O Globo
Em 132 anos, o STF teve 171 ministros.
Apenas três eram homens negros e três mulheres brancas
Duas décadas atrás, na esteira da Conferência Mundial contra a Discriminação Racial, em Durban (África do Sul), um conjunto de organizações da sociedade civil, sob protagonismo do movimento de mulheres negras, pôs na rua a campanha “Onde você guarda o seu racismo”. Até o lançamento, em 2004, a iniciativa colheu, em espaços públicos do Rio de Janeiro, três centenas de depoimentos, transformados em anúncios de TV, spots para rádios, outdoors, cartazes. A enquete tinha a intenção de tirar o véu da democracia racial e provocar brasileiros e brasileiras sobre o preconceito que levavam. Afinal, só guarda quem tem.
Hoje, a pergunta que cabe é outra: “Quando
você libera o seu racismo?”. E já respondo. O racismo explode no momento em que
organizações sociais, celebridades e formadores de opinião ousam apresentar uma
campanha pela indicação de uma mulher negra para a vaga do Supremo Tribunal
Federal em substituição à ministra e presidente da corte, Rosa Weber,
que se aposenta mês que vem. Em 132 anos, o STF teve
171 ministros. Apenas três eram homens negros (Pedro Lessa, Hermenegildo de
Barros e Joaquim
Barbosa) e três mulheres brancas (Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa
Weber).
O ativismo por identidade racial, bandeira
histórica do movimento negro, alcançou as pesquisas do IBGE. Tanto assim que,
no Censo Demográfico 2010, pela primeira vez, os negros (soma de pretos e
pardos) tornaram-se maioria na população brasileira. Os brancos, que beiravam
dois terços dos habitantes em meados do século passado, chegaram a 42,8% no ano
passado, informou o órgão oficial de estatísticas em julho. Em 2022, 10,6% se
declaravam pretos; 45,3%, pardos. Mulheres também somam mais da metade da população.
Nada mais natural que negros e mulheres, as
maiorias minorizadas por um poder masculino, branco e hétero, reivindiquem
democraticamente presença nos espaços de poder. Assim, crescem e se fortalecem
as candidaturas diversas para cargos do Executivo e do Legislativo;
multiplicam-se os programas em empresas e na produção cultural. Igualmente,
ganha tração o esforço por representatividade no Judiciário, que tanta
desigualdade produz ou confirma. Diversidade é riqueza, inovação, justiça.
Luiz Inácio Lula da Silva, em todas as
pesquisas da disputa pelo terceiro mandato, tinha a preferência das ditas
minorias. Foram as mulheres, os negros, os pobres que pavimentaram o caminho do
presidente ao Planalto. Também eles, com indígenas, pessoas com deficiência e
LGBTQIA+, subiram a rampa em cerimônia tão simbólica quanto comovente no
primeiro dia de 2023.
Desde o início do governo, é constante a
cobrança por diversidade nas escolhas de Lula. A primeira-dama, Janja da Silva,
costuma manifestar publicamente satisfação pela nomeação de mulheres. Na
origem, eram 11 em 37 pastas, recorde que ultrapassou as dez ministras do
primeiro governo de Dilma Rousseff (2011-2014). Passados oito meses, restam
nove em 38, porque o presidente cedeu à pressão de cartolas do Centrão e limou
Daniela Carneiro do Turismo e Ana Moser do Esporte. Medalhista olímpica, com
duas décadas de ativismo em programas de inclusão pelo esporte, a ex-ministra
era a legítima encarnação do que significa representatividade feminina em
espaços de poder.
O presidente entregou um tanto de
diversidade nos gabinetes da Esplanada. Indicou Daniela Teixeira, uma mulher
branca, para o STJ,
e Edilene Lobo, negra, como substituta no TSE. Escolheu Marcelise Azevedo,
negra, para o Conselho de Ética Pública da Presidência e Cristina Nascimento de
Melo, branca, como desembargadora no TRF 3ª Região. São nomeações bem-vindas,
mas não suprem a lacuna que Lula produzirá se apresentar um homem para o lugar
de Rosa Weber, tal como já fez ao pôr Cristiano
Zanin em substituição a Ricardo Lewandowski. No colegiado de
11, restaria uma só ministra, Cármen Lúcia.
Ao fim dos trabalhos do governo de
transição, em 2022, foi Lula quem declarou que “um governo tem que ser
cobrado”. E pediu isso. Organizações sociais que reivindicam a indicação de uma
jurista negra para o STF — como Coalizão Negra por Direitos, IDPN, Mulheres
Negras Decidem, Instituto Marielle Franco, Instituto Peregum, Nossas — estão
fazendo em declarações, textos, outdoor e vídeo exatamente o que Lula sugeriu.
Dentro e fora do país, cobram publicamente do presidente, tal como fazem, quase
sempre em privado, líderes de União Brasil, PP, Republicanos, representantes do
empresariado, figurões do Judiciário.
Na ágora moderna, a platitude sobre uns
contrasta com os ataques àqueles, inclusive à esquerda, que defendem a primeira
mulher negra no STF. Democracia pressupõe troca de ideias e disputas, vitórias
e derrotas. Mas, toda vez que pessoas negras se levantam por direitos, emerge a
ira dos que não abrem mão de ocupar o topo e nem sequer se enxergam como
identitários. O racismo, de nós, quer obediência. Em silêncio.
Mais um artigo canalha,apenas. MAM
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