Folha de S. Paulo
Ao celebrar avanço de juízes sobre pautas do
Legislativo, progressistas sacrificam futuro
O longo voto de Rosa Weber pela
descriminalização do aborto apresenta-se, quase inteiramente, como um discurso
parlamentar. A agenda definida pela magistrada para o Supremo –drogas, marco
temporal, aborto– forma uma pauta de deliberações apropriada ao Poder
Legislativo. Por aqui, o STF produz legislação enquanto o Congresso dedica-se a
distribuir verbas de emendas a clientelas eleitorais e a indicar ministros ou
diretores de estatais.
A alegação dos juízes supremos de que apenas interpretam a Constituição não resiste nem mesmo a um escrutínio superficial. Interpretar a Constituição é derrubar o que não pode ser feito; legislar é decidir regras positivas sobre o que deve ser feito. Weber determinou o período de aborto descriminalizado (12 semanas), os magistrados procuram consenso interno sobre o peso exato da maconha de uso pessoal, Fachin elabora regras específicas para atribuição de terras aos indígenas.
O STF embarcou no veleiro do
neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que, enfraquecendo a separação dos
Poderes, atribui aos magistrados a missão de reformar a sociedade a partir de
uma interpretação extensiva dos princípios constitucionais. O posto de
timoneiro é ocupado por Barroso, um expoente da doutrina. Na equipe, Weber
funciona como navegadora.
O neoconstitucionalismo equivale a uma
declaração de guerra dos juízes contra Parlamentos conservadores ou
reacionários que resistem à expansão de direitos sociais. Na sua fúria
legiferante, o STF enxerga-se –e é enxergado– como representação do estrato
mais progressista da sociedade. O problema é que, como os juízes não foram
eleitos, sua campanha de reforma social tende a gerar consequências
contraproducentes.
As regras de origem judicial são leis fracas,
sujeitas a bruscos retrocessos. Na Itália, o aborto é um direito forte porque
foi decidido pelo Parlamento e confirmado por plebiscito popular. Nos EUA, foi
um direito fraco, estabelecido pela Suprema Corte em 1973 e revogado pelo mesmo
tribunal, agora com maioria conservadora, ano passado. Ao celebrar o avanço dos
juízes sobre prerrogativas parlamentares, os progressistas sacrificam o futuro
no altar do presente.
Ruth Bader Ginsburg, icônica ex-magistrada
progressista americana, identificou o equívoco. O crescimento explosivo do
Movimento Pró-Vida, explicou, foi uma reação política ao voto da Suprema Corte
de 1973. Concluiu daí que o caminho certo exigiria a articulação da maioria
social para consagrar o direito ao aborto em legislação emanada do Congresso.
Na prática, os progressistas que confiam suas pautas a juízes reformadores
estão renunciando ao dever de persuadir os cidadãos.
No Brasil, os partidos de esquerda insistem
nesse tipo de abdicação: Lula e Dilma recusaram-se a defender em campanha
eleitoral o direito ao aborto ou a descriminalização da maconha. Na raiz do
silêncio encontra-se a tese de que a maioria da sociedade é atavicamente
conservadora –e, que, portanto, precisaria ser resgatada do inferno de suas
próprias convicções pela mão providencial dos juízes.
Sondagens de opinião indicam maiorias
contrárias à descriminalização do aborto e do uso recreativo de maconha. O
Congresso espelha, de certo modo, essas inclinações gerais. Contudo, ideias
arraigadas sobre tais temas podem mudar –com a condição de que as lideranças
políticas progressistas tenham a coragem de reorganizar os termos do debate
público. Impera, porém, o medo, que se traduz pela transferência da
responsabilidade ao STF.
Quem ganha são os conservadores e,
especialmente, os reacionários. Nos EUA, legislaturas estaduais engajam-se na
criminalização irrestrita do aborto. Aqui, tenta-se reverter o direito à união
homoafetiva. Nas eleições, ressoará o discurso do voto contra o "governo
dos juízes". Um Congresso de 11 togados não reinventará o Brasil.
Perfeito
ResponderExcluirSim. MAM
ResponderExcluirO Supremo é mais confiável que o congresso,deixa como está.
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