domingo, 13 de agosto de 2023

Fernando Schüler* - A vida não é uma corrida

Revista Veja

Em nossas infinitas diferenças, somos todos capazes

A meritocracia virou uma espécie de patinho feio do debate atual. Michael Sandel diz que ela tem um “lado sombrio”, pois, entre outras coisas, promoveria a “desigualdade”. Nos esportes, na economia, nos concursos de beleza, na educação. Eu mesmo me lembro disso, no colégio, em Porto Alegre. Quem tinha letra boa podia usar caneta, quem não tinha escrevia com o lápis. A mesma coisa com a leitura. Quem sabia ler direito era liberado mais cedo para o recreio. Lembro que aquilo me fez ficar horas lendo em voz alta, no meu quarto, e (ao que me recordo) não gerou nenhum grande trauma. Anos atrás, fui a uma escola charter, no Harlem, em Nova York, e deparei com o ranking dos alunos em todas as paredes, matéria a matéria. Na entrada da escola, um boneco do Obama. Os melhores alunos iriam para Washington, no fim do ano, em uma visita à Casa Branca. Perguntei à diretora se aquela meritocracia toda não gerava algum problema na cabeça dos alunos, e ela me olhou sem muita paciência. Acho que ela não iria concordar muito com os críticos da meritocracia. O último que li foi David Brooks, no The New York Times, culpando a meritocracia pela eleição de (sempre ele) Donald Trump.

A elite arrogante da Costa Leste, com seus diplomas da Ivy League e identificada com o Partido Democrata, tanto tripudiou sobre os caipiras e “sem educação” das regiões interioranas do país que eles passaram a ver em Trump o seu vingador. A tese é boa, só não ficou claro o que a meritocracia teria a ver com isso, dado que sua maior defesa é precisamente feita pelos conservadores. O mais provável é que os “caipiras” estivessem irritados exatamente com as políticas afirmativas que se opõem à meritocracia. Que “furam a fila” do sonho americano, como bem identificou a socióloga Arlie Hochschild em um magnifico estudo sobre a alma conservadora americana.

Tornou-se uma espécie de mania retórica insistir que “a meritocracia é uma farsa”, visto que há pessoas que nascem em famílias ricas, outras em famílias pobres. Ou que alguns nascem com o talento de Neymar e outros se enrolam com a bola, como eu. Isso é uma imensa bobagem. Nunca soube de alguém que defendesse, seriamente, a ideia de que os resultados que as pessoas obtêm, e as desigualdades, na sociedade resultem do mérito das pessoas. É evidente que a distribuição aleatória do talento e da sorte afeta o tempo todo nossos resultados ao longo da vida. Se você tropeçar e der de cara com um bilhete premiado da loteria, ou por acaso dividir o dormitório, na faculdade, com Mark Zuckerberg, pode ficar milionário, sem que qualquer ideia sobre mérito tenha lá muito a ver com isso.

O problema é que isso por vezes nos faz esquecer da outra verdade elementar: que, em boa parte das coisas que fazemos na vida, coisas como o esforço e o trabalho duro contam, e contam muito para os resultados que alcançamos. “A vida é como um jogo de canastra”, me dizia o primo Beto. “As cartas vêm pelo sorteio, mas você é que faz o jogo.” A imagem é perfeitamente verdadeira, desde que todos, por óbvio, recebam sua mão de cartas para jogar. Seria um tremendo erro para qualquer sociedade fazer crer às pessoas que é a sorte ou o azar, ou alguma metafísica divina, e não seu caráter e suas decisões, que definem a vida de cada um. Ainda por estes dias, lia uma dessas matérias associando a meritocracia a todos os males possíveis, para ao final dar o braço a torcer. Em um quadro, no fim do texto, liam-se “dicas” sobre como os jovens de menor renda deveriam agir. “Faça o que for preciso para se qualificar”, dizia o texto, “forme um networking”, e coisas do tipo. Traduzindo: aposte que “você pode”, como não cansava de repetir Obama, ele mesmo um exemplo de que o destino não vem pronto em um pacote.

Os críticos da meritocracia por vezes parecem imaginar a vida como uma espécie de corrida cujos resultados só seriam justos se todos partissem rigorosamente da mesma linha. Vamos imaginar: todos com a mesma educação, condição econômica e assim por diante. Como isso é impossível, o jogo estará sempre comprometido. O ponto é que a imagem da “corrida da vida” é falsa. As pessoas são diferentes, têm expectativas distintas sobre a vida e associam seu senso de realização a critérios que não atendem a um padrão comum. A vida é feita de infinitas corridas, e em boa parte delas não estamos competindo contra ninguém. Se eu decidi ser um professor, posso fixar alguns objetivos, como dar boas aulas e fazer pesquisas, e isso nada tem a ver com o sucesso ou o insucesso de meus noventa e tantos vizinhos de edifício, em São Paulo, ou de meus mais de trezentos colegas na faculdade.

Gosto de ver essas coisas a partir de uma antiga intuição de Thomas Hobbes, em seu Leviatã. “A natureza fez os homens tão iguais”, disse ele, “que, embora por vezes se encontre um homem mais forte, ou de espírito mais vivo”, não seria uma diferença “considerável” para que alguém pudesse “reclamar qualquer vantagem” sobre os demais. Significa o seguinte: a natureza nos fez fundamentalmente iguais. Não porque pretendemos as mesmas coisas, ou dispomos dos mesmos talentos, mas porque, em nossas infinitas diferenças, somos todos capazes. Capazes de criar valor, produzir excelência, provavelmente como Messi ou a nossa Dayane dos Santos, em algum métier humano.

Uma forma mais poética de dizer isso ouvi de Zygmunt Bauman, em uma conversa em sua velha casa de Leeds, na Inglaterra. “Muitos consideram a personalidade de Sócrates como a mais perfeita”, disse o velho filósofo, já no final de nosso diálogo. “Isso significa que deveríamos imitá-lo?”, provocou. “Não! Porque a sabedoria de Sócrates estava precisamente em ter inventado sua própria maneira de viver.” E era esse o seu segredo: “Que para cada ser humano há um mundo perfeito. Feito especialmente para ela ou para ele”. Bauman se refere ao encaixe. À descoberta que cada um tem a fazer sobre aquilo que preenche a vida e faz cada um produzir a melhor versão de si mesmo.

Não me esqueço da história contada por Ken Robinson sobre a menina que era um problema, em sua escola, na Inglaterra dos anos 50. Em vez de prestar atenção na aula e fazer o que a professora mandava, ela era agitada e por vezes dançava entre as cadeiras. Quando foi decidido que ela iria para uma escola para “alunos-problema”, sua mãe pediu uma última avaliação. Caiu nas mãos de um psicólogo que fez uma coisa um tanto estranha. Recebeu a menina em uma sala grande e quase vazia, colocou uma música na sua vitrola e pediu para ela esperar um pouco. Fora da sala, chamou a mãe, e os dois puderam ver, a distância, a menina levantando e dançando alegre ao som daquela música. Foi nesse momento que o psicólogo olhou para a mãe, angustiada com a cena, e disse, calmamente: “Sua filha não é um problema. É uma bailarina”. É isso. Gillian Lynne se tornaria uma estrela do Royal Ballet. A verdade é que cada um de nós é uma Gillian Lynne. E só nos tornamos um “problema” se não descobrirmos o exato significado disso. Não se trata de uma corrida contra ninguém, mas uma jornada para dentro de si mesmo, que diz respeito única e exclusivamente à nossa realização como seres humanos. O sentido maior que deveria ter a nossa educação e, por que não, a comunidade humana em que vivemos.

*Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2023, edição nº 2854

 

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