Folha de S. Paulo
Lula e Silvio Almeida negam direitos
humanos por motivos geopolíticos e ideológicos
No 16 de novembro de 1998, o então
ex-ditador Pinochet foi preso em Londres por solicitação do juiz Baltasar
Garzón. A prisão no Reino Unido de um chileno indiciado por um espanhol
representou uma aplicação inédita do princípio da universalidade dos direitos
humanos. Meses antes, o Estatuto de Roma estabelecera o Tribunal Penal
Internacional (TPI), que entrou em vigor em 2002. Nos 50 anos do golpe de
Pinochet, quando Lula investiu contra o TPI, o ministro dos Direitos Humanos,
Silvio Almeida, alinhou-se ao presidente por meio de um silêncio cúmplice.
Lula e Almeida são negacionistas dos direitos humanos, mas o primeiro os despreza por motivos geopolíticos enquanto o segundo os renega por motivos ideológicos. As razões do presidente, embora abjetas, inscrevem-se na esfera superficial do oportunismo. Já as razões do ministro têm raízes profundas e, por isso, ferem o núcleo da cultura dos direitos humanos.
Meses antes de assumir o ministério, Almeida publicou um artigo esclarecedor. Consagrado à invasão
da Ucrânia, o texto conseguiu a proeza de, ao longo de 613 palavras, evitar a
responsabilização de Putin. Nele, invoca-se a "complexidade do
evento" para, afastando "reflexões maniqueístas", atribuir o
"conflito" ao "expansionismo capitalista" e à "lógica
destrutiva da mercadoria" (leia-se: EUA). Culpa coletiva, difusa,
espalhada: "todos os governos estão cientes do horror que estão
promovendo".
O substrato ideológico do artigo
encontra-se, contudo, em outro lugar: uma citação de 1950 do martinicano Aimé
Cesaire, que ainda militava no Partido Comunista Francês e admirava Stalin.
Segundo Cesaire, a indignação diante do nazismo, fonte da Declaração Universal
de 1948, não decorria do "crime contra o homem, mas contra o homem
branco" pois inexistiria diferença fundamental entre a máquina de
extermínio hitlerista e os "processos colonialistas" europeus.
Cesaire escreveu durante 66 anos. Almeida
escolheu o voo mais baixo do martinicano. A passagem pertence à extensa
tradição do antissemitismo soft contemporâneo que, no lugar da negação factual
do Holocausto, opera pela sua relativização. Mas a cuidadosa seleção faz
sentido: o objetivo do ministro é exibir a cultura dos direitos humanos como
pura hipocrisia de brancos ocidentais.
A narrativa identitária de Cesaire e
Almeida tem mil e uma utilidades, inclusive a proteção de Stalin, no caso do
primeiro, e a de Putin, no do segundo. Sobretudo, porém, trata-se de contestar
a natureza universal dos direitos humanos para sustentar uma doutrina assentada
na cisão "brancos/não-brancos". Daí, a hostilidade tanto à Declaração
Universal quanto ao TPI, seu principal fruto.
"Todos os seres humanos podem invocar
os direitos e liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção de
raça, de cor, de sexo, de língua, de religião...". O artigo 2º da Declaração
Universal, aprovada antes da queda dos impérios coloniais, indica o alcance da
reação civilizatória ao Holocausto.
O Estatuto de Roma nasceu do repúdio ao
genocídio de Ruanda (1994) e ao massacre de Srebrenica (1995), eventos
incompreensíveis nos termos da doutrina identitária. A "purificação
racial" foi a mola propulsora de ambos. Na antiga Iugoslávia, militares
sérvios eliminaram milhares de civis muçulmanos bósnios. No país africano, a
ditadura hutu comandou o extermínio de mais de meio milhão de tutsis.
"Brancos contra brancos" e "negros contra negros"? O
exterminismo racista não precisa de diferenças de cor de pele.
O crime de Putin que provocou a ordem de prisão do TPI é do mesmo tipo. A deportação de dezenas de milhares de crianças ucranianas para a Rússia destina-se a russificá-las, um passo no projeto de eliminar a Ucrânia como nação. O negacionista Almeida não vê escândalo nisso: "brancos contra brancos", tudo bem.
Maravilha! Relativismo do Holocausto é Barbacena.
ResponderExcluirMAM
Perfeito
ResponderExcluir■Ter articulistas críticos como Demétrio Magnóli, Malu Gaspar, Merval Pereira e alguns outros corajosos e coerentes, que escrutinam seja quem for o poder sem escolher o nome e sim o que fazem, redime bastante a fila enorme de jornalistas condescedentes com Bolsonaro ou com Lula que "militam" em nossa imprensa, desde os condescendentes mais escancarados aos mais disfarçados.
ResponderExcluirA mim envergonha ter Reinaldo Tavares, Rodrigo Constantino, Milly Lacombe, Guilherme Fiúza, Leonardo Sacamoto ou Augusto Nunes na nossa imprensa ; por outro lado, tenho enorme orgulho de Demétrio Magnóli, Malu Gaspar e Merval Pereira.
▪Um fã de Bosonaro, em parte vê o contrário de mim e me corrige dizendo que estou errado quando sinto vergonha por Augusto Nunes, Guilherme Fiúza e Rodrigo Constantino, de quem eles sentem orgulho, mas quanto a Nunes, Sakamoto e Lacombe eles concordam comigo sobre sentir vergonha ;
Um fã de Lula, em parte vê o contrário de mim e me corrige dizendo que estou errado quando sinto vergonha por Tavares, Sakamoto e Lacombe, de quem eles sentem orgulho, mas quanto a Nunes, Fiúza e Constantino eles concordam comigo quanto a sentir vergonha.
Dos jornalistas de que me orgulho, Demétrio, Merval e Malu, os dois polos populistas têm alergia e os ironizam e debocham juntos!
Nossas diferenças são por visão de mundo e dos critérios que usamos:: os meus, um democrata à vera, completamente diferentes dos critérios dos outros dois grupos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirCorrigindo:
ExcluirNo 3° parágrafo, onde se lê "Nunes", leia-se "Tavares".
Lula disse um absurdo!
ResponderExcluirMagnoli inventa e distorce. Poderia ser um bom ficcionista... Como analista, é parcial e mentiroso, pois cria sua própria realidade.
ResponderExcluir