O Estado de S. Paulo
A adesão consciente ao método da democracia
política pelas forças fundamentais é o real caminho para reduzir o tamanho e a
expressão da direita radical
Em tempo de sobressaltos, o mais recente
acaba de vir da vizinha República Argentina, cujas primárias eleitorais nos
obrigaram a debruçar sobre um termo – anarcocapitalismo – até então marginal ou
só conhecido por alto. Intuitivamente, sabemos que pertence à constelação da
extrema direita, à qual acrescenta toques de crueldade, como a ideia de que a
liberdade absoluta do indivíduo, posto no centro de tudo, supõe ou legitima o
comércio dos seus órgãos. Uma “modesta proposta” que lembra não só um
capitalismo pré-keynesiano, mas, ainda antes, o mundo setecentista satirizado
por Swift, em que crianças pobres serviriam de repasto aos ricos e, assim,
deixariam de pesar sobre suas famílias.
A teratologia, que não convém subestimar, é evidente. Faz-se acompanhar de um conjunto extremo de medidas, como a extinção do banco central ou a apologia de um Estado radicalmente mínimo, no qual se proscrevem expressões que recordem ou mencionem “justiça social”. Temos aí sintomas de transições perturbadoras, que marcam o interregno entre o mundo de ontem, que conhecíamos em grandes linhas, e um outro que mal podemos entrever. A reprodução tranquila das democracias liberais, proclamada há apenas algumas décadas, não mais está garantida. Defendê-las, fazer valer suas normas e instituições, tem sido o drama que se repete um pouco por toda parte em cada rodada eleitoral e em cada situação crítica.
Não se sabe muito bem como e quando o gênio
escapou da garrafa, e a única certeza é de que a ela não retornará tão cedo.
Multiforme, dotado de sete fôlegos, ele pode deslocar-se da Argentina – ou do
Brasil de recente memória – e reaparecer numa pequena república, como El
Salvador, para comprovar as possibilidades de consenso, mesmo passivo e
manipulado, em torno de estratégias de repressão massiva. Pode fazer nova
aparição num México governado por uma esquerda populista cuja identificação
exclusiva com a nação torna difícil a prática do pluralismo. E não lhe custa
nada, àquele gênio, voltar a assombrar a mais antiga democracia dos modernos,
sob a forma de um líder, como Donald Trump, cuja passagem pelo governo
universalizou as táticas de erosão de regras e valores civilizacionais que
julgávamos mais enraizados do que em qualquer outro lugar.
Não por acaso, disseminou-se a perplexidade
estampada numa infinidade de estudos sobre o colapso ou a morte das
democracias. A ideia já bem difundida de que o demos pode se voltar contra os
institutos liberais que limitam o poder de maiorias eventuais, conferindo assim
um poder incontrastado ao governante de turno, migrou de países menores para “a
cidade que brilha no alto da colina”, segundo a fórmula consagrada no discurso
de arautos do excepcionalismo norte-americano, como Ronald Reagan. No contexto
da guerra fria, é certo que os Estados Unidos promoveram, ao mesmo tempo,
democracias no Ocidente e ditaduras na periferia. Com Trump, ao menos
ideologicamente, tornaramse, ou tiveram a fantasia de se tornar,
estruturalmente homólogos a autocracias consumadas, como, para mencionar um
caso irrefutável, a Rússia de Vladimir Putin.
Ainda em meio à incerteza dos acontecimentos,
não é possível dizer que a perplexidade tenha se dissipado. Há os que apostam
nas marcas de nascença de cada sociedade e na resiliência das suas
instituições, como se pelo menos algumas pudessem resistir mais bravamente aos
maus ventos da História. Analisando a situação europeia, Sheri Berman,
cientista política da Universidade da Colúmbia, vê sinais ainda ambíguos de
moderação em alguns partidos da extrema direita, a exemplo da italiana, da
sueca e da francesa (publicado na plataforma Persuasion, editada por Yascha
Mounk, o breve texto de Berman traz o título provocador de Como a extrema
direita europeia ocidental se moderou).
A esperança é de que com este movimento
tais partidos acabem incorporados, ainda que gradualmente, à direita clássica,
cuja presença nos Parlamentos é essencial para o jogo democrático. E, para que
tal ocorra, democratas em geral e esquerda em particular devem afastar-se dos
esquemas destrutivos da polarização, como o que lança o anátema de “fascistas”
não só sobre líderes e partidos, mas também sobre milhões de eleitores
adversários. O fascismo histórico, a partir da versão inaugural mussoliniana,
combinou astuciosamente política e violência, presença nas instituições e força
bruta – para não falar do descrédito doloso das urnas e seus legítimos
resultados. Ontem, como hoje, a violência e a força, tal como na invasão do
Capitólio ou na “marcha sobre Brasília”, é que constituem o limite inaceitável.
É possível que a esperança possa renascer
antes e mais vigorosamente no nosso país. A adesão consciente ao método da
democracia política por parte das forças fundamentais, inclusive e
especialmente de esquerda, é o caminho real para reduzir o tamanho e a expressão
da direita radical. Não deveria ser difícil a compreensão deste imperativo,
assim como a percepção de que, num extremo e no outro, o sono da razão produz
monstros, sempre.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil
Parabéns, Sérgio...Lucidez de visão e clarividência de análise do espectro que se abateu sobre a civilização atiçado pelo mau gênio da garrafa...Bolsonaro foi apenas a pré-estréia?
ResponderExcluirBingo!!
ResponderExcluirMuito boa a coluna do colunista.
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