sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Vera Magalhães - A Justiça diante de Bolsonaro

O Globo

Se STF não deliberar sobre foro para julgar o ex-presidente, pode abrir o flanco para sua defesa buscar anulações

À medida que se avolumam as investigações contra Jair Bolsonaro em múltiplas frentes, também ganha corpo o debate sobre como se dará o julgamento do ex-presidente em cada uma delas.

Como bem escreveu Paulo Celso Pereira neste espaço na edição de ontem, a torcida acaba dominando o debate e expondo contradições óbvias: quem outrora apontou, com propriedade, abusos da Lava-Jato no julgamento de Lula e se indignou com sua prisão faz contagem regressiva nas redes sociais pela prisão de Bolsonaro.

O risco é que, no afã de que se faça justiça em relação aos muitos desvios do ex-presidente — no enfrentamento à pandemia, nos ataques constantes e deliberados à democracia e, agora se sabe, no desvio de recursos do patrimônio da União para enriquecimento pessoal —, se dê argumento jurídico para que sua defesa anule decisões controversas e político para que seus apoiadores entoem a narrativa da perseguição a uma vítima.

Nos Estados Unidos, Donald Trump, ídolo e modelo de Bolsonaro, segue roteiro semelhante, com múltiplos julgamentos e investigações eclodindo simultaneamente. A diferença, lá, é que a Constituição e as leis ordinárias não o impedem de concorrer a um novo mandato presidencial (nem de eventualmente vencer), mesmo se estiver condenado ou eventualmente preso, até pelas alegações de conspiração no caso da invasão do Capitólio.

Portanto há que louvar a força e a independência da Justiça Eleitoral brasileira, não sem notar certa ironia: parte desse ganho de atribuições foi conquistada no início do processo de desmonte da Lava-Jato, quando alguns julgamentos passaram a ser remetidos pelo STF aos tribunais eleitorais.

Será inevitável que o Supremo seja confrontado, e precise debater em seu pleno, se é a instância de julgamento de Bolsonaro para todos os casos em que ele está implicado? Pela jurisprudência atualmente em vigor, a resposta seria “não”, uma vez que a própria Corte deliberou que, quando um político perde a função que lhe garantia foro especial, suas ações “descem” para instâncias inferiores da Justiça.

A tese de que existe conexão fática e de implicados em todas as investigações em curso é considerada frágil do ponto de vista jurídico para, sem discussão, segurar todos os casos no Supremo, e a maioria deles nas mãos de um só ministro, Alexandre de Moraes.

Só a permanência dos julgamentos no STF garantiria uma via rápida que levasse Bolsonaro à prisão por eventuais crimes por que possa ser condenado. Afinal, também foi o mesmo Supremo que reviu o momento em que se dá a prisão para cumprimento de pena e definiu que ele só se dá depois do trânsito final em julgado, uma vez esgotados todos os muitos recursos possíveis.

Todas essas contradições evidentes, que colocam os 11 integrantes da mais alta Corte do país diante do espelho e os forçam a ser coerentes com decisões recentes que tiveram alto poder de alterar a contingência judicial e política do país, têm de ser sanadas o mais rapidamente possível.

Esse debate envolve algo novo, cuja bula não está de todo descrita na Constituição: como lidar com uma conspiração contra o próprio Estado Democrático de Direito.

Essa percepção de ineditismo e do caráter anômalo das ações perpetradas pelo então presidente da República e por seus apoiadores para dilapidar as instituições republicanas foi o salvo-conduto, até aqui, para que os garantistas fechassem os olhos para a hipertrofia de poderes de Moraes e a duração quase indefinida de um inquérito que nasceu com um objeto, foi ampliado ao longo dos anos, gerou filhotes e não dá sinais de que se encerrará, nem de como.

Tudo isso pode ser arma da defesa de Bolsonaro no futuro. É por isso que urge um debate sério a respeito de procedimentos, foros e gravidade dos atos perpetrados por ele. A missão caberá à presidência de Luís Roberto Barroso à frente da Corte.

 

4 comentários:

  1. LÚCIDA VERA.
    LÚCIDA E PRECAVIDA!

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. ■Esse açodamento para punir acaba resultando em impunidade, porque o criminoso se aproveita de erros dos ritos processuais para cancelar as provas e ficar impune, como sabemos.

    Espero que não cometam no julgamento de Bolsonaro os mesmos erros de rito que cometeram no julgamento de Lula e que Bolsonaro consiga cancelar a punição aos seus crimes se valendo de erros meramente processuais, como fez Lula.

    Se Bolsonaro conseguir fazer isso, ele não deixará de ter cometido os crimes que as provas mostram, mas terá as provas canceladas ao se aproveitar de meros erros de ritos do processo que nada têm a ver com as provas mesmas.

    E ficará impune (só no Brasil e só para os poderosos)!

    ■Mais desagradável vai ser depois termos que ficar ouvindo os bolsonaristas debocharem dizendo :: "Cadê as provas contra Bolsonaro ?". "Nào tem provas contra Bolsonaro! ".

    ResponderExcluir