terça-feira, 29 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

É necessário reequilibrar a Câmara

O Globo

Omissão de três décadas do Congresso contribuiu para ampliar distorções na distribuição dos deputados

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Congresso precisará definir o número de deputados de cada estado de acordo com a população. É exatamente o que determina o artigo 45 da Constituição Federal. O motivo é dar a cada eleitor brasileiro peso comparável na Câmara Baixa do Parlamento.

Não se trata, é bom lembrar, de peso equivalente. Ao manter limites mínimo (8) e máximo (70) para as bancadas, a Constituição cria distorções intrínsecas (o voto de um roraimense para deputado equivale ao de dez paulistas). Mas isso não justifica ampliar as distorções. É inacreditável que a proporção atual seja idêntica à definida em 1993. Há 30 anos, a Câmara ignora as mudanças populacionais registradas por três edições do Censo. Um estado como Santa Catarina, com população de 7,6 milhões, tem 16 cadeiras na Câmara, enquanto o Maranhão, com 6,7 milhões de habitantes, tem 18.

Os 11 ministros do STF deram prazo até junho de 2025 para redistribuição das vagas. Caso o Legislativo continue a se omitir, o TSE ficará com a tarefa. A apreciação do tema foi motivada por uma ação protocolada em 2017 pelo Pará, um dos estados mais afetados pela sub-representação. Uma projeção do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) com base no último Censo estima que os paraenses terão direito a eleger mais quatro deputados, mesmo número que ganhará Santa Catarina. Amazonas terá dois a mais. Ceará, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais um cada. O Rio perderá mais vagas (quatro), seguido de Bahia, Paraíba, Piauí e Rio Grande do Sul (duas) e Alagoas e Pernambuco (uma).

É compreensível que as bancadas dos estados que perderão representantes façam barulho. Mas, até o momento, nenhuma liderança ousou argumentar contra o artigo 45 da Constituição. Ele estabelece de modo claro que, enquanto a Câmara deve seguir distribuição proporcional à população, no Senado todos os estados têm direito ao mesmo número de cadeiras: três. A Câmara Alta funciona, na nossa arquitetura institucional, como meio de equilíbrio de poder entre entes grandes e pequenos, ricos e pobres. Defender um sistema com sub-representados e hiper-representados também na Câmara subverteria o princípio segundo o qual o voto de todos deve ter o mesmo peso.

Críticos da decisão do STF tentam minar a legitimidade do último Censo. É a mesma tática dos municípios cujos repasses federais serão afetados pela redução populacional. Mas não adianta culpar o mensageiro pela mensagem desagradável. Enquanto o Censo traz a melhor aproximação possível para a população brasileira, é patente a omissão do Congresso. Quando o Pará entrou com a ação, o então presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE), tentou negar a demora. O ministro do STF Luiz Fux, relator do caso, foi certeiro ao dizer que o atraso era “ofensa ao direito político fundamental ao sufrágio das populações dos estados sub-representados e, por conseguinte, ao princípio democrático”.

Já houve tentativa de acabar com a protelação. Em 2013, o TSE buscou alterar as bancadas, mas o STF entendeu que a tarefa cabia ao Legislativo. O tempo passou e nada foi feito. É certo que não é missão fácil. Muitos deputados terão de concordar em diminuir a representação de seus próprios estados. A dificuldade, porém, não pode ser pretexto para descumprir a Constituição e perpetuar uma injustiça.

Não faz sentido estender desoneração da folha salarial para municípios

O Globo

Medida se justifica no setor privado por gerar empregos. No setor público, tal lógica não se aplica

Tem sido infelizmente comum no Congresso a prática de usar um Projeto de Lei em tramitação para emendá-lo com dispositivos sobre outro assunto, o proverbial “jabuti”. Foi mais uma vez o que aconteceu no Projeto de Lei que prorroga até 2027 a desoneração da folha de salários de 17 setores essenciais para a geração de empregos e renda. Desta vez, em benefício de prefeituras.

No Senado, acrescentaram ao texto a redução de 20% para 8% na contribuição previdenciária de municípios de até 142.600 habitantes. Na Câmara, emenda do deputado Elmar Nascimento (União-BA) manteve o benefício, mudando o critério (de população para renda per capita). A perda para os cofres da Previdência é estimada em R$ 9 bilhões — justamente num momento em que o governo precisa aumentar as receitas, de modo a cumprir as metas fiscais.

Ao contrário da emenda dos municípios, o PL da desoneração das empresas não transfere despesas à União. Entre 2017 e 2022, os setores que puderam funcionar com a nova contribuição previdenciária criaram 1,2 milhão de postos de trabalho. O problema dos municípios é de outra natureza. Não pode ser tratado como a desoneração da folha de empresas privadas, que contribuem com impostos para União, para estados e para os próprios municípios.

A lógica que rege a desoneração da folha das empresas não se aplica ao setor público. No caso das corporações, a troca dos 20% da contribuição previdenciária pela incidência de alíquotas de 1% a 4,5% sobre o faturamento já provou ser instrumento eficaz para manter e criar empregos. O caixa da Previdência se beneficia com as novas contratações decorrentes da desoneração. O alívio a caixa de municípios, em contraste, não gera nem elimina postos de trabalho, pois os servidores municipais têm estabilidade. Apenas atende ao clamor de prefeitos sem recursos, preocupados com as eleições do ano que vem.

É verdade que apenas o aumento do salário mínimo anunciado pelo governo deverá gerar impacto de R$ 5 bilhões nos caixas municipais. Mas, se os municípios estão com dificuldades, deveriam tratar de fazer ajustes. De acordo com levantamento do próprio Ministério da Previdência, menos de um terço dos municípios realizou a reforma previdenciária determinada na Emenda Constitucional que mudou as aposentadorias e pensões em 2019. Os prefeitos deveriam tratar disso como prioridade.

Não dá para misturar a Previdência municipal com a desoneração de empresas de setores fundamentais. O risco, com a emenda, é o PL ter de voltar para a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, quando o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já se comprometera com a votação final da proposta nesta semana. A relatora do projeto na Câmara, deputada Any Ortiz (Cidadania-RS), não desconsidera as dificuldades dos municípios, mas diz, com razão, que a prioridade é aprovar a matéria o mais rapidamente possível.

Estados reclamam de caixa vazio e União eleva limite de crédito

Valor Econômico

Tesouro raramente conseguiu recuperar recursos com a execução de contrapartidas de Estados e municípios que deixaram de pagar empréstimos garantidos pela União

Depois de terem passado os dois primeiros anos da pandemia com os caixas cheios, os Estados reclamam de falta de dinheiro neste ano. Chegou a conta daquele período em que o governo federal fez repasses para compensar a queda da arrecadação e atender a demanda dos sobrecarregados sistemas de saúde e serviços de assistência social estaduais, e os gastos foram reduzidos por uma legislação especial que congelou os salário dos servidores, suspendeu os concursos e os pagamentos das dívidas com a União.

A pressão pelos reajustes salariais voltou já no ano passado. Para complicar, no segundo semestre de 2022, o governo Bolsonaro impôs a redução do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica e telecomunicações para conter a inflação em período eleitoral, cortando uma das principais fontes de arrecadação dos Estados.

As consequências ficaram evidentes nos resultados do primeiro semestre deste ano, conforme levantamento feito pelo Valor, que mostrou queda nas receitas e o aumento dos gastos, principalmente com pessoal (Valor, 21/08). Para complicar, a base de comparação das receitas é elevada, uma vez que a arrecadação havia crescido no primeiro semestre de 2022 com o aumento da inflação e o impacto da invasão da Ucrânia pela Rússia nos preços das commodities e do petróleo.

A receita tributária de 26 Estados e do Distrito Federal diminuiu 7,8% em termos reais no primeiro semestre em comparação com o mesmo período de 2022, encolhendo a receita corrente, que recuou 2,3%. Por outro lado, as despesas correntes cresceram 4,7% reais no primeiro semestre, infladas principalmente pelo aumento de 6,6% do gasto com pessoal, que representou 58,3% do total. Contratações e a demanda por reajustes salariais dos servidores já vinham pesando nas contas desde o início do ano. A elevação do piso salarial dos professores e dos profissionais da saúde e do próprio salário mínimo são fatores que vão manter a pressão.

Outro levantamento do Valor mostrou que o Rio Grande do Norte já estava acima do teto estabelecido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no início do ano passado e continuou gastando. Minas Gerais e Rio de Janeiro romperam o limite máximo de despesa de pessoal em abril. Outros três Estados, Rio Grande do Sul, Roraima e Acre, superaram o limite prudencial.

Esse ambiente afeta o humor dos governadores em relação à reforma tributária, que vai alterar diretamente a receita com ICMS. Um dos pontos de atrito é o artigo incluído no apagar das luzes no texto da reforma aprovado na Câmara dos Deputados, que permite a Estados criar novos impostos, defendido por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pará. Ele autoriza que governadores apliquem uma tributação sobre produtos primários e semielaborados até 2043. Os recursos seriam destinados à infraestrutura. Para os críticos, fragiliza-se o objetivo da reforma de simplificar e unificar impostos.

Nesse momento, o governo federal chega com um pacote importante que muda as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) para os entes muito endividados, além de alterar as condições de acesso ao crédito pelos Estados e municípios, e da obtenção de garantias a concessões e Participações Público-Privadas (PPPs). Algumas medidas ainda precisam passar pelo Legislativo.

As propostas geraram reações variadas. Algumas foram apoiadas e consideradas necessárias, outras, especialmente as relacionadas ao crédito, foram vistas com desconfiança e receio. Há um razoável consenso e até apoio de governadores de que as regras da LRF e da RRF precisavam ser modernizadas. Criada em 2017 e revista em 2021, a LRF ainda tem algumas amarras como o prazo de ajuste, considerado curto, e que pode ser agora ampliado de 9 para 12 anos; e a rigidez prescrita para se chegar lá. De modo que mudanças nesses pontos foram consideradas bem-vindas.

O pacote, apresentado no mês passado, inclui também mudança em critérios para cálculo do rating dos Estados, medido pela capacidade de pagamento, acesso para municípios menores, e alterações nas regras para que bancos públicos ofereçam garantias a PPPs e possibilidade de emissão de debêntures com isenção de Imposto de Renda para investimentos, entre outras. Essa parte é que inspira maior preocupação. Ainda está viva na memória a crise de endividamento dos Estados provocada pela abertura das torneiras do crédito entre 2012 e 2014 pela ex-presidente Dilma Rousseff e seu ministro da Fazenda, Guido Mantega.

O Conselho Monetário Nacional (CMN) elevou em R$ 12 bilhões o limite para contratação de operações de crédito realizadas por Estados e municípios, sendo R$ 9 bilhões para operações com garantia da União e R$ 3 bilhões para as sem garantia da União, a partir de setembro. Levantamento recente mostra que o Tesouro raramente conseguiu recuperar recursos com a execução de contrapartidas de Estados e municípios que deixaram de pagar empréstimos garantidos pela União. No início da série histórica, em 2016, a União recuperou R$ 2 bilhões, em preços da época. Desde então, o valor vem caindo, até atingir zero de janeiro a junho deste ano.

Não foi golpe

Folha de S. Paulo

Erros na economia e na política, não pedaladas, levaram ao impeachment de Dilma

O ex-presidente Fernando Collor de Mello foi absolvido, em dois julgamentos distintos no Supremo Tribunal Federal, de acusações da época em que governava o país, em temas que precipitaram o seu impeachment em 1992. Nem por isso se cogita rever o veredito do Congresso Nacional que o depôs ou oferecer-lhe recompensas.

O precedente vem à memória quando a confusão politiqueira entre os trâmites da Justiça comum, de um lado, e os procedimentos para os crimes de responsabilidade, do outro, irrompe no noticiário, por iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O mandatário diz estar estudando oferecer reparação à ex-presidente Dilma Rousseff —não bastou a sinecura internacional com que a presenteou— em razão de uma ação que a acusava de improbidade administrativa pelas chamadas pedaladas fiscais ter-se mantido arquivada por decisão em segunda instância da Justiça Federal.

Pode-se discordar da utilização das manobras orçamentárias da então presidente como razão formal para cassar-lhe o mandato. Também é compreensível a crítica, adotada por esta Folha à época, à banalização do impeachment, uma espécie de bomba atômica institucional, para lidar com as crises políticas recorrentes da República.

Outra coisa, muito diversa e equivocada, é negar legitimidade ao processo e aos atores —o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal— que o conduziram.

A lei dos crimes de responsabilidade, que define os motivos pelos quais as casas legislativas podem processar e depor o presidente da República, é flexível a ponto de permitir o enquadramento de virtualmente qualquer governante. Basta, por exemplo, o juízo subjetivo de que ele procedeu "de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo".

Não foi a tecnicalidade das pedaladas fiscais, de resto uma prática ofensiva ao Orçamento, que de fato derrubou Dilma Rousseff. Ela caiu porque a sua política econômica produziu recessão monstruosa no país. O PIB recuou 3,6% em 2015 e outros 3,3% no ano seguinte.

Nesse solo que se esfacelava, a inapetência parlamentar da presidente —incapaz de sustentar com a poderosa máquina federal um terço de apoio na Câmara dos Deputados— serviu de pá de cal.

A retórica de Lula pode até apontar para o contrário, mas na prática ele empurrou os artífices da patuscada econômica daqueles anos para a periferia de seu terceiro governo. Costura com o centrão uma maioria no Congresso Nacional.

Quem merece reparação pelos erros da gestão Dilma é o trabalhador brasileiro. Se Lula não repetir os erros de sua antecessora, contribuirá fortemente para isso.

Pecados taxados

Folha de S. Paulo

Tributo sobre artigos nocivos é correto, mas é preciso boa regulamentação do IVA

Impostos, em regra, não desfrutam de grande popularidade. Uma exceção parecem ser os incidentes sobre produtos nocivos à saúde, cujo aumento hipotético mereceu o apoio de 94% dos entrevistados em pesquisa Datafolha encomendada pela organização não governamental ACT Promoção da Saúde.

O dado é pertinente porque a reforma tributária em tramitação no Congresso prevê a criação de um imposto seletivo sobre produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, a serem definidos, bem como as alíquotas, em lei posterior.

Tributos do tipo, conhecidos em inglês como "sin taxes" (impostos sobre o pecado), são comuns em outros países e oneram tipicamente bebidas alcoólicas e cigarros, podendo atingir ainda bebidas açucaradas, alimentos ultraprocessados e jogos de azar, entre outros.

Aqui e agora, o federal IPI exerce parcialmente esse papel, com alíquotas mais altas sobre determinados artigos. Estados também podem fazê-lo por meio do ICMS.

Há bons argumentos em favor dessa sobretaxação, dado que álcool, tabaco e outras substâncias podem gerar danos não apenas para quem as consome mas também para a coletividade —na forma de mais gastos para o SUS, por exemplo. Entretanto há limites econômicos e políticos para seu uso.

Conforme a Folha noticiou, parte dos especialistas crê que o imposto seletivo pode se tornar uma fonte importante de arrecadação, capaz de permitir uma alíquota menos indigesta para o futuro imposto sobre valor agregado (IVA), que, com a reforma, seria o principal tributo do país e incidiria sobre quase todos os bens e serviços.

O risco embutido nesse raciocínio é o de exageros tanto na lista de produtos ditos pecaminosos como nas alíquotas a serem aplicadas. Trata-se, afinal, de uma tributação regressiva, que onera sobretudo os mais pobres. Pode-se, ademais, criar estímulo ao contrabando e à falsificação.

Do ponto de vista político, o Datafolha mostra que o apoio à sobretaxação decresce quando são mencionados os produtos a serem atingidos. O aumento de impostos sobre combustíveis fósseis, como gasolina e óleo diesel, é aprovado por apenas 36% dos entrevistados.

É temerário, pois, imaginar desde já um papel arrecadatório mais relevante para o imposto seletivo. O essencial na reforma tributária é a regulamentação do IVA, que precisa ter a menor alíquota e o menor numero de exceções possíveis.

A nova pedalada moral de Lula

O Estado de S. Paulo

Ao distorcer o conteúdo de decisão judicial para reeditar a historieta do golpe, Lula ofende o Congresso e o Judiciário – e alimenta a ideia de que só é democrático o que lhe agrada

O presidente Lula acha que o Brasil deve desculpas e reparações a Dilma Rousseff. Em entrevista durante sua passagem por Angola, referindo-se à decisão do Tribunal Regional da 1.ª Região (TRF-1) de arquivar uma ação de improbidade pelas “pedaladas fiscais”, Lula disse: “A Justiça Federal absolveu a companheira Dilma da acusação da pedalada”. A afirmação do presidente petista é mais uma tentativa de desinformar e confundir os brasileiros. O TRF-1 nem sequer avaliou o mérito da acusação, tampouco desautorizou a sentença do Congresso que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade em função das pedaladas fiscais.

A decisão do TRF-1 foi proferida em ação de improbidade administrativa proposta pelo Ministério Público Federal (MPF) contra Dilma e integrantes de seu governo por valerem-se “dos altos cargos que ocupavam na direção do governo federal para maquiar as estatísticas fiscais com evidente propósito de melhorar a percepção da performance governamental e ocultar uma crise fiscal e econômica iminente, ao tempo em que comprometiam ainda mais a saúde financeira do Estado”. A acusação baseia-se em irregularidades identificadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que depois, por unanimidade, reprovou o governo, determinando que 17 autoridades explicassem as práticas ilegais.

Como se sabe, o pedido de impeachment contra Dilma Rousseff refere-se a esses mesmos fatos, em particular à edição de três decretos de crédito suplementar sem autorização do Congresso e ao atraso nos repasses de recursos do Tesouro a bancos públicos para o pagamento de programas sociais. Autorizada sua abertura pela Câmara, o processo foi julgado pelo Senado, que condenou Dilma Rousseff por crime de responsabilidade.

Em 2022, a ação de improbidade foi arquivada pelo juízo de primeira instância. Ele não contestou a decisão do Congresso, antes reconheceu que a presidente Dilma já havia sido condenada por aqueles mesmos fatos no âmbito do processo de impeachment. Não cabia, portanto, uma dupla responsabilização, agora por meio da Lei de Improbidade Administrativa.

“Houve uma extinção da ação, sem resolução do mérito”, disse ao Estado a advogada Vera Chemim, mestre em Direito Público Administrativo pela Fundação Getulio Vargas. “Não é uma questão de inocentar, e sim de caráter formal e processual.” A decisão do TRF-1 simplesmente rejeitou o recurso do MPF que havia questionado o arquivamento em primeira instância.

Em vez de respeitar os fatos, Lula e o PT querem, no entanto, confundir a população, dando a entender que a Justiça teria declarado agora que as pedaladas fiscais não existiram. No conto petista, a decisão do TRF-1 seria a grande prova do golpe. “Entendo que cabe um projeto de resolução nesse sentido com base na decisão do TRF-1, que deixa claro que o impeachment foi uma grande farsa, que a história das pedaladas foi uma armação, literalmente um golpe”, disse a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, ao jornal Folha de S.Paulo. “O Brasil deve desculpas à presidente Dilma, porque ela foi cassada de forma leviana”, afirmou Lula.

A rigor, essa tentativa de distorção de uma decisão judicial por parte do PT é uma agressão às instituições democráticas. No processo de impeachment de Dilma Rousseff, não houve nenhum golpe. O Congresso aplicou a Constituição e as leis do País. E justamente porque foi uma condenação perfeitamente válida, a Justiça reconheceu agora que não cabia instaurar um novo processo pelos mesmos fatos.

Em vez de acolherem o conteúdo da decisão do TRF-1, Lula e seu partido preferem fabricar desinformação. E essa manobra não consiste meramente na invenção de uma versão irreal dos fatos, o que por si só é muito grave: afinal, Lula está usando um cargo público para distorcer a compreensão por parte da população de uma decisão da Justiça. Com a reedição da historieta do golpe, Lula e o PT desautorizam uma vez mais o exercício de uma atribuição constitucional do Congresso. Alimentam, assim, a equivocada ideia de que só é democrático o que lhes agrada.

Quando os dois estão errados

O Estado de S. Paulo

Governo abusa da edição de medidas provisórias, mas isso não é razão para chantagem de Lira. Requisito constitucional protege o interesse público, não barganhas privadas

O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mandou alguns recados ao governo nos últimos dias. Depois de semanas, submeteu ao plenário da Casa o projeto que cria o novo arcabouço fiscal e a medida provisória (MP) que reajusta o salário mínimo e corrige a tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física, ambos aprovados. Por outro lado, recusou-se a pautar duas medidas provisórias que estavam próximas de vencer e, por isso, devem perder a validade.

As medidas provisórias tratavam de um plano para retomar obras na área da educação básica e de uma proposta para regulamentar mudanças no valerefeição. Segundo o jornal Valor Econômico, Lira tomou a decisão por conta própria, sem consultar a posição das lideranças. Embora a escolha dos projetos a serem pautados seja uma prerrogativa do presidente da Câmara, a postura não combina com o discurso de Lira. Basta lembrar que, na cerimônia de posse na presidência da Câmara em 2021, o deputado defendeu o princípio da coletividade e da colegialidade – “a Câmara do nós”, em oposição à “Câmara do eu”.

O Executivo engoliu as derrotas a seco, a ponto de o líder do governo na Casa, José Guimarães (PT-CE), ter assumido o compromisso de que novas medidas provisórias somente seriam editadas apenas em caso de urgência – ou seja, admitiu que o Palácio do Planalto não tem cumprido os requisitos constitucionais para a edição de MPs. A preferência será pelo envio de projetos de lei, cuja vigência se inicia somente após aprovação do Legislativo e sanção presidencial.

O tema das MPs é amplo, com vários aspectos a serem considerados. Arthur Lira faz bem em tentar limitar o apetite do Palácio do Planalto na edição de medidas provisórias, que, segundo a Constituição, têm um caráter excepcional. Trata-se de ato do Executivo com força de lei, a ser utilizado apenas em caso de relevância e urgência.

Desde 1.º de janeiro, foram publicadas 29 MPs – em média, quase uma por semana. Tal número mostra que o governo atual tem uma compreensão bastante ampla dos seus poderes. No entanto, apenas 4, das 29, foram efetivamente convertidas em lei, enquanto 11 caducaram. Essa baixíssima taxa de conversão mostra o real apoio que o governo tem no Congresso. Não consegue aprovar sequer os temas que, a princípio, seriam suas prioridades, a merecer a edição de uma medida provisória.

A oposição de Arthur Lira às MPs não é motivada, no entanto, pela letra da Constituição. O que parece mais incomodar o deputado é a perda do poder que havia acumulado durante a pandemia de covid-19, quando vigorou o rito extraordinário das medidas provisórias. À época, abriu-se uma exceção para permitir que as MPs fossem apreciadas diretamente em plenário, antes na Câmara e depois no Senado, com alterações feitas a toque de caixa durante a votação – o que dava a Lira um poder rigorosamente desproporcional.

Na tramitação convencional, definida pela Constituição, as MPs passam por comissões mistas antes de serem submetidas ao plenário. Nelas, deputados e senadores se alternam na relatoria das propostas e não é possível pautar, em plenário, mudanças que não tenham sido propostas anteriormente, na fase da comissão.

O que tem ocorrido, na prática, é uma subversão da Constituição: orientados por Lira, os partidos não indicam deputados para as comissões, o que impede sua instalação. Sem as comissões, as MPs não tramitam e acabam por perder validade ou serem aprovadas às vésperas de caducar, com o texto mais facilmente moldado pela Câmara, como convém a Lira.

O governo tem abusado das medidas provisórias – e, verdade seja dita, não é algo restrito a Lula. A solução para os casos de abuso, nos quais se descumprem os requisitos constitucionais de relevância e urgência, não é conferir mais poder a Lira. O caminho institucional é a devolução da medida provisória ao Executivo, prerrogativa que cabe ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). É urgente encontrar uma via de mais equilíbrio nas relações entre Executivo e Legislativo que passe longe da simples chantagem.

Um exemplo de cidadania

O Estado de S. Paulo

No Sistema Nacional de Transplantes, todos os brasileiros são tratados igualmente, sem privilégios ou distinções

O Brasil é um país fraturado por uma brutal desigualdade em múltiplas frentes ligadas fundamentalmente à plena cidadania. Desde o nível de renda ao acesso à educação e alimentação de qualidade, passando por saneamento básico e segurança pública, para onde quer que se olhe, lá está bem marcada a infame divisão informal dos brasileiros entre cidadãos de “primeira” e “segunda” classes.

Em meio a tantas desigualdades, porém, há uma ilha de excelência no setor público onde todos os brasileiros são tratados como devem ser, ou seja, de forma humana e isonômica; e o primado da Constituição segundo o qual “a saúde é direito de todos e dever do Estado” é materializado de forma efetiva: trata-se do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), gerido pelo Ministério da Saúde.

Há alguns dias, o apresentador Fausto Silva, o Faustão, divulgou um vídeo no qual informava que, acometido por insuficiência cardíaca grave, havia entrado na lista única de espera por um transplante de coração. Realizada no domingo passado, a cirurgia foi, segundo o boletim médico, bem-sucedida.

No vídeo, Faustão destacou que, embora estivesse internado em um hospital particular de primeira linha na capital paulista, seu transplante seguiria, como de fato seguiu, o mesmo padrão técnico de qualquer outro realizado em usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso ocorre porque todos os que precisam de um transplante de órgãos no País são inscritos em uma lista de espera no âmbito das Secretarias Estaduais da Saúde que alimenta a lista nacional do SNT, sendo uma fila para cada órgão.

A espera por um transplante não depende, portanto, da situação econômica dos pacientes. Prevalecem, entre outros critérios administrados com muita seriedade pela administração pública, a gravidade do estado de saúde do potencial receptor e a compatibilidade entre este e o órgão do doador. Não há razão para desconfiar da lisura de todo o processo, da captação à cirurgia. Ao contrário, o SNT é motivo de orgulho para toda a sociedade.

“No dia em que o Brasil funcionar como funciona a lista única de transplantes, nós seremos de Primeiro Mundo. Não tem ‘QI’ (quem indica), não tem conta bancária. É uma das coisas mais equânimes que existem”, disse a este jornal o cirurgião-chefe do serviço de transplante de fígado do Hospital de Base de Rio Preto, Renato Ferreira da Silva.

De fato, no que concerne aos transplantes, o Brasil já é um país de Primeiro Mundo – e com resultados muito superiores aos de nações mais desenvolvidas. Existe aqui o maior programa público de transplante de órgãos e tecidos do mundo, um serviço público de altíssima complexidade que é oferecido de forma universal e gratuita por meio do SUS.

Sem dúvida, há pontos a serem aprimorados no SNT, sobretudo nos diagnósticos de morte encefálica e na captação de órgãos País afora – o que demanda investimentos. No entanto, o que mais parece faltar depende, em boa medida, da sociedade: o florescimento no País de uma cultura de doação de órgãos, ainda claudicante.

Cruzada contra o feminicídio

Correio Braziliense

Fenômeno complexo e multifatorial, a violência de gênero é face abominável da mentalidade machista e patriarcal que subsiste em diferentes estratos e segmentos da sociedade brasileira

Na semana passada, os moradores do Distrito Federal testemunharam, pela 25ª vez este ano, uma mulher perder a vida pelas mãos de um homem. O assassinato de Andreia Crispim, 50 anos, evidenciou de maneira dolorosa que a violência contra mulher é uma calamidade nacional. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente, o país registrou um aumento de 6,6% nos casos de feminicídio em 2022, na comparação com o ano anterior. São Paulo concentra o maior de registros, com 195 mortes. Minas Gerais também contabilizou uma maior ocorrência de feminicídios — foram 171 mulheres assassinadas em 2022, contra 155 óbitos no ano anterior, em um incremento de 9,9%.

E esses números referem-se apenas a um tipo específico de crime. O feminicídio é o ato derradeiro de uma escalada de violência contra a mulher. As primeiras agressões podem se manifestar de diversas formas — psicológica, patrimonial, moral, sexual — até atingirem o nível mais perigoso, o dos ataques físicos. Especialistas costumam descrever essa degradação das relações humanas na forma de um ciclo, dividido em quatro fases: encantamento, tensão, violência e arrependimento. No início do relacionamento, o agressor começa com gentilezas. Aos poucos, entretanto, começam a surgir tensões no relacionamento, até descambarem nas agressões físicas. Após a explosão de violência, o agressor é tomado de arrependimento. E recomeça a aproximação com a vítima.

O problema da violência contra a mulher é que, frequentemente, ele se perpetua em forma de espiral. Quando o homem volta a cometer brutalidades, após as fases de arrependimento e reaproximação, os ataques vêm ainda mais violentos. As medidas protetivas, determinadas pela Justiça, buscam interromper a continuidade das agressões. Mas elas têm se mostrado insuficientes para coibir a sanha dos covardes. Andreia Crispim, a vítima do Distrito Federal citada acima, estava formalmente protegida pelo benefício. Mas, na vida real, o ex-companheiro ignorou os avisos da lei. Na quinta-feira, abordou novamente a mulher e deu o aviso final: “Você merecer morrer”.

Fenômeno complexo e multifatorial, a violência de gênero é face abominável da mentalidade machista e patriarcal que subsiste em diferentes estratos e segmentos da sociedade brasileira. Nas últimas duas semanas, vereadoras e deputadas estaduais mineiras têm sofrido ameaças recorrentes por defenderem bandeiras progressistas ou em razão da opção sexual. Além de atacar até as filhas das parlamentares, os autores do crime utilizam termos abomináveis, como “estupro corretivo” para “curá-las” do “homossexualismo feminino”. Ao Estado de Minas, a vereadora de Belo Horizonte Iza Lourença (PSOL) resumiu: “Vivo hoje sob violência psicológica”. Negra, bissexual e mãe de uma menina de 3 anos, a parlamentar de 29 anos é vítima dos extremistas da misoginia. Ameaças de teor semelhante também foram dirigidas a mulheres parlamentares do Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Não se trata, pois, de fenômeno isolado. A violência de gênero exige uma mobilização nacional, que vai muito além de ações do poder público. É preciso que governos municipal, estadual e federal atuem de maneira firme em políticas para combater o machismo, a intolerância e a violência doméstica. Integrantes de assembleias também podem contribuir com uma legislação que complemente o arcabouço já definido pela lei Maria da Penha e pela lei do feminicídio. Por fim, passou da hora de escolas, empresas, associações comunitárias — a sociedade, enfim — darem um basta a tanta violência. O Brasil precisa iniciar urgentemente uma cruzada contra o feminicídio e a violência de gênero. Basta de tanta brutalidade.

 

 

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