O Globo
Tribo chique da pureza racial precisa do
racismo para prosperar
A cor é política. Só assim entende-se a
mudança captada pelo IBGE na declaração de cor/raça entre 2012 e 2022. No curto
intervalo, os pretos saltaram de 7,4% para 10,6% dos brasileiros, enquanto a
parcela de brancos caiu de 46,3% para 42,8%. As alterações, que parecem
refletir o efeito das leis de preferências raciais, não tiveram impacto sobre
os autodeclarados pardos: 45,6% em 2012; 45,3% em 2022. É uma prova, entre
tantas outras, do fracasso do identitarismo racial.
“Mestiçagem, identidade e liberdade”, o novo livro do antropólogo Antonio Risério, publicado pela TopBooks, esclarece a finalidade das políticas de raça. Não se trata, como alegam seus arautos, de oferecer oportunidades a pessoas em desvantagem, via acesso às universidades ou a empregos públicos. Busca-se, de fato, dissolver a consciência da mestiçagem que sustenta nossa identidade nacional, substituindo-a pela imagem de um país bicolor, dividido entre “brancos” e “negros”.
“A
fusão de raças tem se processado desde os primórdios da vida humana sobre a
Terra” — nas palavras de Juan Comas, numa coleção da Unesco sobre raça e
ciência. Risério cita a passagem para diferenciar os cruzamentos genéticos
(miscigenação) da mestiçagem. A segunda é um fenômeno cultural — social e
político.
Mestiçagem significa reconhecimento
positivo da miscigenação. O “racismo científico”
do século XIX denunciou a miscigenação como degeneração de raças. O movimento
identitário-racial, que nasceu nos EUA, opera sob o mesmo paradigma. A noção de
raça remete às ideias de pureza, separação e gueto; mestiçagem é a celebração
da impureza, da mistura e da troca. O Brasil declarou-se 100% impuro, desde
Gilberto Freyre até a Tropicália. Hoje, sua elite intelectual engata marcha a
ré, coalescendo ao redor de um projeto de imitação dos EUA.
Mestiços são os 45% de pardos? Não: a
escolha é entre sermos todos mestiços ou nenhum de nós ser. Dito de outro modo,
a encruzilhada bifurca-se nos caminhos de aderir à raça ou rejeitá-la. É para
aderir que, capturado pelo identitarismo racial, o Estado brasileiro extermina
estatisticamente os pardos. Faz isso por meio de uma violência simbólica: a
cassação da autodeclaração. Os que ousam declarar-se pardos são remetidos à
categoria fictícia dos “negros”, pois a impureza deve ser abolida.
Mito, em antropologia, é uma narrativa
coletiva, não uma falsificação. Nesse sentido, o mito da mestiçagem concorre
com o mito da raça. O Brasil da universidade, das grandes empresas e dos
veículos de comunicação escolheu o mito da raça, apartando-se da consciência
popular. Não é casual que, nas últimas eleições, fracassaram as candidaturas do
identitarismo racial, enquanto formava-se uma “bancada negra” majoritariamente
ligada ao Centrão bolsonarista. As guerras culturais da esquerda elegem a
direita.
A pureza exige “raízes”. O movimento
identitário racial cultua a África. Mas, explica Risério, “a África da
militância neonegra do Ocidente é uma África folclórica”, uma “construção
ingênua e desinformada”. Eu iria além: é uma África ancestral imaginária
invocada por ditadores africanos para desviar suas responsabilidades pelos
sofrimentos atuais para as antigas potências coloniais. Alguém já viu a tal
“militância neonegra” denunciar as discriminações étnicas na “Mama África”?
O álibi superficialmente poderoso do combate
ao racismo acompanha, como uma sombra, a engenharia social dos identitários.
Mas é inviável combater o racismo renunciando à noção de cidadania, cujo
alicerce é o indivíduo.
A doutrina identitário-racial cancela o
indivíduo. Nascer “branco” implica representar os donos de escravos do passado
e pertencer à classe-raça opressora do presente. Nascer “negro” implica
representar supostos ancestrais escravizados e figurar como vítima de um
irrefreável “racismo estrutural” no presente. Nesse cenário, inexistem indivíduos
e escolhas. O que existe são, unicamente, destinos determinados pela cor da
pele.
A tribo chique da pureza racial nutre e esconde, atrás da linguagem extremada, um conformismo medíocre. Eles precisam do racismo para prosperar.
Excelente!
ResponderExcluirBrasil, país sem futuro, provavelmente sobraçará em guerras civis de feitio africano.
ResponderExcluirQuando eu estudava havia o branco,o negro e o mulato,hoje os pardos são considerados negros pelo IBGE e mídias em geral.
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