Folha de S. Paulo
Decisão de Alexandre de Moraes é bem-vinda
ao estabelecer prazo e processo para que as autoridades cumpram suas obrigações
A invisibilidade e a indiferença são
estratégias que muitas vezes empregamos, ainda que inconscientemente, para
lidar com situações dramáticas, como a das populações em
situação de rua. Com o tempo, vamos nos tornando moralmente
insensíveis em relação aos sofrimentos desse grupo heterogêneo de pessoas que
passam a viver em pobreza extrema, destituídas de moradia, de vínculos
familiares, de trabalho estável, entre outras formas de privação e negligência.
A invisibilidade e a indiferença podem, no entanto, se transformar em estigmatização e hostilidade. Com o aumento das pessoas em situação de rua, esse grupo passa a ser visto cada vez mais como ameaça, gerando demandas e ações políticas, administrativas e "zeladoria" mais violentas, discriminatórias e excludentes.
O crescimento da população em situação de
rua nas grandes cidades brasileiras é flagrante. De acordo com recente estudo
do Ipea, houve um aumento de
cerca de 211% na última década, certamente impulsionado pela crise
econômica, pela pandemia, assim como pela irresponsável negligência na
implementação das políticas consistentes de assistência social, pelas diversas
esferas da federação.
Nesse contexto, é mais do que bem-vinda a
decisão cautelar do ministro Alexandre de
Moraes, na ADPF 967, proposta pelos partidos Rede e PSOL e pelo MTST
(Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), determinando que as três esferas do
Estado brasileiro venham a
adotar um plano de ação voltado ao devido atendimento das populações que
se encontram em condições subumanas nas ruas, nos termos da Política Nacional
para a População em Situação de Rua, estabelecida pelo Decreto Federal
7.053/2009 e sistematicamente ignorada nos últimos 13 anos.
Tanto a PGR (Procuradoria-Geral da
República) como a AGU (Advocacia-Geral da União) afirmaram que a ADPF não
deveria nem sequer ser conhecida pelo Supremo, pois levaria a uma indevida
interferência do Judiciário em esferas de atuação reservadas ao Executivo e ao
Legislativo. O relator da ação entendeu, no entanto, que em face dos indícios
de "violação maciça de direitos humanos", apresentados na audiência
pública, o Judiciário se encontrava impelido a "a intervir, a mediar, e a
promover esforços na reimaginação (sic) de uma estrutura de enfrentamento dessas
mazelas".
A decisão, entretanto, foi cuidadosa para
não invadir o território dos demais Poderes, determinando as políticas que
esses devem adotar. Apenas estabeleceu prazo e um processo para que as diversas
esferas responsáveis pela solução do problema elaborem um plano de ação, a
partir dos parâmetros estabelecidos pela Constituição e pela própria Política
Nacional para a População em Situação de Rua. Ou seja, que cumpram suas
obrigações.
Como bem destaca minha colega Luciana
Ribas, da FGV Direito SP, que participou da audiência pública no Supremo, a
decisão também é muito positiva pois assegurou voz aos movimentos sociais na
construção do plano ação —"nada para a rua, sem a rua"—, além de
incorporar três perspectivas fundamentais para a formulação do plano:
"evitar a entrada nas ruas; garantir direitos enquanto o indivíduo está em
situação de rua; e promover condições para saída da rua".
A decisão liminar, provocada pela incansável ação dos movimentos sociais, certamente não resolverá a questão da população em situação de rua do dia para a noite, mas terá dado uma importante contribuição se for capaz de desestabilizar a inconstitucional inércia das autoridades e desencadear uma série de medidas que de fato favoreçam essas populações; afinal, "a rua não é lugar para se viver, nem para se morrer", como dizem os que nela se encontram.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em
direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes,
2023)
A PGR e a AGU não funcionavam no DESgoverno Bolsonaro. Continuam funcionando mal no governo Lula 3! E o que esperar se Aras for reindicado?
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