Folha de S. Paulo
Um hotel em Montparnasse onde se diziam
besteiras e genialidades nos anos 20
Em Paris é assim. Você procura um endereço histórico, encontra-o e descobre, ao lado, outro ainda mais importante. Deu-se comigo outro dia, quando saí atrás da rue Campagne Première, em Montparnasse, onde Jean-Luc Godard filmou a sequência final de "Acossado" (1959) —em que Jean-Paul Belmondo recebe ordem de prisão dos tiras, tenta fugir, é baleado e sai trôpego pelo asfalto, seguido pela câmera, até cair e morrer. Mal sabia eu que, no número 29 da rua, quase em frente de onde cai Belmondo, fica o Hotel Istria.
A placa na fachada é impressionante.
"Na efervescência criadora dos anos 1920", diz ela, "o Hotel
Istria acolheu, entre outros, Francis Picabia, Marcel Duchamp, Moïse Kisling,
pintores, Man Ray, fotógrafo, Kiki de Montparnasse, modelo e musa, Erik Satie,
compositor, Rainer Maria Rilke, Tristan Tzara, Vladimir Maiakovski, poetas, e
Louis Aragon, que se encontrava aqui com Elsa Triolet." E segue-se um
couplet de Aragon, dizendo que "só se apaga quem brilha e, ao sair do
Hotel Istria, tudo era diferente na rue Campagne Première, em 1929, por volta
do meio-dia." Aragon, naturalmente, era o poeta e romancista, e Triolet,
escritora, casada com ele e cunhada de Maiakovski.
Uns pelos outros, esses homens e mulheres
—franceses, russos, vienenses, americanos, uma típica salada de Paris— geraram
o cubismo, o dadaísmo, o surrealismo, o ready-made, a pop art, o teatro do
absurdo etc, e estilhaçaram o verso.
Namoravam o comunismo, esbofeteavam padres
nas ruas e seguiram o enterro do medalhão Anatole France aos gritos de "Um
cadáver já em vida!". E praticaram entre si várias combinações sexuais de
gênero, etnia e estado civil. Não eram modernistas de salão. Correram riscos,
pagaram para ver.
E pensar que essa turma vivia ali, naquele
então modesto endereço, cruzando-se nos corredores e dizendo besteiras e
genialidades uns para os outros!
Pois é.
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