O Globo
Somos simultaneamente ameaçados pela
emergência climática, pela precariedade e até pela inutilidade do trabalho
Merece aplausos a iniciativa de Lula e
Biden por uma ampla coalizão pela dignidade do trabalho. Por coincidência, na
semana passada tratei do tema, escrevendo sobre os entregadores por
aplicativos. Ao mesmo tempo que aplaudo, confesso que são muitas as
dificuldades a vencer. A precariedade do trabalho não nasceu do nada, mas de um
processo econômico e também, em grande medida, da própria revolução digital.
A importante iniciativa de Lula e Biden
contém um cálculo político saudável: como evitar que massas de trabalhadores
informais caiam nos braços da direita e se afastem das posições dos
trabalhadores tradicionais, entre os quais a solidariedade é um valor político
e humano.
De modo geral, o trabalhador informal se sente um lutador solitário, um empreendedor. É difícil imaginá-lo contido em organizações sindicais, muitas delas surgidas no contexto do disciplinado trabalho fabril. Mas, por mais que se veja apenas como indivíduo isolado, certamente algumas inquietações surgirão em seu caminho. Uma delas é a expectativa de proteção na velhice, de uma aposentadoria decente.
Num livro em que define a esquerda, Norberto
Bobbio afirma que uma de suas características é precisamente a defesa dessa
proteção na velhice. De lá para cá, entretanto, creio que a defesa da
aposentadoria se tornou um idioma quase universal entre as correntes políticas.
Outro aspecto importante na ideia de
regulamentar o trabalho informal é a existência de um maciço exército
industrial de reserva. Vão sendo abertas brechas na regulamentação,
precisamente por causa, de um lado, da necessidade de renda, de outro, da sede
de lucro.
A grande dificuldade, entretanto, já está
contida, de alguma forma, na declaração dos dois países. Num momento em que se
combate o trabalho precário, a inteligência
artificial (IA) vem que vem, brava na sua tendência de tornar o
trabalho supérfluo.
Digo isso porque, assim como na era digital,
nosso campo de comunicações sente fortemente o impacto das mudanças. Com a
chegada da IA, a situação não é diferente: ela faz o trabalho de redatores,
tradutores, transforma textos em vídeos, desenha ilustrações, planeja um novo
site em questão de minutos.
Na verdade, segundo alguns autores, a IA
poderá não só roubar os empregos de homens comuns, como os dos próprios Lula e
Biden. O pensador israelense Yuval Harari tem enfatizado a possibilidade de a
IA assumir o controle de tudo o que seria potencialmente muito perigoso.
Todas essas nuvens no horizonte não podem
deter a esperança. A ideia de dignidade do trabalho, exposta pelos dois grandes
países da América, envolve também o combate à discriminação contra
trabalhadores e trabalhadoras LGTBQIA+ e minorias étnicas.
O que pode fundamentar a esperança é a
compreensão de que esse movimento precisa acontecer numa transição energética e
econômica para fazer frente às mudanças climáticas. É uma tarefa gigantesca,
que pode resgatar a dignidade do trabalho no contexto de uma economia com milhares
de empregos verdes.
Somos simultaneamente ameaçados pela
emergência climática, pela precariedade e até pela inutilidade do trabalho. A
solução para esse conjunto de ameaças não é fácil, nem pode ser contida num
simples manifesto. Mas a direção está dada. Coincidentemente, num outro artigo
que publiquei na mesma semana, enfatizava a importância das mudanças climáticas
e da transição econômica como pauta inescapável.
Assim como lembrei no artigo, pautas são
subjetivas. Não há nenhuma possibilidade de imposição. Mas já era mais do que
hora de o Brasil virar a chave, assumir sua riqueza natural e explorá-la de
forma sustentável e humana.
Creio que vocalizava nos artigos uma
preocupação que também está contida no documento dos dois países. Eles suscitam
a esperança, e eu falava sobre a possibilidade de termos alguma coisa a que
possamos chamar de futuro. Respeitadas todas as divergências, aí está uma
concordância essencial.
Verdade.
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