Correio Braziliense
A violência e as perseguições
às religiões de matriz africana continuam, apesar de a Lei 9.459, de 1997,
considerar crime inafiançável e imprescritível a prática de discriminação ou
preconceito contra religiões
O Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (Incra), na quarta-feira, no Diário Oficial da União (DOU),
notificou 44 proprietários ou ocupantes identificados dentro do Quilombo
Pitanga dos Palmares. A notificação é resultado da luta secular dos negros
residentes no local, mas só aconteceu porque Maria Bernadete Pacífico, a Mãe
Bernadete, foi assassinada na semana passada. O Incra levou seis anos para
fazer a simples notificação. Ou seja, o problema vem de antes do governo Jair
Bolsonaro.
O conflito agrário é uma das causas da
violência contra aquela comunidade, que perdeu duas de suas lideranças, Mãe
Bernadete e seu filho. Em 2017, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, o Binho do
Quilombo, foi morto a tiros enquanto deixava os filhos na escola. Muito
provavelmente, um dos ocupantes da região foi o mandante do crime.
A demora da notificação é atribuída à pandemia e ao número reduzido de funcionários do Incra, mas isso é muito mais um pretexto. A Bahia tem 380 processos de regularização fundiária e mais de 220 processos de desapropriação de imóveis rurais. É o estado da Federação com a maior população quilombola do país, com mais de 600 comunidades certificadas pela Fundação Palmares.
Nos últimos 10 anos, 11 quilombolas baianos
foram mortos, segundo a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades
Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Essas mortes escancaram a violência contra
eles, muitas vezes em razão de ocuparem terras que, hoje, são muito cobiçadas,
como é o caso de Pitanga dos Palmares, na região metropolitana de Salvador.
Esses interesses se somam ao preconceito e à discriminação aos líderes e
praticantes de cultos afro-brasileiros. Essa associação entre quilombos e
religião foi fundamental para a preservação dessas comunidades e a resistência
contra o racismo. Não à toa seus líderes religiosos sofrem perseguições
constantes.
Os negros brasileiros cultuam seus orixás,
os espíritos antepassados e a natureza. As práticas religiosas durante a
escravidão, mesmo quando obrigadas ao sincretismo com o catolicismo, eram uma
representação da vida em liberdade que os escravos desfrutaram na África, e que
ganharia materialidade nos quilombos, refúgio de ex-escravos fugitivos e/ou
libertos, o mais famoso o de Palmares, nas Alagoas. Outras manifestações
culturais, do samba às rodas de congo e à capoeira, também foram muito
reprimidas. A perseguição aos cultos religiosos de matriz africana, porém,
persiste até hoje.
Os primeiros registros dos rituais dos
cultos de matriz africana se devem a João do Rio, no livro As religiões do Rio,
e ao médico baiano Nina Rodrigues, autor de O animismo fetichista dos negros
baianos, que denunciou a perseguição aos terreiros e a violência policial
contra seus praticantes. Até a Constituição de 1946, não havia liberdade
religiosa no Brasil. O Código Penal republicano de 1890 proibia “praticar o
espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancias para
despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e
incuráveis, enfim, fascinar e subjugar a credulidade pública”.
População de risco
Ao contrário do que ocorria até 1940, o que
acontece hoje não tem a chancela oficial do Estado, mas a violência e as
perseguições continuam, apesar de a Lei 9.459, de 1997, considerar crime
inafiançável e imprescritível a prática de discriminação ou preconceito contra
religiões. O Censo Demográfico 2022 mostrou que a nossa população quilombola é
de 1.327.802 pessoas, correspondendo a 0,65% da população. Há 1.696 municípios
com população quilombola e 473.970 domicílios permanentes.
O Nordeste, com 905.415 quilombolas, tem
68,2% dessa população, seguido do Sudeste, com 182.305 pessoas, e o Norte, com
166.069 pessoas, que contabilizam 26,24% dos quilombolas. Com 5,57%, as regiões
Centro-Oeste e Sul têm muito menos, 44.957 e 29.056 pessoas, respectivamente.
A Bahia, com 397.059 pessoas, sozinha tem
29,90% da população quilombola recenseada. Em seguida, vem o Maranhão, com
269.074 pessoas — 20,26%. Estão concentrados nesses dois estados 50,17% da
população quilombola. Roraima e Acre não têm presença quilombola.
Senhor do Bonfim (BA), com 15.999, seguido
de Salvador, com 15.897, Alcântara (MA), com 15.616, e Januária (MG),
concentram 15 mil pessoas. Os 494 territórios oficialmente delimitados
representam apenas 12,59% da população quilombola (167.202 pessoas).
Temos 160.600 (87,41%) quilombolas em
situação de risco. Com a expansão urbana e das fronteiras agrícolas, muitas
dessas localidades se tornaram área de conflitos sob forte pressão de
milicianos, nos centros urbanos, e de grileiros, nas áreas rurais. Urge
regularizar as terras dessas comunidades e lhes garantir proteção, para que
possam morar, trabalhar, produzir, preservar seus costumes e cultura.
Há soluções possíveis para esses conflitos,
como no Terminal Portuário de Alcântara, no qual a GPM (Grão Para e Maranhão),
que reúne investidores portugueses e alemães, fez uma parceria com os
quilombolas, que receberam benfeitorias e participação financeira no
empreendimento.
O governo Lula tem dois ministros com
enorme responsabilidade quanto à situação dos quilombolas, seja pelos cargos
que ocupam, seja porque foram governadores da Bahia e do Maranhão: o da Casa
Civil, Rui Costa, e o da Justiça, Flávio Dino, respectivamente. Ou seja, ambos
têm um grande passivo nessa questão. A violência contra os negros, em especial
os quilombolas, contraria a narrativa do governo Lula, cuja imagem é desgastada
pelos assassinatos e perseguições aos quilombolas, especialmente na Bahia.
Verdade.
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