sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Fernando Gabeira - O último tango no planeta

O Estado de S. Paulo

A última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita

Enquanto o bolsonarismo era atingido em cheio com a venda de joias, emerge na Argentina como vitorioso nas primárias Javier Milei. Bolsonaro e Milei são dois personagens distintos, mas que pertencem ao mesmo campo.

Milei se diz anarcocapitalista, quer dolarizar a economia argentina, fechar o Banco Central e legalizar o comércio de órgãos humanos. Não tem o mesmo ranço militarista de Bolsonaro, mas tende a ser uma espécie de expressão portenha deste grande movimento global que sacode a política.

Nas análises que faço da derrocada moral do bolsonarismo, diante das evidências de corrupção, ressalto sempre que é algo que acontece com um líder, mas não altera as condições político-sociais que viabilizam suas ideias.

No caso argentino, é fácil compreender o fracasso do establishment, diante da inflação galopante, da crescente pobreza e da inquietação social.

Aqui, no Brasil, depois de combater as urnas eletrônicas e flertar com um golpe de Estado, Bolsonaro se vê diante de um erro facilmente compreendido pela maioria da população: apossar-se de algo que não é seu. É possível que isso traga um desencanto em relação à personalidade, mas não abala a desconfiança em relação aos políticos tradicionais, e a economia ainda não se recuperou. Costumo acrescentar um outro fator: a ausência de uma política de segurança pública democrática e inteligente, abrindo caminho para a pregação da violência como alternativa.

O que acontece na América do Sul tem algum tipo de correspondência nos EUA e na Europa, onde as democracias também correm risco.

Apesar de indiciado quatro vezes, Donald Trump continua sendo o candidato mais viável entre os republicanos, empatando nas pesquisas com Joe Biden.

Trump trabalha com as críticas ao processo de globalização, com a repulsa à entrada de imigrantes no país e com o velho tema de tornar a América grande de novo. Grande, solitária e alheia aos problemas do mundo, assim como devem ser as pessoas no ideário da extrema direita: presas à meritocracia e adversárias de uma visão de solidariedade social.

A imprensa francesa noticiou esta semana que a líder da extrema direita do país, Marine Le Pen, vai ampliar sua área de atuação para além da crítica à presença dos imigrantes, para um ataque às teses da transição ecológica e negação do aquecimento global. Na opinião de Le Pen e seu liderados, a tecnologia poderá resolver todos os problemas.

Todo este movimento que perpassa o planeta e que definimos a grosso modo como de extrema direita é, na verdade, um grande mal-estar que nos move não só a analisar incessantemente, mas também a buscar fórmulas audaciosas para superá-lo.

No mundo tal como Milei o vê, o comércio de órgãos é um caminho para a sobrevivência: enquanto tivermos um rim para vender, haverá esperança de sobrevivência. E no mundo tal como madame Le Pen, podemos negar tranquilamente o aquecimento global e confiar na tecnologia, o que significa uma espécie de suicídio coletivo.

Bolsonaro ainda é um pouco mais tosco, seu discurso não se compara ao de uma Georgia Meloni, a líder italiana. Ele defende tortura como método de investigação, o assassinato como instrumento de segurança pública, o fim das etnias indígenas e sua integração na sociedade abrangente.

Alguns desses líderes já estão no poder solapando a democracia, como são os casos de Viktor Orbán, na Hungria, e Netanyahu, que acaba de reduzir os poderes da Suprema Corte em Israel.

É um amplo movimento planetário que reage à crise com grandes passos rumo não somente à destruição da democracia, mas também ao próprio sacrifício da humanidade, uma vez que nega a ameaça global do aquecimento.

Não existe caminho para fazer frente a tudo isso, exceto um grande movimento de solidariedade, uma real frente civilizatória que não pode ser diminuída pelo ranço partidário.

A última esperança de barrar o avanço da barbárie é uma ampla revisão dos erros explorados pela extrema direita. A esperança morrerá quando as tendências hegemônicas invalidarem a própria ideia de trabalho conjunto, reafirmando, no fundo, o salve-se quem puder, que é a palavra de ordem dominante na ascensão dessas forças que não podem ser vistas apenas como algo conjuntural. Vieram para ficar, ainda que alguns de seus expoentes desapareçam no pântano que criaram, como é o caso de Jair Bolsonaro.

Estamos diante de forças planetárias, crescentes, muito atrativas para quem se sente abandonado pela globalização ou traído por políticos voltados para seus próprios interesses. O anarcocapitalismo de Milei foi bem recebido por jovens eleitores; Trump, apesar de tudo, é favorito nos EUA.

A possível virada na Argentina ou mesmo a vitória de Trump deveriam levar a uma reflexão maior que a simples perda de um Mercosul ou impulso para que os russos destruam a Ucrânia. Não somente os países serão condenados à solidão, mas principalmente as pessoas mais vulneráveis.

 

 

6 comentários:

  1. Gabeira! Estes merdas que se dizem "de esquerda" aqui no Brasil comemoram cada bracinho de criança ucraniana que é triturado por um míssil de Putin!

    É só ler o que eles escrevem nos seus "Brasil171" para perceber a morbidez comemorada! Ou pensar seriamente sobre os posicionamentos criminosos de Lula em relação às democracias e seu alinhamento com a barbárie do mundo.

    Onde vamos parar se não denunciarmos esses merdas, a começar por Lula, e ficarmos fazendo de conta que Lula significa diferença muito grande em relação a Bolsonaro?

    "Áh, mas aqui ele não ameaça tanto a democracia!"
    ▪Não ameaça mais porque ainda não consegue. Mas no mundo Lula tem o mesmo alinhamento aos bárbaros e você não nominou!
    ▪A ultra-esquerda europeia que não é fundamentalista e se conduz verdadeiramente dentro dos preceitos democráticos denunciam claramente Lula sobre o alinhamento dele com a barbárie. E aqui na América Latina o Boric e o Petrus, mesmo sendo bem à esquerda, não se iludem e denunciam Lula também!

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    1. A questão não é ser contra a ultra-esquerda (ou ser contra a ultra-direita):: todos os sabores ideológicos genuinos são legítimos na medida em que representam matrizes de ideias efetivamente existentes na sociedade e não faz sentido negar suas existências e ainda menos sentido faz negar para cada um destes sabores a devida liberdade de expressão e de representação, desde que seus seguidores se posicionem nos termos da democracia e a ela não ameacem.

      E nos casos de Lula e Bolsonaro não cabe nem juizos sobre questões ideológicas, com o que estes dois populistas não se importam, cabendo esse juizo sobre ideologismos apenas para aquela parte dos seguidores de cada um que professa ideologias fundamentalistas (outra parte de apoiadores reproduz os interesses do respectivo Mito e acabam repercutindo ideólogos fundamentalistas que flutuam em torno e se alimentam destes Mitos, sem ter maior entendimento e consciência do que defendem seus Mitos e os ideólogos de seus entornos).

      Há que se ser contra fundamentalismos políticos, que estes são descabidos, e também há que se ser contra artificiosidades de populistas e de aristocratas diversos, especialmente as de sindicalistas aristocráticos, que também sequer motivação ideológica expressam, se ocupando estes aristocratas improváveis apenas em ter o poder para realizar seus próprios interesses e caprichos, a partir do mais simples dos caprichos de um aristocrata, que é o de usar abotoaduras de ouro.

      ■A questão mais importante é ser contra e combater a barbárie. E a barbárie é ainda mais perigosa quanto mais ardilosa ela é. Ou, como diz um ditado popular, "a esperteza do diabo é fingir que não existe.

      ●=>Bolsonaro e Lula e seus respectivos seguidores organicamente articulados emprestam apoio à barbárie mundo afora. Vladimir Putin é um bárbaro que conta com o apoio coincidente destes dois.
      ▪Qual dos dois populistas é mais eficiente, nas suas falas ambíguas, em construir resultados no interesse de Vladimir Putin? O apoiador mais eficiente da barbárie é, naturalmente, o mais inteligente e ardiloso, e por isso este mais ardiloso e menos impulsivo é mais perigoso por conseguir enganar e confundir melhor.


      ●Contam uma estória de um menino que, penalizado com uma lagartixa machucada, protegeu o bichinho dentro de uma caixa, que deixou embaixo da cama; e todo dia o menino colocava alimento para a lagartixa.

      Como a lagartixa estava demorando a se curar e ir embora cumprir seu destino, um avô do menino resolveu levantar o colchão da cama para averiguar::
      ▪Por todo o tempo o menino alimentava, por engano, um crocodilo.

      Precisamos pensar no que estamos alimentando com a nossa covardia!

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    2. Ou pensar no que temos alimentado, de barbárie, de oportunismo, de fisiologia, de atrasos ideológicos fundamentalistas, de erros por apoiarmos quem pratica negacionismos técnicos intencionais para politizarem em proveito próprio medidas cuja única decisão política correta é a decisão técnica, e também temos que pensar no tanto que temos incorrido em ingenuidade ou cumplicidade com... depravação moral (não há outro modo de dizer, mesmo não se sendo fã de vestais).

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  2. Observação: salvo engano, a palavra " corrupção " não aparece uma única vez no texto.

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  3. Muito bom o artigo de Gabeira,querer um Jesus Cristo na presidência é sonhar alto demais.

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    1. ■O que eu não quero na presidência são diabos, cada um pior do que outro.
      ▪E não quero o resultado que os diabos causam, de produzir um Brasil de ódio insuportável como o lulopetismo sempre e, de 2013 para cá, junto o bolsonarismo produzem.

      ■O Brasil está tecnicamente e moralmente sendo estraçalhado!

      E no âmbito internacional os diabos populistas do Brasil se alinham com os piores diabos do mundo.

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