Revista Veja
Em nossas infinitas diferenças, somos todos capazes
A meritocracia virou uma espécie de patinho feio do debate atual. Michael Sandel diz que ela tem um “lado sombrio”, pois, entre outras coisas, promoveria a “desigualdade”. Nos esportes, na economia, nos concursos de beleza, na educação. Eu mesmo me lembro disso, no colégio, em Porto Alegre. Quem tinha letra boa podia usar caneta, quem não tinha escrevia com o lápis. A mesma coisa com a leitura. Quem sabia ler direito era liberado mais cedo para o recreio. Lembro que aquilo me fez ficar horas lendo em voz alta, no meu quarto, e (ao que me recordo) não gerou nenhum grande trauma. Anos atrás, fui a uma escola charter, no Harlem, em Nova York, e deparei com o ranking dos alunos em todas as paredes, matéria a matéria. Na entrada da escola, um boneco do Obama. Os melhores alunos iriam para Washington, no fim do ano, em uma visita à Casa Branca. Perguntei à diretora se aquela meritocracia toda não gerava algum problema na cabeça dos alunos, e ela me olhou sem muita paciência. Acho que ela não iria concordar muito com os críticos da meritocracia. O último que li foi David Brooks, no The New York Times, culpando a meritocracia pela eleição de (sempre ele) Donald Trump.
A elite arrogante da Costa Leste, com seus
diplomas da Ivy League e identificada com o Partido Democrata, tanto tripudiou
sobre os caipiras e “sem educação” das regiões interioranas do país que eles
passaram a ver em Trump o seu vingador. A tese é boa, só não ficou claro o que
a meritocracia teria a ver com isso, dado que sua maior defesa é precisamente
feita pelos conservadores. O mais provável é que os “caipiras” estivessem
irritados exatamente com as políticas afirmativas que se opõem à meritocracia.
Que “furam a fila” do sonho americano, como bem identificou a socióloga Arlie
Hochschild em um magnifico estudo sobre a alma conservadora americana.
Tornou-se uma espécie de mania retórica
insistir que “a meritocracia é uma farsa”, visto que há pessoas que nascem em
famílias ricas, outras em famílias pobres. Ou que alguns nascem com o talento
de Neymar e outros se enrolam com a bola, como eu. Isso é uma imensa bobagem.
Nunca soube de alguém que defendesse, seriamente, a ideia de que os resultados
que as pessoas obtêm, e as desigualdades, na sociedade resultem do mérito das
pessoas. É evidente que a distribuição aleatória do talento e da sorte afeta o
tempo todo nossos resultados ao longo da vida. Se você tropeçar e der de cara
com um bilhete premiado da loteria, ou por acaso dividir o dormitório, na
faculdade, com Mark Zuckerberg, pode ficar milionário, sem que qualquer ideia
sobre mérito tenha lá muito a ver com isso.
O problema é que isso por vezes nos faz
esquecer da outra verdade elementar: que, em boa parte das coisas que fazemos
na vida, coisas como o esforço e o trabalho duro contam, e contam muito para os
resultados que alcançamos. “A vida é como um jogo de canastra”, me dizia o
primo Beto. “As cartas vêm pelo sorteio, mas você é que faz o jogo.” A imagem é
perfeitamente verdadeira, desde que todos, por óbvio, recebam sua mão de cartas
para jogar. Seria um tremendo erro para qualquer sociedade fazer crer às
pessoas que é a sorte ou o azar, ou alguma metafísica divina, e não seu caráter
e suas decisões, que definem a vida de cada um. Ainda por estes dias, lia uma
dessas matérias associando a meritocracia a todos os males possíveis, para ao
final dar o braço a torcer. Em um quadro, no fim do texto, liam-se “dicas” sobre
como os jovens de menor renda deveriam agir. “Faça o que for preciso para se
qualificar”, dizia o texto, “forme um networking”, e coisas do tipo.
Traduzindo: aposte que “você pode”, como não cansava de repetir Obama, ele
mesmo um exemplo de que o destino não vem pronto em um pacote.
Os críticos da meritocracia por vezes
parecem imaginar a vida como uma espécie de corrida cujos resultados só seriam
justos se todos partissem rigorosamente da mesma linha. Vamos imaginar: todos
com a mesma educação, condição econômica e assim por diante. Como isso é
impossível, o jogo estará sempre comprometido. O ponto é que a imagem da
“corrida da vida” é falsa. As pessoas são diferentes, têm expectativas distintas
sobre a vida e associam seu senso de realização a critérios que não atendem a
um padrão comum. A vida é feita de infinitas corridas, e em boa parte delas não
estamos competindo contra ninguém. Se eu decidi ser um professor, posso fixar
alguns objetivos, como dar boas aulas e fazer pesquisas, e isso nada tem a ver
com o sucesso ou o insucesso de meus noventa e tantos vizinhos de edifício, em
São Paulo, ou de meus mais de trezentos colegas na faculdade.
Gosto de ver essas coisas a partir de uma
antiga intuição de Thomas Hobbes, em seu Leviatã. “A natureza fez os
homens tão iguais”, disse ele, “que, embora por vezes se encontre um homem mais
forte, ou de espírito mais vivo”, não seria uma diferença “considerável” para
que alguém pudesse “reclamar qualquer vantagem” sobre os demais. Significa o
seguinte: a natureza nos fez fundamentalmente iguais. Não porque pretendemos as
mesmas coisas, ou dispomos dos mesmos talentos, mas porque, em nossas infinitas
diferenças, somos todos capazes. Capazes de criar valor, produzir excelência,
provavelmente como Messi ou a nossa Dayane dos Santos, em algum métier humano.
Uma forma mais poética de dizer isso ouvi
de Zygmunt Bauman, em uma conversa em sua velha casa de Leeds, na Inglaterra.
“Muitos consideram a personalidade de Sócrates como a mais perfeita”, disse o
velho filósofo, já no final de nosso diálogo. “Isso significa que deveríamos
imitá-lo?”, provocou. “Não! Porque a sabedoria de Sócrates estava precisamente
em ter inventado sua própria maneira de viver.” E era esse o seu segredo: “Que
para cada ser humano há um mundo perfeito. Feito especialmente para ela ou para
ele”. Bauman se refere ao encaixe. À descoberta que cada um tem a fazer sobre
aquilo que preenche a vida e faz cada um produzir a melhor versão de si mesmo.
Não me esqueço da história contada por Ken
Robinson sobre a menina que era um problema, em sua escola, na Inglaterra dos
anos 50. Em vez de prestar atenção na aula e fazer o que a professora mandava,
ela era agitada e por vezes dançava entre as cadeiras. Quando foi decidido que
ela iria para uma escola para “alunos-problema”, sua mãe pediu uma última
avaliação. Caiu nas mãos de um psicólogo que fez uma coisa um tanto estranha.
Recebeu a menina em uma sala grande e quase vazia, colocou uma música na sua
vitrola e pediu para ela esperar um pouco. Fora da sala, chamou a mãe, e os
dois puderam ver, a distância, a menina levantando e dançando alegre ao som
daquela música. Foi nesse momento que o psicólogo olhou para a mãe, angustiada
com a cena, e disse, calmamente: “Sua filha não é um problema. É uma
bailarina”. É isso. Gillian Lynne se tornaria uma estrela do Royal Ballet. A
verdade é que cada um de nós é uma Gillian Lynne. E só nos tornamos um
“problema” se não descobrirmos o exato significado disso. Não se trata de uma
corrida contra ninguém, mas uma jornada para dentro de si mesmo, que diz
respeito única e exclusivamente à nossa realização como seres humanos. O
sentido maior que deveria ter a nossa educação e, por que não, a comunidade
humana em que vivemos.
*Fernando Schüler é cientista político
e professor do Insper
Publicado em VEJA de 11 de agosto de
2023, edição nº
2854
Perfeito
ResponderExcluirExcelente artigo.
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