiferente à lei. Não faz sentido cobrar imposto de atividades ilegais, como o tráfico de drogas ou a venda de órgãos humanos. Atividades ilegais devem ser reprimidas, e não incluídas entre as fontes de receita. No entanto, em vez de ser tratado como um escândalo, o caso da taxação das apostas está sendo visto com normalidade por muita gente. E isso diz muito sobre como as coisas funcionam no País.

Houve inúmeras tentativas para legalizar os jogos de azar no País, mas todas elas fracassaram. No ano passado, a Câmara chegou a aprovar, sem maiores discussões, um projeto de lei legalizando a jogatina, mas o Senado, de forma prudente, não votou a proposta, preferindo esperar. Até aqui, portanto, se verifica a vontade inequívoca do Legislativo brasileiro de proibir o jogo. Em 2015, reiterando essa disposição, o Congresso alterou o Decreto-Lei 3.688/1941 para incluir na pena de multa “quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador”. Em vez de liberar, ele ampliou e reforçou a proibição.

No entanto, sem maiores alardes – sem o necessário debate, próprio do regime democrático – , o lobby pela legalização dos jogos conseguiu incluir, em 2018, no texto da MP 846/2018, sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública, cinco artigos sobre “apostas de quota fixa”, “sob a forma de serviço público exclusivo da União”, a serem exploradas mediante autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Foi a velha e conhecida manobra de aproveitar a tramitação célere de MP para aprovar um tema politicamente complicado.

Com isso, desde 2018, passou a existir na legislação brasileira uma autorização genérica para “apostas de quota fixa”. No entanto, o governo nunca regulamentou o tema. E, pelo próprio teor da redação final da MP 846/2018 (depois convertida na Lei 13.756/18), era preciso dispor de uma regulamentação, já que a atividade só pode ser explorada mediante autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Ou seja, enquanto não houver a devida regulamentação, nenhuma empresa pode promover apostas no País. No entanto, a entrada em vigor da Lei 13.756/2018 foi vista como uma liberação irrestrita da jogatina online.

Trata-se de fenômeno realmente peculiar. Nenhuma empresa que oferece apostas online no Brasil cumpre os requisitos da Lei 13.756/2018. No entanto, todas elas entenderam que a nova lei havia lhes concedido o direito de realizar apostas no País. Com isso, sem mudar uma vírgula da Lei de Contravenções Penais, a jogatina foi “legalizada” no País. Se alguém tem dúvida, é só assistir a uns minutos de televisão no Brasil.

No entanto, a escandalosa interpretação da lei não foi exclusividade das casas de apostas online. O Ministério Público parece não ter visto maiores problemas. E o próprio governo, ao reparar no sucesso das apostas esportivas, em vez de buscar a aplicação da lei, viu na jogatina uma nova fonte de receita.

Jogo de azar é tema complexo, com muitos efeitos sociais e também sobre o esporte, como mostram os esquemas de manipulação de partidas. Não cabe solução sorrateira. E a voz final não pode ser das casas de apostas nem do governo de plantão. Eventual legalização precisa ser debatida com calma no Congresso. Qualquer atalho viola o regime democrático.

Aportes privados na gestão do SUS

O Estado de S. Paulo

Saúde é direito de todos, mas, como na educação, serviços de qualidade estão restritos aos poucos que conseguem pagar. A iniciativa privada pode aportar excelência à gestão do SUS

 “A saúde é direito de todos e dever do Estado”, diz a Constituição. Para satisfazer esse direito foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS). Emulando o modelo britânico (NHS), o SUS se tornou o maior sistema de saúde universal e gratuito do planeta. Mas o Brasil é um dos 10 países mais desiguais do mundo, e essa desigualdade tem reflexos flagrantes na saúde. O SUS serve cerca de 75% da população brasileira. Mas apenas 46% dos gastos brasileiros com saúde são direcionados a ele. Assim, na saúde perpetua-se o modelo “Belíndia” – o país quimérico que combina a Bélgica e a Índia –, em que uma parcela concentrada da população paga caro por serviços de qualidade, enquanto a grande maioria recebe do Estado serviços gratuitos, mas precários. Como reduzir esse fosso?

Uma medida incontornável, tanto mais se considerando o envelhecimento da população, é ampliar os gastos públicos com saúde. Nos últimos dez anos, o gasto com saúde no Brasil aumentou, atingindo 9,6% do PIB – mais do que a média da OCDE, de 8,8%. Mas, como se viu, a maioria desse gasto é privada e atende poucos, deixando o SUS subfinanciado. A parcela do Orçamento público à saúde, 10,5%, é menor do que a média da OCDE, de 15,3%.

O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) estima que, para cobrir as necessidades de financiamento do SUS, será preciso aumentar o gasto público dos atuais 3,9% do PIB para 6% até 2030. O Ieps recomenda quatro estratégias para tanto: reduzir substancialmente renúncias fiscais em saúde; realocar recursos de outras áreas; fomentar o aumento de gastos por outras entidades do pacto federativo; e ampliar a tributação de setores econômicos que inflijam custos sobre a saúde, como bebidas açucaradas, alimentos ultraprocessados, álcool e tabaco.

Outra necessidade concomitante é melhorar a gestão dos recursos públicos. O Banco Mundial estima que 30% dos recursos da União destinados ao SUS são mal empregados. Aqui as parcerias com o setor privado podem ter um papel crucial.

Um modelo importante têm sido as contratualizações, nas quais Organizações Sociais de Saúde e instituições filantrópicas gerenciam os serviços de saúde pública. Segundo o ranking da Organização Pan-Americana da Saúde, dos 17 hospitais públicos mais bem avaliados, 15 têm gestão privada.

Outra possibilidade é a transferência de expertise para o SUS por parte de hospitais de referência. Com esse objetivo, foi criado em 2009 o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS). Por meio dele, seis hospitais filantrópicos de excelência reconhecida pelo Ministério da Saúde (Einstein, Oswaldo Cruz, SírioLibanês, HCor, Beneficência Portuguesa e Moinhos de Vento) atuam em projetos de capacitação de recursos humanos, pesquisa, avaliação e incorporação de tecnologias, gestão e assistência especializada.

Os projetos são geridos com recursos correspondentes à isenção fiscal de impostos como PIS, Cofins e cota patronal do INSS. Em mais de 13 anos, foram investidos cerca de R$ 7,9 bilhões, em cerca de 750 projetos. Entre os benefícios destacam-se a redução de filas de espera; qualificação de profissionais; pesquisas de interesse da saúde pública; gestão do cuidado apoiado por inteligência artificial e melhorias de gestão. Segundo levantamento reportado pelo Estado, um dos programas – o Saúde em Nossas Mãos, de treinamento de profissionais em UTIs para combater um dos grandes problemas das unidades fechadas, a infecção hospitalar – evitou em 6 anos mais de 11 mil casos de infecção e salvou mais de 4 mil pessoas. Calcula-se que o projeto tenha gerado uma economia de R$ 548 milhões aos cofres públicos.

Assim como a saúde, há direitos previstos pela Constituição cujo acesso, em muitos casos, já está praticamente universalizado. Mas falta atingir a excelência. Há um amplo leque de serviços públicos que podem ser geridos ou qualificados pela iniciativa privada. Experiências como a do Proadi deveriam ser levadas em conta nos serviços públicos de infraestrutura, cultura, seguridade social e, sobretudo, educação.

O incrível caso da ITA

O Estado de S. Paulo

Era tão previsível que a companhia aérea iria falir que espanta ter sido autorizada a operar

A decretação de falência da Itapemirim Transportes Aéreos (ITA) pela 1.ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo não surpreendeu absolutamente ninguém. Afinal, a empresa já estava inoperante desde 17 de dezembro de 2020, quando, às vésperas do Natal, anunciou de supetão – aí sim, para perplexidade de milhares de passageiros, muitos deles em áreas de embarque de aeroportos – a suspensão “temporária” de seus voos, que jamais conseguiu retomar.

O que mais impressiona nesse caso é que nada disso suscitou uma discussão séria sobre eventuais mudanças nas normas e nos protocolos para garantir a segurança e os direitos de consumidores, funcionários e demais agentes do setor. Houve grande celeuma nas semanas seguintes à suspensão abrupta da operação, pouco mais de cinco meses depois do voo inaugural, mas, ao que se saiba, não foi tomada nenhuma providência para aperfeiçoar o regramento para operação em uma área que requer expertise.

A participação fugaz da ITA no mercado de transporte aéreo é intrigante em todos os aspectos. Os investidores, do Grupo Itapemirim, tentavam consumar a recuperação judicial de seu principal negócio, a Viação Itapemirim, que mais tarde também faliu; o setor aéreo operava então em meio à crise provocada pela pandemia de covid; três anos antes o grupo anunciara com estardalhaço a compra da Passaredo, que foi desfeita em seguida pela companhia regional, sob a alegação de que a Itapemirim não havia cumprido os termos acordados.

A entrada de uma nova companhia de aviação em plena pandemia foi muito incentivada e comemorada pelo governo federal em 2020. Em outubro, em uma das suas tradicionais lives, o então presidente Jair Bolsonaro gravou um vídeo no qual recebia de seu ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, atual governador de São Paulo, a miniatura de um “busão da Itapemirim”. Os dois iniciaram, então, um diálogo farto em elogios à nova companhia aérea que, àquela altura, já figurava no topo das listas de reclamações no Procon. Viraram meme na internet dois meses depois.

Ao contrário do transporte urbano de passageiros, geralmente feito pelo sistema de concessão do poder público a empresas privadas, o transporte aéreo segue o modelo de autorização. Não há uma disputa pública, mas o postulante à operação do serviço deve cumprir uma série de exigências impostas pelo órgão regulador, no caso a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Muito se questionou, na época, como a Anac havia autorizado o funcionamento de uma empresa sem qualquer experiência no ramo e controlada por um grupo já em dificuldades. A agência garantiu ter cumprido todas as exigências legais.

Não se discute que, para fomentar novos empreendimentos, o País deve incentivar a livre concorrência e facilitar trâmites burocráticos, mas é evidente que isso deve ser feito de forma criteriosa, capaz de inibir o caos provocado por aventureiros. O setor aéreo está repleto de exemplos de companhias extintas, como Transbrasil, Varig, Vasp e Avianca. Mas um caso tão peculiar como o da ITA deveria ser usado para aprimorar regras que, ao que tudo indica, deixam a desejar.

 

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