Revista CartaCapital
A eterna repulsa dos endinheirados aos pobres
e ao Estado
Nos idos de 1983, o senador Roberto Campos,
avô do nosso Campos Neto,
prolatou suas sabedorias na Ordem dos Economistas do Estado de São Paulo. Entre
outras pérolas do conhecimento, afirmou que o Brasil “é uma sociedade
criptossocialista, apesar do sistema privado teoricamente praticado no País”.
Então parlamentar mato-grossense, o vovô Campos fundava sua escatológica
denúncia na constatação de que o governo, no Brasil, era responsável por em
torno de 45% do dispêndio total e 60% dos gastos em investimento.
Se aceitarmos os critérios do ilustre senador, vamos chegar à conclusão de que não só o Brasil, como a totalidade dos países do Ocidente, passou-se para o outro lado, sem se dar conta do que estava ocorrendo. Éramos todos socialistas e não sabíamos.
Senão vejamos. Apesar das políticas
soi-disant liberais e antiestatizantes praticadas pela maioria dos
governos ocidentais, a participação dos gastos públicos no dispêndio agregado
cresceu consideravelmente na década de 70, superando as marcas, já elevadas,
registradas nos anos 50 e 60. Na Alemanha Ocidental da Economia Social de
Mercado, a participação dos gastos públicos nos gastos totais foi, em
média, de 44% no período que vai de 1974 a 1982. Na Grã-Bretanha, esta cifra
atingiu 44,5%, na França 41,6%, na Itália 43,1%, nos Estados Unidos 35,1% e no
Canadá 39,40%. Os dados mencionados acima são de fácil acesso. Basta compulsar
com competência os relatórios da
OCDE. O senador Campos não poderia, a qualquer título, justificar a
omissão dessas informações numa palestra pública, sob pena de estar destilando
pura “ideologia” e armando jogo de palavras.
Estamos curiosos para saber qual seria a
reação dos economistas da Faria Lima diante dessa burla escandalosa e
grosseira dos cânones de procedimento científico. Os sábios da Crematística vêm
reclamando seguidamente a adoção de posturas mais “científicas” e menos
“ideológicas” no debate sobre a política econômica. Nada haveria de reprovável
nisso, não fosse a flagrante contradição entre as palavras e as atitudes, entre
o gesto e a intenção. Mas deixemos nossos pequenos sabichões entregues às suas
grandes contradições. O grande Campos era coerente em suas omissões, porque persistente
em seus propósitos. Vendia suas idéias, a bon marché, neste país onde são
precárias as defesas do consumidor. Declarar guerra à intervenção do Estado na
economia é uma forma cômoda de evitar uma análise mais circunstanciada das
seguidas crises estruturais que atravessam as economias contemporâneas. Só
o caos ideológico em que mergulhou o pensamento conservador pode explicar a
identificação entre intervenção estatal e estatização. Ou entre estatização e
planejamento.
Os anos da ditadura brasileira são o exemplo
acabado de como a estatização nasce, exatamente, da falta de planejamento. A
intervenção do Estado foi desordenada, casuística e, por isso mesmo, incontrolável.
Esse “padrão” absurdo de interferência estatal na economia banqueteou-se no
rega-bofes autoritário do regime, sem que o liberalismo do senador Campos se
tenha manifestado sequer através da eructação. A ignorância cevada no
obscurantismo e na literatura de segunda classe incentivou a ideia de que há
uma oposição irredutível entre planejamento e democracia. Qualquer cidadão
medianamente informado – e o senador Roberto Campos está acima desta categoria
– sabe que um dos debates mais importantes deste século tratou do problema de
como submeter a inevitável intervenção do Estado ao controle democrático. Estão
aí as contribuições de Karl Mannheim, Schumpeter, Keynes e, mais recentemente,
de Norberto Bobbio, Claus Offe, Herbert Marcuse e outros menos votados. Só
figuras antediluvianas como Hayek e Milton Friedman acreditam nas funções
alocativas do “livre-mercado”.
Essa metafísica do mercado se torna ainda
mais ridícula quando confrontada com uma situação de crise estrutural, em que
os preços sinalizam na direção contrária àquela desejável para a reconstrução
da economia. Basta olhar o que está acontecendo, hoje, no Brasil e no mundo.
Eugênio Gudin passou boa parte de sua vida
pregando contra a irracionalidade dos nacionalistas, ou comuno-nacionalistas, que
pretendiam impor restrições ao capital estrangeiro ou que advogavam medidas
intervencionistas para promover o desenvolvimento do País. O liberalismo à
brasileira sempre combinou a rejeição (de todos os liberais) às intromissões da
política na economia com uma profunda e dissimulada desconfiança na capacidade
local de alcançar por conta própria as conquistas da sociedade industrial e
seus padrões modernos de convivência.
Também neste capítulo, a atualidade de Gudin
é notável. É a recorrência do tema da abertura comercial, do estímulo à entrada
do capital estrangeiro, das ineficiências da indústria nacional que deve ser
eliminada através da maior exposição à concorrência externa.
Agora, outra vez, a vulgata do pensamento
dominante proclama a queda das fronteiras, a internacionalização dos mercados,
os formidáveis movimentos de capitais. Isto, como o demonstra a obra de Gudin,
não tem nada de novo. Vem de longa data a atitude basbaque da fração
majoritária das camadas dominantes, da classe média para cima, com o que vem de
fora para dentro. Os endinheirados, os letrados e os bem-postos na vida
cultivam o cosmopolitismo avant la lettre, o que, na realidade, expressa uma
secular e singular repugnância pelas condições reais do País, especialmente
pelas condições miseráveis das classes subalternas.
Apesar disso, nos 50 anos que terminaram no
início da década de 1980, a economia brasileira cresceu de forma acelerada e
sofreu notáveis transformações, transitando do modelo primário exportador para
a etapa industrial. O ethos do desenvolvimento nasceu da percepção – das
camadas empresariais nascentes, do estamento burocrático-militar, de algumas
lideranças intelectuais e do proletariado em formação – de que o objetivo de
aproximar o País das formas de produção e de convivência não poderia ser
alcançado através da simples operação das forças naturais do mercado.
É inteiramente falso, no entanto, atribuir um
papel hegemônico a estas forças ditas progressistas na definição dos rumos do
desenvolvimento. O projeto de industrialização foi sendo construído através de
alianças políticas, regionais e de classe, que não só atraíram os interesses
mais retrógrados e reacionários para o bloco desenvolvimentista, mas também
selaram compromissos com as forças reais do internacionalismo capitalista.
Algumas características mais marcantes do
desenvolvimento brasileiro decorreram da repactuação continuada desse
compromisso: a espantosa persistência da estrutura agrária, a reprodução e
ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade, o
patrimonialismo da empresa industrial, o rentismo do sistema bancário, a eterna
revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados. Daí a
dependência do financiamento externo, a desordem financeira do Estado, o
protecionismo excessivo, a passividade tecnológica, o atraso organizacional, a
posição subordinada da grande empresa privada nacional e o crescimento desmesurado
do estatismo.
Durante 50 anos de industrialização
acelerada, particularmente no pós-guerra até a crise da dívida externa em 1982,
esse compromisso foi sendo continuamente renovado, apesar dos sucessivos
conflitos entre os grupos dominantes, sempre acompanhados de agudas crises
políticas. O fiador desse pacto instável foi a manutenção, ao longo de
muitas décadas, de elevadas taxas de crescimento da economia.
A desorganização dos anos 80 não deve ser
interpretada como uma crise que ocorre apenas no interior desse arranjo
oligárquico. Desta vez, apesar das aparências, o estrago foi maior. Por um
lado, caducou o consenso das camadas dominantes em torno do objetivo comum do
desenvolvimento e, de outro, aumentaram as pressões das classes subalternas
pelo reconhecimento integral de seus direitos políticos, sociais e econômicos.
Não é por outra razão que o ideário do
liberalismo se transformou, outra vez, na força ideológica dominante. Diante da
dificuldade de se reconstituir em novas bases um objetivo compartilhado, do
visível enfraquecimento financeiro e da capacidade coordenadora do Estado, o
liberalismo ressurge. Reaparece como a expressão imaginária e mágica do
reconhecimento do interesse particular de cada grupo no interior das camadas
dominantes e, ao mesmo tempo, como força política destinada a bloquear o avanço
das classes subordinadas na conquista dos seus direitos.
O que vemos é a reiteração da crença no
naturalismo do mercado, na rejeição da política, no cosmopolitismo. As
possibilidades de crescimento estão todas depositadas no recuo do Estado, no
ímpeto empreendedor do setor privado e, antes de mais nada, na força criadora
do investimento estrangeiro. Roberto Campos parece ter razão quando diz que,
finalmente, Gudin venceu. Ninguém sabe quanto tempo vai durar essa
vitória.
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
Beluzzo é petralha e o que ele escreve não vale nada.Ele apoiou explicitamente dilma no Em Pauta, durante anos e ainda fez chantagem canalha.
ResponderExcluirMAM
Diante das evidências de fatos e números, o reacionarismo tacanho baba e berra prisioneiro de eterna servidão voluntária. Beluzzo didático e brilhante como sempre.
ResponderExcluirBeluzzo é um grande economista, que escreve com conhecimento e clareza. Parabéns ao autor, e ao blog por divulgar seu trabalho!
ResponderExcluirmarcos é doutor em que?
ResponderExcluirPerfeito
ResponderExcluirNeves,
ResponderExcluirem denunciar petralhas como vc e ele.
MAM
Lendo e aprendendo.
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