segunda-feira, 3 de julho de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Inelegibilidade põe em xeque o extremismo de direita

Valor Econômico

Há a certeza de punição a todos que tramarem o fim da democracia

Inelegível por 8 anos, o ex-presidente Jair Bolsonaro tem ainda 15 processos a sua espera no Tribunal Superior Eleitoral. Até certo ponto, o ex-presidente está certo em afirmar que foi julgado pelo “conjunto da obra”, contida em um fragmento - a coleção de mentiras contra as urnas eletrônicas, a sugestão antecipada de que não aceitaria seus resultados, durante encontro com embaixadores estrangeiros em Brasília no 18 de julho de 2022. O relator, ministro Benedito Gonçalves, resumiu os motivos para a condenação por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação: “mentiras atrozes” sobre a Justiça Eleitoral que, somadas à “narrativa imaginária de fraudes”, conduziram a um “flerte perigoso com o golpismo”.

Bolsonaro terá agora de enfrentar várias batalhas como cidadão comum - após 30 anos, não exerce cargo eletivo que possa servir de escudo contra graves acusações de ilegalidades, agressões à democracia e uma atuação criminosa durante a pandemia. De um lado, lutará para não ser preso e de outro, para tentar manter-se como o principal líder da direita no país, escolhendo seu “sucessor” nas urnas. É possível que esses desafios excedam sua capacidade política e intelectual e ele caminhe com para o ostracismo.

Apesar de ter um eleitorado cativo relevante, o poder de Bolsonaro mobilizá-lo será declinante sem as alavancas do Estado nas mãos. O bolsonarismo, como tal, carece de substância. Há conservadores de todos os matizes que apoiaram o ex-capitão, amalgamados pelo anti-petismo. A chama que poderá inspirá-los, a mesma que poderá dar calor a pretensões de Bolsonaro, serão os desacertos do governo Lula.

Sem perspectiva de poder, Bolsonaro tem outra estatura no jogo político. Ele se mostrou incapaz de construir qualquer coisa por esforço próprio, muito menos uma agenda política positiva. O que o levou à Presidência foi a somatória de todas as rejeições - à politicagem barata, à ladroagem aberta exposta pelo petrolão, à liberalidade dos costumes, que choca graus variados de conservadores, à perda dos valores cristãos na sociedade moderna, ao petismo etc. As ideias do ex-presidente são quase todas reativas, recheadas de preconceitos - em um país miserável, ele é contra pobres, além de pretos, mulheres, homossexuais, indígenas, quilombolas, vacinas e muito mais.

Como demonstrou na Presidência, Bolsonaro carece de visão política estratégica. Com todo o poder nas mãos, e o PT reduzido a uma oposição insignificante, sequer conseguiu formar um partido, quando políticos que não chegaram tão longe quanto ele ergueram com facilidade suas legendas, a ponto de o Brasil hoje possuir mais de 30 delas. Especialista em agredir políticos com agendas sociais e porta-voz da pauta corporativa dos militares, Bolsonaro não soube sequer lidar com seus pares, após décadas de atuação no Legislativo.

Prova de sua falta de tirocínio e incompreensão da própria experiência acumulada foi o fato de recusar-se a forjar uma base política no Congresso, quando o campo do adesismo estava aberto, oferecendo-se por alguns vinténs. Depois de ver a aproximação rápida do risco de impeachment por uma sucessão de arroubos autoritários, entregou seu destino ao Centrão de Arthur Lira, a um preço alto. Essa inabilidade, na qual Bolsonaro e seus acólitos viram uma virtude, é de fato um traço definidor de seu caráter político: ele não acredita na democracia nem no jogo parlamentar. Seu ideal é uma ditadura, sob seu comando.

Bolsonaro tentou manter-se no poder, arquitetando uma saída antidemocrática, mas fracassou. Na hora decisiva, o alto comando militar não embarcou no projeto pessoal de alguém que se mostrou tão inepto para dirigir o país, tão instável e imprevisível no trato com os próprios militares, além de tão indiferente aos rumos do Brasil e a tudo que não fosse a perspectiva de poder pessoal.

O prestígio relativo de Bolsonaro depende da rejeição a Lula e ao PT. Com seus erros, o presidente Lula pode manter por mais tempo o ex-presidente no jogo. É inacreditável que na véspera do desfecho do julgamento de Bolsonaro, um inimigo da democracia, Lula tenha dito que o conceito de democracia é relativo, que o Brasil tem menos eleições que a Venezuela, cujos dirigentes nada fizeram de errado. No mesmo dia, soube-se que a comissão eleitoral do país, sob comando governista, impugnou as candidaturas dos três membros mais populares da oposição a Maduro. Bolsonaro só tem a ganhar com deslizes de Lula como esse, cada vez mais frequentes.

Com Bolsonaro inelegível, há espaço para candidatos de direita menos extremistas e de um centro renovado. É duvidoso que Tarcísio de Freitas e Romeu Zema, que detêm o comando de Estados eleitoralmente decisivos, precisem de aval ou proximidade de Bolsonaro, de quem já guardaram distância nas últimas eleições. Se existe alguma chance do conservadorismo voltar ao poder é voltando-se ao centro, expurgando o extremismo de Bolsonaro. Com a sucessão de processos em curso, Bolsonaro e quem o apoiar carregarão um peso negativo considerável. Uma eleição menos polarizada seria um inegável efeito positivo da inelegibilidade do ex-capitão. Outro, maior, é a certeza da punição a todos que tramarem o fim da democracia.

Falta de creches pune as crianças, as mães e o país

O Globo

Brasil está ainda distante de cumprir a meta de atender em 2024 50% dos que têm menos de 3 anos

A falta de creches públicas em todo o país pune duplamente as mães brasileiras. Primeiro, porque, sem ter com quem deixar os filhos pequenos, elas se veem forçadas a abrir mão do trabalho, renunciando a uma alternativa fundamental para compor o orçamento familiar. Segundo, porque compromete o aprendizado das crianças, especialmente nas famílias em que os pais têm baixa escolaridade, situação em que a escola é essencial para um futuro melhor.

Sai governo, entra governo, e os números permanecem decepcionantes. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)/Educação, do IBGE, revelam que, de todas as crianças de até 3 anos no país, 7,2 milhões estavam fora da creche no ano passado por motivos diversos, incluindo falta de interesse dos pais. Desse total, 34% não estão matriculadas porque as mães não conseguiram vaga. São 2,5 milhões de crianças nessa situação, contingente maior que a população de Belo Horizonte.

O pouco-caso com as crianças leva a situações inaceitáveis, como mostrou reportagem do GLOBO. Uma mãe que mora em Formiga (MG) contou que precisará abandonar o emprego num supermercado porque não tem com quem deixar a filha de 2 anos. Outra disse estar preocupada com o desenvolvimento do menino de 2 anos que pouco fala. Ela acredita que o ambiente escolar ajudaria a socializá-lo.

Como ocorre noutros setores, a educação infantil é marcada pela desigualdade. Apenas 2% das cidades do país atendem mais de 85% de suas crianças com até 3 anos em creches, segundo a tese de doutorado “Acesso à creche nos municípios brasileiros”, do pesquisador André Augusto dos Anjos Couto. A disparidade fica clara quando se constata que municípios com baixo nível socioeconômico oferecem creche a 27% de crianças nessa faixa etária. Nos mais ricos, o percentual sobe para 46%. Infelizmente, a construção de creches costuma seguir mais os interesses paroquiais de políticos em busca de dividendos eleitorais que a necessidade dos moradores. Não deveria ser assim.

Embora a creche não seja etapa obrigatória no ensino, não se trata de favor dos governos oferecer vagas às crianças pequenas. De acordo com o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014), o Brasil deveria manter, já em 2024, 50% das crianças de até 3 anos em creches. Considerando que o patamar hoje está em 36% e que a demanda tem crescido nos últimos anos (em 2019 eram 2,3 milhões sem vaga), é pouco provável que a meta seja atingida.

O país precisa de mais creches, de preferência onde são mais necessárias. Antes de se meter a construir, porém, o governo deveria concluir as muitas obras paradas — boa parte delas iniciada ainda nos governos petistas. O Brasil tem hoje mais de 700 obras de construção ou reforma de creches. A grande maioria (90%) está paralisada. Terminá-las não só evitaria desperdício de dinheiro público já gasto em projetos malconduzidos, como também beneficiaria crianças, suas mães e o próprio país, que necessita cada vez mais de força de trabalho.

Extensão de subsídios a automóveis consegue piorar o que já era ruim

O Globo

Haddad confirmou que liberará mais R$ 300 milhões para ajudar indústria baseada em combustíveis fósseis

Uma política ruim sempre pode piorar. É o caso do programa do governo Luiz Inácio Lula da Silva de estímulo à venda de “carros populares” — que de populares não têm nada — para tirar do atoleiro uma indústria automotiva desconectada dos tempos atuais. Nos últimos dias, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, confirmou que liberará mais R$ 300 milhões para a iniciativa, além do R$ 1,5 bilhão já previsto. As regras serão praticamente as mesmas já em vigor: os bônus variarão de R$ 2 mil a R$ 8 mil por veículo, e o incentivo valerá para carros que custam até R$ 120 mil.

Estímulos à indústria automobilística são uma obsessão dos governantes brasileiros, em particular petistas. Traduzem a visão ultrapassada segundo a qual o setor é motor do crescimento. Não funciona, como já deveriam saber. No governo Dilma Rousseff, o programa Inovar-Auto, que ambicionava modernizar a produção no país, sugou R$ 1,3 bilhão por ano em incentivos e não deu em nada. Ainda rendeu ao Brasil uma condenação na Organização Mundial do Comércio (OMC). A ajuda do Estado ao transporte de carga também não resolveu os problemas dos caminhoneiros. E por aí afora.

Mesmo agora, com os novos subsídios, a estagnação das montadoras não dá sinais de recuperação. Na semana passada, a Volkswagen anunciou parada temporária da produção em suas três fábricas, sob o argumento de que é preciso adequá-la à demanda. Os pátios no ABC paulista estão lotados.

Subsidiar a indústria automotiva não é um erro em razão apenas do resultado pífio. Também contradiz o discurso ambientalista do governo. Antes de assumir, Lula prometeu trabalhar para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O que faz agora? Concede incentivos a uma indústria movida a combustíveis fósseis. Nada mais distante do que o governo prega nos fóruns internacionais.

É verdade que a frota brasileira está envelhecida, que carros novos poluem menos e que o programa prioriza veículos movidos a etanol. Mas não faz sentido incentivar o transporte individual num país que não consegue dar uma resposta minimamente adequada aos problemas do coletivo. A esta altura, o governo deveria estar traçando políticas públicas para estimular a construção e implantação de metrôs, trens ou bondes, que usam energia limpa. Ou então corredores de ônibus (BRTs), que transportam mais gente, ocupam menos espaço na via pública e lançam menos gases na atmosfera.

A promessa de que o afago à indústria automotiva seria por tempo limitado está virando fumaça, já que o governo sempre encontra um jeitinho de prorrogar benesses às montadoras. Despejar dinheiro público em incentivos quando o país busca aumentar a arrecadação não esvaziará os pátios das fábricas nem multiplicará postos de trabalho, pois isso depende do desempenho da economia. O governo deveria deixar a indústria andar sozinha e aplicar esses recursos em áreas onde eles realmente são necessários, como educação, saúde ou infraestrutura. Seria maior a chance de ajudar o país.

Preservar a reforma

Folha de S. Paulo

Desafio será evitar que lobbies desfigurem a proposta de redesenho dos impostos

Aproxima-se o momento mais crítico da reforma que pretende simplificar a cobrança dos tributos sobre o consumo. Debatida ao longo de décadas e nunca levada adiante, a pauta é das mais essenciais para a eficiência da economia. Não sem resistências, o país tem agora uma chance ímpar para avançar.

A proposta de emenda constitucional em pauta, conforme relatório elaborado pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), prevê a extinção de cinco impostos e contribuições (PIS, Confins e IPI, federais, ICMS, estadual, e ISS, municipal).

Em seu lugar, serão instituídos dois tributos sobre bens e serviços —a CBS, da União, e o IBS, a cargo dos governos regionais.

A dupla reúne as características defendidas pela maioria dos especialistas. Em vez do atual emaranhado de alíquotas, exceções e regimes especiais, há total unificação da incidência em toda a cadeia de produção e comercialização.

Embora não tenha havido acordo para a alíquota única, dada a oposição de setores hoje menos tributados, o texto permite poucas variações e mantém a espinha dorsal da reforma. Educação, saúde, transportes e agropecuária, por exemplo, sofreriam cobrança menor.

O princípio da taxação no local do consumo, não da produção, é outra alteração correta, que acaba com a chamada guerra fiscal por investimentos entre os Estados.

Propõe-se a criação de um conselho federativo para gestão e partilha dos recursos, cujos procedimentos, assim como as alíquotas dos novos tributos, devem ser definidos em lei complementar.

Prevê-se um período de transição para os contribuintes até 2033, ao passo que a partilha dos recursos na Federação seria alterada muito mais gradualmente, até 2078.

Por fim, determina-se que a União contribua para dois fundos regionais, um para garantir a receita de Estados perdedores e outro para custear a manutenção até 2032 dos benefícios fiscais já concedidos.

Com o texto da proposta disponível e a aproximação de uma tentativa de votação na Câmara nas próximas semanas, vão se aglutinando as resistências de sempre. Será inevitável que outros setores e atividades busquem exceções, o que deve ser evitado ao máximo.

O vetor contrário principal, contudo, vem de parte dos estados e municípios. A crítica ao conselho federativo é ampla, sob a premissa de que haveria perda de autonomia. Também há disputas em torno dos valores dos fundos a serem bancados pela União.

A reforma é das mais complexas, em razão dos impactos setorial e federativo. Mas também tem potencial de ampliar sensivelmente a produtividade e o emprego.

Falta o engajamento de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que até aqui não participou das negociações. Será importante, sobretudo, impedir que o relatório acabe desfigurado pelas pressões de lobbies diversos.

Escolhas de Tarcísio

Folha de S. Paulo

Governador, que permitiu tributo a nome da ditadura, terá decisões mais difíceis

Desde a campanha eleitoral, e sobretudo após conquistar o governo paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos) segue uma estratégia bem ensaiada para se firmar no cenário político nacional.

Apresenta-se como técnico experiente, que prioriza a melhoria da gestão pública; de pensamento liberal em economia, mas avesso a guerras culturais e ideológicas; à direita, mas disposto ao entendimento com outras forças.

Se tal imagem é compatível com sua trajetória na vida pública, não é menos verdadeiro, porém, que Tarcísio deve seu ingresso na política e a cadeira no Bandeirantes a Jair Bolsonaro (PL), e os seguidores do ex-presidente ainda constituem a base de apoio mais segura ao ex-ministro da Infraestrutura.

Com Bolsonaro tornado inelegível, um pupilo em posto de tamanha projeção será naturalmente encarado como candidato à sucessão presidencial. O governador terá de praticar sob os olhos mais atentos do eleitorado seu equilibrismo entre a busca de uma identidade e a fidelidade ao criador.

Fugir de escolhas não será possível, como se vê agora no caso vexatório da homenagem sancionada pelo governo Tarcísio a um personagem simbólico da repressão no período da ditadura —o coronel Erasmo Dias, morto em 2010.

A Assembleia Legislativa teve a ideia funesta de dar o nome do militar, ex-secretário estadual de Segurança e ex-deputado, a um entroncamento de rodovias na região de Paraguaçu Paulista. O projeto dependia da sanção do Executivo, que acabou assinada pelo vice-governador, Felício Ramuth (PSD). Tarcísio estava fora do país.

Erasmo Dias defendeu até o final da vida a medida que marcou sua participação no regime autoritário —uma violenta intervenção policial em um ato de estudantes da PUC-SP, no ano de 1977. O atual governador de São Paulo provavelmente não diria o mesmo, mas tampouco se dispôs a impedir a homenagem ao mentor da invasão.

O figurino de gestor pragmático e avesso a embates tem alcance limitado quando há forças políticas relevantes propensas a atacar os valores democráticos. Venha a ser ou não candidato ao Planalto, Tarcísio terá pela frente decisões mais difíceis que o nome apropriado de uma via rodoviária —e elas envolverão personagens vivos.

A reinvenção da direita brasileira

O Estado de S. Paulo

Para aproveitar as oportunidades da inelegibilidade de Bolsonaro, a direita civilizada precisa depurar valores conservadores e liberais e concretizá-los em um movimento cívico

A única coisa maior do que as oportunidades abertas é a montanha de desafios.

Ante a inelegibilidade de Jair Bolsonaro, a única coisa maior que a janela de oportunidades aberta à direita é a montanha de desafios que precisa superar. Bolsonaro é um feroz antiesquerdista, mas nunca foi conservador nem liberal, só um demagogo nostálgico da ditadura e hostil ao ecossistema democrático da Constituição de 88.

Em todo o mundo as democracias liberais estão na defensiva. Fora, o aventurismo militar da Rússia e o expansionismo diplomático da China buscam reconstruir uma ordem mundial adaptada às suas ambições autocráticas. No Ocidente, eles despertam medo, mas também seduzem esquerdas e direitas abastardadas, pela suposta eficiência de seus “modelos” de crescimento ou defesa das tradições. Dentro, há uma crise de identidade, evidente nas próprias distorções do termo “liberalismo”: nos EUA, ele está associado à “nova esquerda” e seu identitarismo divisivo e autoritário; em outras democracias, a propaganda esquerdista o desfigurou, associando-o ao espantalho “neoliberal”, que nada mais é que um darwinismo social. Ao mesmo tempo, cresce o falso conservadorismo da extrema direita hostil à globalização e a minorias.

Em sua história do liberalismo, Edmund Fawcett divisou quatro valoreschave da identidade liberal. Primeiro, que a sociedade deve ser plural; um espaço de conflitos politicamente canalizados a uma competição de ideias frutuosa. Segundo, que é preciso progredir por reformas, não rupturas. Terceiro, a desconfiança da concentração do poder. Quarto, a defesa dos direitos pessoais, políticos e de propriedade. A renovação não passa por desconstruir esses valores, mas empregá-los como alicerces na construção de um contrato social liberal adaptado ao século 21.

A direita precisa fazer um exame de consciência, reconhecer sua complacência com as desigualdades sociais e energizar seus compromissos com a responsabilidade individual, a liberdade econômica e a distribuição do poder para demonstrar convincentemente que estes são os meios mais eficazes para construir uma sociedade inclusiva, justa e próspera.

O desafio no Brasil é o mesmo, mas mais profundo, porque aqui, mais do que se reinventar, a direita precisa se inventar. Na redemocratização, as expressões do liberalismo se restringiram ou a farsas deletérias (como Fernando Collor ou Bolsonaro) ou a soluções de compromisso de uma socialdemocracia esclarecida (FHC). Com curtos estoques de tempo e popularidade, Michel Temer sanou excessos desastrosos do estatismo petista – se teria energia ou convicção para edificar instituições liberais, é algo que fica no campo da especulação. Ao redor dessas ilhas liberais, há um conservadorismo difuso na sociedade, que com o movimento evangélico ganha força (mas também toques de obscurantismo), e um conservadorismo amorfo na arena política (que muitas vezes só serve à conservação de privilégios elitistas e paroquiais).

Não se trata só de depurar essa massa crítica para esculpir no ideário político valores conservadores e liberais. É preciso concretizá-los articulando um partidarismo de direita no melhor sentido do termo. Isso implica reverter a lógica do populismo. Não oferecendo programas tecnocráticos de cima para baixo, muito menos se embrenhando na disputa por um novo “salvador da pátria”, ou seja, jogando o jogo do culto à personalidade caro ao lulopetismo e ao bolsonarismo. Como cravou William Waack no Estadão, “falta de nomes não é o maior problema da direita pós-Bolsonaro; falta projeto de País”. O erro seria insistir na estratégia de desmoralização dos eleitores de Lula ou Bolsonaro. Ao contrário, é preciso humildemente ouvi-los, construir com eles compromissos de baixo para cima e comunicá-los com paixão, a fim de dinamizar uma mobilização cívica inspirada nas grandes articulações políticas que edificaram a Nova República nas “Diretas Já” e superaram suas crises com os impeachments de Collor e Dilma. Esse é o caminho para a reinvenção da direita. A menos que o trilhe, ela continuará a agonizar pelas mãos de seus adversários ou usurpadores.

Os fundamentos das decisões do Supremo

O Estado de S. Paulo

É oportuna a iniciativa do STF de apresentar, de forma acessível, sua jurisprudência sobre temas sensíveis, como a liberdade de expressão. País não pode ficar refém da desinformação

Há muita crítica contra o Supremo Tribunal Federal (STF). E há também muita incompreensão sobre o funcionamento da Corte. Quase sempre, as críticas ignoram o fundamento dos votos, bem como a própria jurisprudência anterior do Supremo, limitando-se a expressar contrariedade com a decisão da qual se discorda. Sob essa ótica, a atuação do Supremo ganha um caráter casuístico, quase arbitrário, como se as decisões dependessem unicamente das idiossincrasias de cada ministro. É um cenário desafiador para o Supremo, cuja autoridade é necessária para que possa desempenhar seu papel institucional contramajoritário de defesa da Constituição.

Junto a isso, como parte do mesmo fenômeno, há muita desinformação sobre as liberdades e garantias fundamentais, disseminando graves incompreensões sobre temas fundamentais do Estado Democrático de Direito. Frequentemente, o debate público é tomado por visões simplistas, cujo único objetivo é manipular, dificultando ou mesmo impossibilitando uma discussão serena e madura dos temas.

Nesse contexto, é muito oportuna a iniciativa do STF de lançar a linha editorial Supremo Contemporâneo, com publicações que reúnem de forma acessível a jurisprudência da Corte sobre diferentes temas. O objetivo é apresentar um resumo de precedentes especialmente relevantes, com os fundamentos utilizados e trechos dos votos dos ministros. Agrupar essas decisões, proferidas em diferentes momentos, ajuda a dar sentido e contexto ao trabalho do STF em defesa da Constituição ao longo do tempo.

Com 29 julgados de 2007 a 2022, o primeiro volume da série é dedicado à liberdade de expressão. Há processos famosos, como a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição (2009), o fim da exigência de diploma para o exercício do jornalismo (2009), a liberação das biografias não autorizadas (2015) e o pretenso direito ao esquecimento (2021). “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento”, disse o STF.

O precedente mais recente citado no livro afirma que “a liberdade de expressão não pode ser usada para a prática de atividades ilícitas ou discursos de ódio, contra a democracia ou contra as instituições” (2022). O mais antigo, de 2007, é a declaração de inconstitucionalidade de decreto distrital de 1999 proibindo a realização de manifestações públicas na Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios, Praça do Buriti e vias adjacentes.

Segundo o STF, a restrição ao direito de reunião estabelecida no decreto “é inadequada, desnecessária e desproporcional”, confrontando “com a vontade da Constituição, que é permitir a reunião pacífica para fins lícitos”. O STF não disse que o governo do Distrito Federal não pode proibir uma manifestação violenta. Apenas afirmou que não se pode, sob pretexto da segurança pública, impedir toda e qualquer manifestação.

Precedente especialmente interessante para o debate atual é a decisão de que as marchas da maconha, com manifestantes defendendo a descriminalização da droga, não constituem crime. O debate pela abolição penal de uma conduta punível “não se confunde com incitação à prática de delito, nem se identifica com apologia de fato criminoso”. Segundo o STF, o Estado não pode reprimir o debate “ainda que as ideias propostas possam ser consideradas, pela maioria, estranhas, insuportáveis, extravagantes, audaciosas ou inaceitáveis, sendo inadmissível a proibição estatal do dissenso”.

O livro traz decisões que aparentemente não dizem respeito à liberdade de expressão, mas cuja fundamentação remete ao tema. Por exemplo, ao declarar a constitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória, o STF afirmou que, com o engajamento político de entidades sindicais, fixar contribuições compulsórias de quem não concorda com tais posicionamentos configura “violação à garantia fundamental da liberdade de expressão”.

A defesa da Constituição inclui enfrentar a desinformação. É preciso expor de forma acessível a jurisprudência do STF e seus fundamentos. Assim, muitos fantasmas desaparecem.

Insistência no erro

O Estado de S. Paulo

Programa do ‘carro popular’, que nem deveria existir, é prorrogado, a despeito da ineficácia

Não surpreendeu ninguém a decisão do governo de prorrogar o programa de incentivo ao “carro popular”. Uma vez que o gênio do populismo sai da garrafa, não há meios de fazê-lo voltar para lá.

Restou ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a inglória tarefa de fazer caber nas contas do governo os devaneios de seu chefe, o presidente Lula da Silva.

Com reforço extra de R$ 300 milhões, o programa chegará agora às locadoras de veículos, principais clientes da indústria automotiva. Os incentivos de R$ 500 milhões inicialmente destinados à compra de veículos leves praticamente se esgotaram em menos de um mês, período em que o programa ficou restrito às pessoas físicas.

Desde o início do plano, os fabricantes já apelavam por mais recursos para atender também os clientes empresariais. Bastaram fotografias de pátios de montadoras lotados e o anúncio de férias coletivas e suspensão de turnos de trabalho para prontamente conseguirem o adicional. Com isso, o total de R$ 1,5 bilhão – incluídos aí caminhões e ônibus – pulou para R$ 1,8 bilhão em três semanas.

Recursos destinados a estimular um segmento específico surgiram como num passe de mágica, ignorando as enormes dificuldades que o próprio governo enfrenta para elevar receitas e cumprir a meta fiscal. A criação de um benefício setorial já seria questionável, mas se torna incompreensível quando o País está, enfim, próximo de definir uma reforma tributária que visa a combater esse tipo de política.

O governo bancará a extensão do programa com recursos extras oriundos da tributação do diesel. O consumidor, segundo o ministro Fernando Haddad, não sentirá diferença no preço do combustível, pois a queda da cotação do petróleo compensará o aumento de impostos. Ninguém mencionou que o reforço de arrecadação que vai incentivar a aquisição de automóveis de até R$ 120 mil por pessoas físicas e locadoras poderia ajudar na busca de equilíbrio das contas públicas.

Era uma questão de escolha, e esta certamente foi uma escolha ruim. Em se tratando da indústria automobilística, pacotes temporários invariavelmente foram estendidos por tempo acima do previsto. Rota 2030, Inovar-Auto, o “Fusca do Itamar” e tantos outros que se sucederam desde a década de 1970 não trouxeram o retorno esperado em aumento de produtividade, esta sim crucial para o desenvolvimento industrial. E, além de não entregar a inovação prometida, o Inovar-Auto, que vigorou de 2012 a 2017, ainda valeu ao Brasil uma condenação na Organização Mundial do Comércio (OMC) por protecionismo.

Todos já sabiam que o programa do “carro popular”, a exemplo de seus antecessores, não resolveria o problema do setor, que tem excesso de capacidade instalada e nenhuma competitividade para exportar veículos para outros mercados. Mas talvez tenha sido a primeira vez na história que a produção de automóveis tenha sido suspensa em plena vigência do programa de incentivo, prova de que a chantagem sempre funciona. É também a maior evidência de que a medida jamais deveria ter sido renovada.

O alerta do aspartame

Correio Braziliense

"O motivo é o anúncio de que um dos adoçantes artificiais mais populares e comuns do mundo, o aspartame, está prestes a ser classificado como "possivelmente cancerígeno para humanos" pela IARC, órgão vinculado à OMS"

Pode soar impensável para as gerações atuais, mas alguns leitores mais antigos certamente vão se lembrar: houve um tempo em que médicos, cientistas e órgãos de saúde atestavam a segurança no uso do tabaco. Sim, o hábito de fumar, hoje obviamente nocivo e um dos principais causadores de câncer nas pessoas, era considerado perfeitamente seguro até para grávidas. Pois é possível que, em breve, um dos costumes mais regulares dos dias de hoje, o de consumir alimentos com adoçantes que substituem o açúcar, seja visto pelas gerações futuras também como impensável.

O motivo é o anúncio de que um dos adoçantes artificiais mais populares e comuns do mundo, o aspartame, está prestes a ser classificado como "possivelmente cancerígeno para humanos" pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), um órgão vinculado à Organização Mundial da Saúde (OMS). A expectativa é de que a definição oficial da substância seja anunciada no próximo dia 14, após uma abrangente revisão de 1,3 mil estudos científicos sobre o adoçante. O Comitê Conjunto de Especialistas em Aditivos Alimentares da OMS e da Organização para Agricultura e Alimentação (JECFA) também emitirá um documento sobre o uso de aditivos alimentares na mesma data, que deverá complementar o anúncio da IARC.

Facilmente encontrado em produtos das gôndolas do supermercado, como os refrigerantes com zero caloria, e consumido por uma enorme parcela da população, o aspartame vem sendo classificado como seguro desde a década de 1980. A confirmação de que ele provavelmente é cancerígeno levanta uma série de preocupações legítimas e acende diversos alertas para governos e autoridades de saúde.

O principal problema é que faltam informações seguras sobre os produtos que consumimos e seus potenciais impactos em nosso organismo. O aspartame é apenas um exemplo de substância que pode estar sendo ingerida de maneira constante sem que tenhamos conhecimento adequado dos riscos envolvidos. Por isso, esta situação, apesar de preocupante, também pode ser uma oportunidade para uma revisão minuciosa de nossas políticas de segurança alimentar.

Antes de tudo, é fundamental que a indústria de alimentos e bebidas assuma a responsabilidade de informar adequadamente os consumidores sobre os ingredientes utilizados em seus produtos. As embalagens devem fornecer informações claras e precisas sobre os possíveis perigos associados ao consumo de aspartame e outros aditivos alimentares, já sob a nova determinação a ser anunciada, permitindo assim que cada indivíduo tome decisões informadas sobre sua alimentação.

Em paralelo, o Ministério da Saúde precisa liderar uma grande ação de conscientização sobre os riscos potenciais do aspartame. Também é necessário que a comunidade médica, pesquisadores e entidades como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) façam uma ampla reavaliação das classificações de todas as outras substâncias adoçantes de uso regular, e de outros aditivos alimentares usados comumente na indústria e nos chamados alimentos ultraprocessados.

A população precisa ter o direito de saber o que está colocando em seus corpos e quais são os possíveis efeitos dessas substâncias a longo prazo. O risco de possíveis danos à saúde não pode mais ser ignorado, e a hora de ação é agora.


 

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