Ilustríssima / Folha de S. Paulo
[RESUMO] José Murilo
de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro
e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país
falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que
superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o
historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no
Brasil.
José
Murilo de Carvalho foi um dos mais influentes acadêmicos de sua geração. No
campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da
história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Tendo se doutorado na Universidade Stanford
(EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino
Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa
da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição
para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras
(ABL).
Para quem o conhecia, chamava a atenção o
contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida
por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva,
especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem
de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo
regional.
Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da "mineirice", havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou "República" a cujo serviço se devotaria.
Ele acreditava que os males do Brasil
decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram
as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já
que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por
excelência da intelectualidade mineira.
Para bem servir à república como
intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la
em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a
toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.
Eles todos haviam na mocidade embarcado no
sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela
leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros),
como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou
com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as
reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na
moldura oligárquica do tempo anterior.
A marcha ascensional para patamares
superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí
o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas
energias na revisitação do processo de formação do Estado e da
sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.
Quem admira José Murilo como historiador
deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em
sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e
sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e
sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.
O tema por excelência da ciência social
mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas
instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica
fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo
escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de
Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.
Já então ele questionava a eficácia do
marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros
membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para
fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o
cientista político Wanderley
Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o
convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito
da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.
Na primeira parte da tese, "A
Construção da Ordem", José Murilo argumentava que, diversamente das elites
da América hispânica, as
do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido a seu maior grau de
homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação
ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um
projeto de Estado reformista e autoritário.
Na segunda parte, "Teatro de
Sombras", ele
revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade
escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de
seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais
solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.
Aqui José Murilo já revelava duas
características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo
político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre
ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter
substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições
"republicanas".
Sua tese de relativa autonomia do Estado
imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a
monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção
inicial da primeira parte dessa análise, "A Construção da Ordem: a Elite
Política Imperial" (1980), foi fria.
Em 1978, José Murilo foi convidado por
Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os
quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Nesse tempo, por ele considerado o mais
feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da
cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em "Os
Bestializados" (1987), "A Formação das Almas" (1990) e
"Forças Armadas e Política no Brasil" (2005).
Trata-se de um tríptico que, depois do
díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investigava
a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso
das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo
elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.
Em "Os Bestializados", José
Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do
regime republicano, desenvolvendo o conceito de "estadania" para
designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo
desde que subordinado e encaixado na métrica de "civilizado".
Em "A Formação das Almas", ele
apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em
criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se
o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava
em construir a nação.
Já
"Forças Armadas e Política no Brasil" se dedicava a compreender a
origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de
completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a
única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada,
nacionalista e desinteressada.
Tais reflexões caíam como uma luva à época
do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a
pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância
para além da forma puramente eleitoral.
José Murilo fez assim da denúncia do nosso
déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a
república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal,
lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma
efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o
tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais
recentes, como "Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860" (2018).
Para José Murilo, o governante mais
republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou
uma biografia: "Ser ou Não Ser" (2007). Depois do impeachment de
Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma
provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a
insuficiência da República.
Em debate realizado à época no salão nobre
do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em
meio a toda aquela "pompa republicana". A polêmica da época levaria
este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.
"Cidadania no Brasil: O Longo
Caminho" (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao
diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la.
Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da
cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e
depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido
invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso
à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.
A exposição objetiva e clara dessa hipótese,
entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o
presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as
graduações de ciências humanas.
Paralelamente, como complemento de seus
livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos
e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira,
como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa,
José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.
Os mais importantes, talvez, tenham
sido os dois textos dedicados a
Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender
os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto,
"resgatar do inferno".
José Murilo concluiu sua conversão pública
para "historiador" ao se tornar titular do programa de história da UFRJ,
em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no
aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.
Por meio do projeto Caminhos da Política no
Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional
de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias
coletâneas, como "Linguagens e Fronteiras do Poder" (2011).
Uma mudança importante no período foi a
maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia
Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no
livro "Guerra Literária" (2014), o convenceram de que, ao
contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve
considerável participação popular, não sendo restrita às elites.
Nos últimos tempos, porém, a fé republicana
de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT
tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma
Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se
esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita
aliada ao militarismo.
A história de sua mocidade parecia se
repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha
udenista que denunciara o "mar de lama" resultara no suicídio de
Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na
prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.
Nos últimos anos, José
Murilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado,
reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de
que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado
lhe parecia que tudo tinha sido inútil.
Em "O Pecado Original da
República" (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana
parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como
um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981:
"Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de
Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José
Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos".
A missão do homem José Murilo de Carvalho,
mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra
monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários
o Brasil continua precisando para se republicanizar.
*Christian Lynch, professor de Estudos Sociais
e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e
pesquisador da Fundação Casa Rui Barbosa
Excelente e justa nota biográfica sobre o extraordinário pensador que foi José Murilo de Carvalho. Sua reflexão crítica sobre nossas contradições no momento histórico da fundação da República, propõe uma arqueologia dos tormentos políticos da decadência que nos afligem até hoje. José de Souza Martins
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