O Globo
Foi concluído no Supremo Tribunal Federal (STF)
nesta semana, longe dos olhos do público e da TV Justiça, um
julgamento simbólico. Tratava-se de decidir se os juízes, incluindo os próprios
ministros do STF, são obrigados a se declarar impedidos de julgar casos de
clientes dos escritórios de advocacia de seus parentes, mesmo quando a causa é
defendida por outro escritório.
Para que fique claro: o artigo do Código de Processo Civil (CPC) que diz que ministros não podem julgar processos em que seus parentes advogam continua valendo. A dúvida ali era sobre um outro trecho que o Congresso incluiu no código em 2016, estendendo o rol dos impedimentos.
Um exemplo desse tipo de situação ficou
famoso em 2017, quando o ministro Gilmar
Mendes mandou libertar o empresário Eike Batista, que estava preso por
corrupção ativa na Lava-Jato. Eike era cliente do escritório da mulher de
Gilmar, Guiomar, mas naquela ação específica os advogados eram outros.
Em tese, a regra estava em vigor, por isso
o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu a anulação da
liminar de Gilmar. O ministro respondeu que não havia impedimento algum. A
ministra Cármen
Lúcia, a quem coube avaliar o pedido, só veio a negá-lo em 2018, quando já
fazia um ano que Eike estava solto. (Ele ainda viria a ser preso de novo em
2019.)
Pois bem. Na segunda-feira, o Supremo
seguiu a “jurisprudência” de Gilmar e enterrou a regra por 7 votos a 4.
Pode parecer uma discussão lateral. Mas os
conflitos de interesses são um problema tão antigo quanto fundamental para a
saúde da democracia.
Não foi outro o motivo que levou Lula a
ser processado pelas palestras que dava a soldo de empreiteiras e
multinacionais — quem podia garantir que não havia ali um pagamento disfarçado
por medidas de seu governo?
A mesma régua serviu para mandar por água
abaixo a credibilidade da Lava-Jato, quando se descobriu que procuradores e
juízes trocavam informações por baixo dos panos, ou se verificou que o irmão de
um procurador advogava para réus da operação.
Quando discussões assim relevantes acabam
no Supremo, ele costuma arbitrá-las em sessões transmitidas ao vivo pela TV e
pela internet, com votos longos e rebuscados.
Mas, quando se trata de impor limites a si
próprios, os ministros mudam de atitude. O julgamento desta semana se deu no
plenário virtual, onde os votos não são lidos ou discutidos, apenas publicados
no site da Corte. Dos 11 ministros, cinco entregaram votos escritos. Os outros
seis apenas deram um clique acompanhando os colegas.
Consultados, a Câmara
dos Deputados, o Senado, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral
da República foram a favor de manter a regra.
Quem foi contra — a Associação dos
Magistrados do Brasil, que a contestou, e Gilmar Mendes, que redigiu um voto de
15 páginas — não questionou o mérito do impedimento. Preferiu apelar para uma
questão prática: afirmar que a regra fere o princípio da razoabilidade. Seria
impossível de fiscalizar, já que não há como um ministro conhecer de antemão
todos os clientes de seus parentes.
O argumento até poderia fazer sentido, se
não houvesse formas de pesquisa virtual ou mesmo a alternativa de dar um prazo
para os escritórios que atuam numa causa apontarem impedimentos dos adversários
— uma das propostas para dar consistência à norma, do ministro Luís
Roberto Barroso, solenemente ignorada.
Embora a controvérsia esteja no Supremo
desde 2018, o que houve foi um debate ligeiro e envergonhado sobre um assunto que
paira como sombra sobre o Judiciário brasileiro. Quem acompanha os bastidores
das cortes está cansado de ouvir histórias de suspeitas envolvendo a atuação de
escritórios de advocacia mantidos por filhos, mulheres, irmãos e sobrinhos de
magistrados.
Vários ministros cobram — e bem — para dar
palestras em eventos jurídicos ou contratados por empresas. Mas, sempre que
questionados, se recusam a confirmar se cobraram para falar e em nenhuma
hipótese revelam seus cachês.
Eventos jurídicos com patrocínio em que
magistrados confraternizam com gente que depende de suas decisões já não causam
espanto. No julgamento desta semana, seis dos que votaram pelo fim do
impedimento têm parentes com escritórios e causas no Supremo: Cristiano
Zanin, Alexandre
de Moraes, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Kassio
Nunes Marques e Dias
Toffoli.
No recém-lançado livro “O Supremo: entre o
Direito e a política”, o professor de Direito Constitucional Diego Werneck
Arguelhes diz que a legitimidade dos juízes depende de eles convencerem uns aos
outros e a própria sociedade de que aquilo que decidem “não vem da sua cabeça,
mas deriva do Direito vigente”. No Brasil, porém, o Supremo impõe limites às
outras instituições, mas ninguém impõe limites ao Supremo.
Sei.
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