quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Assis Moreira - Sanções e alternativas ao uso do dólar

Valor Econômico

O governo de Joe Biden fez esta semana uma barganha envolvendo as sanções que os Estados Unidos aplicam contra o Irã desde a revolução islâmica de 1979. O presidente americano autorizou bancos a transferirem, sem medo de retaliação, a soma de US$ 6 bilhões de Teerã bloqueados na Coreia do Sul, numa troca pela liberação de cinco americanos detidos no Irã. O dinheiro, da venda do petróleo iraniano, será enviado para o Banco Central do Qatar. Washington avisou que terá direito de controle sobre como será gasto e quando.

Ao participar da cúpula dos líderes do G77 + China, o maior grupo de países em desenvolvimento, no sábado em Havana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terá todo o espaço para explorar a tese de desdolarização e uso de moeda local, na esteira do crescente desconforto de bom número de países com a maneira como os EUA usam o dólar como arma e impõem sanções econômicas por todos os lados.

Setores do governo brasileiro consideram que o número expressivo de países querendo entrar no Brics, o grupo dos grandes emergentes, ilustra o sentimento de que o uso do dólar como arma passou do ponto. Celso Amorim, o assessor especial do presidente Lula, mencionou recentemente haver muita reação com o sistema americano baseado no dólar, e apontou as sanções como o principal fator por trás disso.

Para ele, o absurdo das sanções americanas é que atingem também o interesse de outros países. Um exemplo dado em círculos do governo é que Cuba tem dívida atrasada de US$ 520 milhões, e a Venezuela, de US$ 1,3 bilhão com o Brasil. Mas que as sanções americanas dificultariam inclusive a renegociação dessas dívidas. Não se pode ignorar, em todo o caso, que Cuba sofre sanção americana há 60 anos e a Venezuela há 17 anos.

Desde a Segunda Guerra Mundial o dólar americano tem sido usado amplamente nas transações econômicas internacionais, com evidentes benefícios para os EUA, incluindo custos de empréstimos mais baratos. Por meio de sanções econômicas que impedem ou restringem acesso ao sistema financeiro dos EUA, os americanos alavancam o papel do dólar para promover objetivos de política externa.

A lista de sanções é longa. Inclui governos estrangeiros identificados por Washington como apoiando terrorismo e/ou proliferação de armas nucleares (Irã, Cuba, Coreia do Norte, Síria); violações de direitos humanos e democracia, corrupção (Belarus, Burundi, República Centro-Africana, Cuba, Congo, Irã, Líbia, Nicarágua, Coreia do Norte, Rússia, Somália, Sudão do Sul, Síria, Venezuela, Iêmen, Zimbábue e a organização Hezbollah); e aqueles acusados de ameaçar a estabilidade regional (Irã, Coreia do Norte, Rússia e Síria). Não poupa nem a organização russa Night Wolfes, um clube de motocicletas pró-Vladimir Putin. O homem mais rico da Rússia, Andrey Menichenko, entrou na lista de sanções no ano passado e isso não impediu sua fortuna dobrar para US$ 25 bilhões graças à alta do preço de fertilizantes provocada pela guerra.

Sanções aplicadas pelos EUA também atingem entidades ou indivíduos para cumprir normas do Conselho de Segurança da ONU (República Centro-Africana, Congo, Eritreia, Guiné-Bissau, Haiti, Iraque, Líbano, Líbia, Mali, Coreia do Norte, Somália, Sudão do Sul, Iêmen, além de grupos Estado Islâmico e Al-Qaeda).

A mais recente ação americana abalou a confiança de bom número de países no sistema financeiro, indiferente da posição em relação à guerra na Ucrânia. Em fevereiro de 2022, logo após a Rússia atacar a Ucrânia, os EUA, em coordenação com a União Europeia, Reino Unido, Canadá e Japão, bloquearam o acesso do Banco Central da Rússia a suas reservas internacionais de US$ 300 bilhões. Só não foram congelados os fundos depositados em bancos na China e o ouro guardado nos cofres do BC russo. Mas em dezembro de 2022, o Congresso americano aprovou legislação para limitar o uso do ouro detido pelo Banco Central russo, estabelecendo sanções para qualquer estrangeiro que participe de transação envolvendo o metal em poder de Moscou.

Uma nota do Congressional Research Service (CRS), que prepara análises para congressistas americanos, alerta que esse congelamento dos ativos do Banco Central da Rússia, sobretudo, pode fazer países reconsiderarem a utilização de dólares. Ou seja, pode acelerar busca de alternativas por vários países, particularmente a China, para reduzir sua dependência em relação ao dólar americano nas transações internacionais e à infraestrutura de pagamentos internacionais. E nota que, se esforços de desdolarização ganharem força, os custos de empréstimos americanos poderão aumentar.

Diferentes relatórios do CRS mencionam que tanto congressistas americanos como funcionários do Tesouro nos governos de Barack Obama, Donald Trump e Joe Biden têm manifestado temor de que o uso extensivo de sanções americanas poderia efetivamente ameaçar o papel central do dólar e do sistema financeiro dos EUA. Não é surpresa que vários governos visados por sanções e seus parceiros econômicos crescentemente explorem ou criem maneiras de reduzir sua dependência em relação ao dólar.

Um pequeno exemplo: a fatia das exportações russas para Brasil, Índia, China e África do Sul faturadas em dólar caiu de 85% no segundo semestre de 2018 para 36% no quarto trimestre de 2022. O comércio entre a China e a Rússia usa crescentemente as moedas locais, sobretudo o renminbi.

Movimento de desdolarização pode vir também com criação de moedas digitais por vários bancos centrais. A China, em meio à rivalidade com os EUA, tem um projeto de moeda digital que envolve o desenvolvimento de um sistema de pagamentos nacional para ser usado globalmente, e com isso avançar na criação de alternativas ao poderio americano.

Para o Brasil, há um interesse político em discutir com parceiros para buscar alternativas, sabendo que é projeto demorado. Basta ver que mesmo com a vizinha Argentina o uso de moeda local no comércio bilateral é bastante modesto. É verdade que os argentinos têm na cabeça o dólar como reserva de valor. Mas com outros países essa dificuldade poderia não ser tanta, na avaliação de setores em Brasília.

O G77 + China, grupo na verdade com 134 países, certamente manifestará mais uma vez suas críticas ao que muitos consideram sanções motivadas geopoliticamente. Nesse cenário, o movimento por desdolarização é algo incipiente e vai demorar - mas continuará no radar.

 

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