Revista Veja
Ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituiçã0
Sempre gostei das histórias malditas, dos personagens improváveis, que por alguma razão se perdem por aí. Um desses personagens é um comediante chamado Bismark Fugazza, e sua história nos dá um flash do transe brasileiro atual. Fugazza e um colega haviam denunciado o ministro Alexandre de Moraes à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violar os “direitos de liberdade de expressão” no país, com “várias prisões” e “multas desproporcionais” sem o devido processo legal. Foi preso no Paraguai, com direito a uma operação internacional e a fechar por alguns minutos a Ponte da Amizade, e passou três meses em cana. O motivo é o de sempre, as “ameaças à democracia” e coisas afins. Na cobertura do caso, quase nenhuma, o carimbo “influenciador bolsonarista” parece resumir a questão. O relatório da Polícia Federal sobre o seu caso foi taxativo: “Não foi possível evidenciar, de maneira minimamente razoável, que Fugazza tenha promovido atos atentatórios às instituições democráticas no 8 de Janeiro”.
Casos como este se tornaram a mais perfeita
banalidade por aqui. Um dos mais curiosos foi o do youtuber Monark, banido das
redes sociais por espalhar “desinformação” sobre o processo eleitoral. “A gente
vê o TSE censurando
gente”, disse ele, “e impedindo a transparência das urnas? Você fica
desconfiado. Que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?”. Foi banido, e
logicamente é inútil perguntar se há alguma lei no país tipificando um crime de
“desconfiança”. Monark simplesmente deu sua opinião, na forma de uma pergunta
perdida em meio a uma conversa fiada, ademais perfeitamente irrelevante, com a
qual cada um pode ou não concordar.
Não faço ideia se alguém seriamente
acredita que reprimir essas pessoas atende a algum imperativo de “defesa da
democracia”. Desconfio que não. As eleições já vão longe, há um certo cansaço
disso tudo, e de certa forma o ministro Barroso matou a charada naquele
discurso sem muitos rodeios, no Congresso da UNE. “Derrotamos o bolsonarismo.”
Ponto. Difícil ir mais longe nesta análise. A esta altura do jogo, não acho que
valha muito a pena fazer longas considerações sobre o sentido do estado de
direito, sobre o quanto é absurdo e inaceitável que a Justiça tome partido, que
direitos individuais sejam tão escrachadamente violados, que a censura prévia
seja banalizada, e tudo o que todos estão cansados de saber. Ainda por estes
dias lia um belo texto referindo-se à visão do grande Isaiah Berlin sobre o
sentido da liberdade, no mundo político. A ideia de que “só ela era capaz de
respeitar nossas almas divididas e o conflito sem fim entre nossos objetivos e
valores”. Berlin fala do aprendizado moderno que vem de Montaigne, de John
Locke, e cuja síntese é: não concordamos com as ideias uns dos outros, nossos
deuses se opõem e nossos valores são frequentemente incompatíveis entre si. E,
apesar disso, precisamos viver juntos. O que só é possível se a regra do jogo
for dada pela liberdade, pelo respeito à regra imparcial, pelo mais amplo
direito à expressão. Do contrário, resta a violência. Resta ficar prendendo
comediantes e palpiteiros por aí, como em uma máquina que subitamente ganha
vida própria.
Diante do estado de coisas a que chegamos, há diferentes atitudes. A primeira é dos entusiastas. A turma que saliva por entre os caninos a cada inimigo banido, preso, seja o que for. Dias atrás li um desses. “Não é hora de recuar”, berrava, abusando dos pontos de exclamação. É difícil saber o tamanho exato dessa turma, mas ela parece majoritária, nos meios de opinião. Para essas pessoas, coisas como “estado de direito” ou “tipificação legal” não passam de conversa pra boi dormir, como escutei de um ativista, em um dia nervoso. Desde que o mundo é mundo, a paixão militante soube justificar qualquer coisa. Não conheço um só episódio, na história, em que se praticou a censura em nome da censura. Os motivos sempre foram os melhores. A nação, a liberdade, a própria democracia. Não há propriamente originalidade no caso brasileiro.
A segunda atitude é a do medo. Quando um
deputado é banido das redes, por uma decisão de ofício, qual o efeito que isso
produz em seus pares? Quando os constituintes criaram o estatuto da imunidade
parlamentar, era exatamente para que um deputado pudesse falar sem medo. Vale o
mesmo para o jornalismo, e para qualquer cidadão, que ganhou o poder de
palpitar em uma rede social. Nos tornamos a democracia do chilling effect, o “efeito
inibidor”. O jurista ilustre para quem você liga lhe dá uma visão bastante
crítica sobre todos esses temas, mas ao final diz, algo constrangido, “só não
me cite, por favor”.
Ainda outra atitude, cada vez mais comum: a
indiferença. A agressão a direitos, em um primeiro momento, causa indignação.
Sua repetição, porém, nem tanto. Torna-se status quo, e vamos nos ajustando. Isso é comum em
longas ditaduras. Alguém por acaso dá bola para presos políticos cubanos?
Acompanho seu drama, em sites precários, aos quais ninguém mais presta muita
atenção. Em democracias que deslizam para o iliberalismo, isto não é muito
diferente. Baniram o Guilherme Fiuza? Aquele que escreveu Meu Nome Não É Johnny? E daí?
Pois é. Isto tem lá sua racionalidade. Bancar o herói, numa época difícil, pode
ser uma atitude de risco. Melhor ficar escondido, por aí, nos grupos de
WhatsApp, mudando de assunto, apostando em alguma forma de autoengano.
Há ainda uma última atitude, dada pela
insistência calma em certos princípios. Não é preciso ser nenhum herói para
fazer isso. Basta fica de pé. Resistir ao frenesi militante e suas bizarrices,
e a toda forma de abuso de poder. Sobre isso há uma lição magistral de Javier
Cercas, em seu Anatomia
de um Instante, que durante bom tempo foi meu livro de cabeceira. O
livro é uma crônica da política espanhola dos anos 1980, época de transição,
depois da ditadura franquista. Em um dado momento, há uma tentativa de golpe.
Seu líder é o coronel Antonio Tejero, um tipo que parece saído de uma novela de
Vargas Llosa. Ele invade o parlamento e mantém sua pantomima por uma madrugada
inteira, até se entregar, no dia seguinte. Cercas escreve seu livro a partir de
uma fotografia feita no exato instante em que Tejero invade o parlamento e abre
fogo contra os deputados. A imensa maioria se esconde embaixo das cadeiras.
Permanecem imóveis apenas três parlamentares, entre eles Adolfo Suárez,
sentado, calmo e impassível, na primeira fila. “Não achei que ficaria bem para
um líder de governo atirar-se para baixo de uma cadeira”, ele diria, depois,
recusando-se a atribuir a si qualquer traço de heroísmo.
É uma boa metáfora para o Brasil de hoje.
Tanto lá, como aqui, não precisamos de heroísmo algum, apenas de pessoas que se
disponham a ficar no mesmo lugar. Permanecer impassíveis, em meio ao transe
coletivo, nos lembrando que a lei deve ser preservada, que a opinião,
detestável que seja, deve ser livre, que ninguém está acima dos direitos
inscritos na Constituição, que o juiz não pode entrar em campo para derrotar
este ou aquele lado do jogo. Coisas elementares que definem uma boa democracia,
e das quais definitivamente não deveríamos abrir mão.
*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 9 de agosto de
2023, edição nº
2853
No Brasil só um lado é extremista.
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