sábado, 30 de setembro de 2023

Maílson da Nóbrega* - Por que é quase impossível cortar gastos

Valor Econômico

A rigidez orçamentária é o verdadeiro calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União

Tem sido comum a demanda por corte de gastos do governo federal. No mercado financeiro, alega-se que a isso é necessário, dado que o novo arcabouço fiscal depende excessivamente da elevação de receitas para cumprir metas de resultado primário e de endividamento. Gente com experiência no governo federal diz o mesmo. Outros argumentam que a reforma administrativa reduzirá despesas da União, o que está longe de ser totalmente verdadeiro.

Teoricamente, o clamor está correto. Vários estudos demonstram que o melhor ajuste fiscal é aquele realizado via despesa, pois pode se concentrar em áreas menos essenciais e poupar dos cortes os investimentos e outros programas fundamentais. A opção pela receita eleva a participação do governo na economia e acarreta alocação menos eficientes dos recursos, o que afeta negativamente a produtividade e o potencial de crescimento.

Sucede que no campo das finanças públicas não somos um país normal. A partir da Constituição de 1988, construímos uma rigidez orçamentária (gastos obrigatórios) sem paralelo no planeta. Criamos ou ampliamos a vinculação de recursos para educação, saúde, assistência social, ciência e tecnologia e outras áreas. Instituímos um generoso sistema previdenciário - que hoje consome metade das despesas primárias da União, uma participação sem correspondência no mundo -, elevamos o custo da folha pessoal e estabelecemos programas sociais justificáveis, mas sem avaliar sua viabilidade orçamentária.

A vinculação de recursos a certas atividades, apoiada por grande maioria da sociedade, é um dos absurdos das finanças públicas do Brasil. Trata-se de uma forma primitiva de definir prioridades, que condiciona os parlamentos para sempre. Será que daqui a algumas décadas, com muito menos jovens em idade escolar em virtude da queda da taxa de natalidade, a educação necessitará de tantos recursos quanto hoje ou haverá outras prioridades? O grande apoio da sociedade a essa regra reflete, na verdade, uma desconfiança na capacidade do Congresso de apoiar a destinação de recursos a essa área. Se admitirmos que o Congresso não sabe exercer sua função primordial, qual seja a de aprovar anualmente o Orçamento, que é a peça legislativa mais relevante, como acreditar que possa bem exercer outras funções?

A União é obrigada a destinar à educação 18% da arrecadação líquida de seus impostos. O percentual dos Estados e municípios sobe para 25%. Cometem crime de responsabilidade fiscal os governantes que não obedecerem a tal determinação legal. Poderão parar na cadeia. Em municípios onde a emigração e a queda da fertilidade têm gerado escolas com poucas crianças, não há como gastar toda a verba em atividades normais associadas à educação. Os prefeitos são levados a inventar gastos como pintar várias vezes as escolas ou criar programas que gerem novas despesas. No campo da educação, não faz sentido aplicar no Brasil a moderna técnica de gestão orçamentária, a spending review (revisão periódica de gastos). Se for possível reduzir gastos, a folga terá que ser mandatoriamente despendida, pois é preciso cumprir a regra da vinculação.

No exercício de 2022, os itens obrigatórios representaram 91% dos gastos primários do governo federal, que excluem os encargos financeiros. Agora, a situação se agravou, pois se restabeleceu a política de reajuste do salário mínimo acima da inflação, o que terá forte impacto na Previdência e nos benefícios de prestação continuada. Pior, a política se tornou permanente, pois se eliminou o prazo de duração quando de sua oficialização no governo de Dilma. Sua renovação periódica permitia a discussão sobre a conveniência de continuá-la. Isso não acontecerá doravante. Finalmente, o novo arcabouço fiscal criou um piso para o investimento, o qual, segundo interpretação de muitos, pode ser contingenciado. Mesmo que assim o seja, a maior parte do piso será ocupada pelo Novo PAC, que, segundo o presidente Lula, não estará sujeito a contingenciamento.

Diante de tudo isso, o Orçamento de 2024, recentemente enviado ao Congresso, reservará apenas R$ 55 bilhões para gastos discricionários, ou seja, aqueles sob controle do governo. Desse modo, no próximo exercício, os desembolsos obrigatórios corresponderão a inacreditáveis 98% dos gastos primários. Se considerarmos os encargos financeiros da dívida pública, que são na prática igualmente obrigatórios, a rigidez atingirá 99% das despesas. Claro, o governo pode cortar gastos como os relativos ao café nas repartições públicas e a viagens de servidores em tarefas de fiscalização ou para participar de reuniões fora de Brasília. Pode diminuir pousos e decolagens de aviões da Força Aérea, o consumo de diesel dos navios da Marinha e os exercícios realizados pelo Exército, entre outros. Nada disso será relativamente importante para reduzir despesas.

A inaceitável e insustentável rigidez orçamentária foi criada com amplo apoio do Congresso ao longo do tempo. É coisa rara encontrar parlamentares que conheçam ou liguem o mínimo para o conceito elementar da restrição orçamentária, que significa reconhecer um limite para ampliar o gasto, dado pela arrecadação tributária e pela capacidade de endividamento público. Agora mesmo, está em curso um novo trem da alegria baseado numa emenda constitucional que vai integrar, aos quadros da União, funcionários dos antigos territórios de Rondônia, Amapá e Roraima.

A rigidez orçamentária explica a quase impossibilidade de cortar gastos, bem como a dependência da arrecadação para cumprir metas de superávit primário e a dificuldade de estabilizar e depois de reduzir a relação entre a dívida pública e o PIB. A rigidez é o verdadeiro calcanhar de Aquiles do regime fiscal da União. Sem reduzi-la drasticamente, o Brasil tem um encontro marcado com uma grave crise da dívida pública. Não há, todavia, qualquer preocupação com esse risco, nem no governo nem no mercado financeiro, que nesse campo tem-se guiado, ao contrário, por simples complacência.

*Maílson da Nóbrega foi ministro da Fazenda. É sócio da Tendências Consultoria.

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