Folha de S. Paulo
Uma de suas análises sobre o golpe de 64
ajuda a entender o 8 de Janeiro
No meio de tudo o que publicou de bom e
robusto, José Murilo de Carvalho, que se foi no fim de semana, deixou muitos
artigos curtos, despretensiosos. Entre eles, uma joia de 11 páginas,
"Fortuna e Virtù no Golpe de 1964", incluído no livro "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005).
Ali, o cientista político e historiador fala das duas surpresas dos que viveram a deposição de João Goulart e a chegada dos militares ao poder. A primeira foi a facilidade com que os conspiradores da direita levaram a melhor. A segunda, a permanência dos fardados no comando político, quando o retrospecto, desde o fim do Estado Novo, em 1945, fazia crer que a quartelada seria "cirúrgica": removido o presidente, o poder logo seria devolvido aos civis.
Para explicar o inesperado, José
Murilo refuta as teses que o davam como inevitável, vistas as
características do nosso desenvolvimento econômico, a formação das classes
dominantes, sem falar nos interesses do "imperialismo ianque".
Segundo ele, tais teorias eximem de responsabilidade os atores políticos —o
golpe de 64 não fora produto de forças sociais imbatíveis, mas dos enganos de
protagonistas influentes de carne e osso.
A interpretação, a rigor, não é original.
Com argumentos sofisticados e rica documentação, havia sido exposta no clássico
de Argelina Cheibub Figueiredo,
"Democracia ou Reformas?" (1993). A contribuição de
Murilo consiste em ter dado o devido peso às ilusões que induzem as forças
políticas a escolhas desastrosas: as apostas de Jango no poderio dos sindicatos
e da massa organizada e na lealdade do chamado "dispositivo militar";
a crença dos nacionalistas radicais de que uma estratégia de polarização os
beneficiaria. Se a responsabilidade do golpe foi dos que o deram, reitera
Murilo, as ideias fora de lugar dos que o sofreram foram cruciais para o
desenlace.
O argumento de Murilo ajuda a ver melhor o
fracassado golpe de Bolsonaro no 8 de Janeiro.
A oposição democrática e a resistência das
instituições republicanas foram fundamentais para brecar a intentona. Porém,
quanto mais passam os meses, mais claro fica que o ex-capitão, capturado por
vastas emoções e pensamentos para lá de imperfeitos, acreditava que seguiria no
poder, dissessem o que dissessem as urnas.
Foi-lhe fatal a miragem de que a simpatia
da caserna —cultivada com benefícios e adulação sistemática e ainda estimulada
pelo berreiro dos acampamentos— empurraria para o seu lado, incondicionalmente,
o alto comando militar.
O despudor de seus comandados na desastrada
operação para vender as joias da Presidência não se explica de outra forma.
Verdade.
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