sábado, 16 de setembro de 2023

Demétrio Magnóli - Negacionista silencioso

Folha de S. Paulo

Lula e Silvio Almeida negam direitos humanos por motivos geopolíticos e ideológicos

No 16 de novembro de 1998, o então ex-ditador Pinochet foi preso em Londres por solicitação do juiz Baltasar Garzón. A prisão no Reino Unido de um chileno indiciado por um espanhol representou uma aplicação inédita do princípio da universalidade dos direitos humanos. Meses antes, o Estatuto de Roma estabelecera o Tribunal Penal Internacional (TPI), que entrou em vigor em 2002. Nos 50 anos do golpe de Pinochet, quando Lula investiu contra o TPI, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, alinhou-se ao presidente por meio de um silêncio cúmplice.

Lula e Almeida são negacionistas dos direitos humanos, mas o primeiro os despreza por motivos geopolíticos enquanto o segundo os renega por motivos ideológicos. As razões do presidente, embora abjetas, inscrevem-se na esfera superficial do oportunismo. Já as razões do ministro têm raízes profundas e, por isso, ferem o núcleo da cultura dos direitos humanos.

Meses antes de assumir o ministério, Almeida publicou um artigo esclarecedor. Consagrado à invasão da Ucrânia, o texto conseguiu a proeza de, ao longo de 613 palavras, evitar a responsabilização de Putin. Nele, invoca-se a "complexidade do evento" para, afastando "reflexões maniqueístas", atribuir o "conflito" ao "expansionismo capitalista" e à "lógica destrutiva da mercadoria" (leia-se: EUA). Culpa coletiva, difusa, espalhada: "todos os governos estão cientes do horror que estão promovendo".

O substrato ideológico do artigo encontra-se, contudo, em outro lugar: uma citação de 1950 do martinicano Aimé Cesaire, que ainda militava no Partido Comunista Francês e admirava Stalin. Segundo Cesaire, a indignação diante do nazismo, fonte da Declaração Universal de 1948, não decorria do "crime contra o homem, mas contra o homem branco" pois inexistiria diferença fundamental entre a máquina de extermínio hitlerista e os "processos colonialistas" europeus.

Cesaire escreveu durante 66 anos. Almeida escolheu o voo mais baixo do martinicano. A passagem pertence à extensa tradição do antissemitismo soft contemporâneo que, no lugar da negação factual do Holocausto, opera pela sua relativização. Mas a cuidadosa seleção faz sentido: o objetivo do ministro é exibir a cultura dos direitos humanos como pura hipocrisia de brancos ocidentais.

A narrativa identitária de Cesaire e Almeida tem mil e uma utilidades, inclusive a proteção de Stalin, no caso do primeiro, e a de Putin, no do segundo. Sobretudo, porém, trata-se de contestar a natureza universal dos direitos humanos para sustentar uma doutrina assentada na cisão "brancos/não-brancos". Daí, a hostilidade tanto à Declaração Universal quanto ao TPI, seu principal fruto.

"Todos os seres humanos podem invocar os direitos e liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião...". O artigo 2º da Declaração Universal, aprovada antes da queda dos impérios coloniais, indica o alcance da reação civilizatória ao Holocausto.

O Estatuto de Roma nasceu do repúdio ao genocídio de Ruanda (1994) e ao massacre de Srebrenica (1995), eventos incompreensíveis nos termos da doutrina identitária. A "purificação racial" foi a mola propulsora de ambos. Na antiga Iugoslávia, militares sérvios eliminaram milhares de civis muçulmanos bósnios. No país africano, a ditadura hutu comandou o extermínio de mais de meio milhão de tutsis. "Brancos contra brancos" e "negros contra negros"? O exterminismo racista não precisa de diferenças de cor de pele.

O crime de Putin que provocou a ordem de prisão do TPI é do mesmo tipo. A deportação de dezenas de milhares de crianças ucranianas para a Rússia destina-se a russificá-las, um passo no projeto de eliminar a Ucrânia como nação. O negacionista Almeida não vê escândalo nisso: "brancos contra brancos", tudo bem.

7 comentários:

  1. Maravilha! Relativismo do Holocausto é Barbacena.

    MAM

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  2. ■Ter articulistas críticos como Demétrio Magnóli, Malu Gaspar, Merval Pereira e alguns outros corajosos e coerentes, que escrutinam seja quem for o poder sem escolher o nome e sim o que fazem, redime bastante a fila enorme de jornalistas condescedentes com Bolsonaro ou com Lula que "militam" em nossa imprensa, desde os condescendentes mais escancarados aos mais disfarçados.

    A mim envergonha ter Reinaldo Tavares, Rodrigo Constantino, Milly Lacombe, Guilherme Fiúza, Leonardo Sacamoto ou Augusto Nunes na nossa imprensa ; por outro lado, tenho enorme orgulho de Demétrio Magnóli, Malu Gaspar e Merval Pereira.

    ▪Um fã de Bosonaro, em parte vê o contrário de mim e me corrige dizendo que estou errado quando sinto vergonha por Augusto Nunes, Guilherme Fiúza e Rodrigo Constantino, de quem eles sentem orgulho, mas quanto a Nunes, Sakamoto e Lacombe eles concordam comigo sobre sentir vergonha ;

    Um fã de Lula, em parte vê o contrário de mim e me corrige dizendo que estou errado quando sinto vergonha por Tavares, Sakamoto e Lacombe, de quem eles sentem orgulho, mas quanto a Nunes, Fiúza e Constantino eles concordam comigo quanto a sentir vergonha.

    Dos jornalistas de que me orgulho, Demétrio, Merval e Malu, os dois polos populistas têm alergia e os ironizam e debocham juntos!

    Nossas diferenças são por visão de mundo e dos critérios que usamos:: os meus, um democrata à vera, completamente diferentes dos critérios dos outros dois grupos.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Corrigindo:
      No 3° parágrafo, onde se lê "Nunes", leia-se "Tavares".

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  3. Magnoli inventa e distorce. Poderia ser um bom ficcionista... Como analista, é parcial e mentiroso, pois cria sua própria realidade.

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