O Globo
O voto da ministra sobre o aborto mostra como é essencial ter mulheres no STF, que precisa refletir as muitas lentes que a sociedade tem
A ministra Rosa Weber encerrará seu mandato,
breve e intenso, na presidência do Supremo Tribunal Federal quando, na
quinta-feira, empossar o ministro Luís Roberto Barroso. Silenciosa para a
imprensa, de perfil discreto e técnico, Rosa não foge da briga. Isso se viu na
defesa da democracia. Agora, ela poderia ter fugido do debate do aborto, mas
fez questão de dar seu voto, no qual fez uma reflexão profunda sobre a
cidadania política sempre limitada das mulheres. O ato de descriminalizar a
interrupção da gravidez até a décima segunda semana não pode ser tratado de
forma moral pela Justiça e pelo estado laico. Deve ser entendido como o direito
de autodeterminação das mulheres, diz ela.
Rosa apresentou seu voto no plenário virtual e o assunto foi tirado de pauta. Voltará ao plenário físico, quando ela não estiver mais no STF. Sua voz, no entanto, ressoará naquele plenário quase todo masculino. Deste assunto, o Brasil foge, mas outros países já o enfrentaram.
Ela sustenta a tese de que os artigos 124 e
126 do Código Penal não têm abrigo na Constituição. Eles impõem pena de um a
três anos de prisão à mulher que interromper a gravidez fora dos casos
previstos em lei, estupro, risco de morte e feto anencéfalo. “O Estado não pode
julgar que uma mulher falhou (…) apenas porque sua decisão não converge com a
orientação presumivelmente aceita como correta pelo Estado e pela sociedade, da
perspectiva de uma moralidade”, diz Rosa. “A mulher que decide pela interrupção
da gestação nas doze primeiras semanas tem direito ao mesmo respeito e
consideração, na arena social e jurídica, que a mulher que escolhe pela
maternidade”.
Jamais haverá consenso a respeito do
“significado moral da prática do aborto”, explica a ministra. Por isso, o que a
lei tem que olhar é da perspectiva dos direitos da mulher à liberdade, à
autodeterminação, à cidadania igualitária. “O aborto não se trata de decisão
fácil, que pode ser classificada como leviana ou derivada de inadequação social
da conduta da mulher”. Ela critica o castigo à mulher. “A punição sofrida pelas
mulheres em situações humilhantes, de flagrante violação ao ethos da moralidade
individual, como ser presa em uma cama de hospital na sequência de um
procedimento de emergência obstetrícia, provoca uma indagação. É esta cena que
nos afirma como sociedade democrática constituída sobre os pilares dos direitos
fundamentais e da racionalidade jurídica?”.
Líderes religiosos e conservadores têm
impedido que esse debate seja racional no Brasil. O aborto continua sendo
feito, mas refletindo a nossa desigualdade. Às mulheres pobres resta o maior
risco e a maior ameaça. O debate se trava como se houvesse uma hierarquia em
que o direito do embrião é maior do que o direito da mulher. Essa subcidadania
é um fardo que a mulher carrega ao longo da história. Rosa a relata em todo o
seu voto com a força dos argumentos de quem vê o problema pelo lado da mulher.
“Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que
identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de
violência institucional contra a integridade física e moral da mulher,
colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade,
mas não suas”. Isso nos lembra Gilead, no “Conto da Aia”, de Margaret Atwood.
Rosa propõe “compreender o mundo a partir da
lente da mulher”. Só esse voto já mostra como é essencial ter mulher no
Supremo. O STF precisa refletir as muitas lentes que a sociedade tem. Não
apenas a do homem, a do branco, as lentes hegemônicas da nossa sociedade
patriarcal e racista. Rosa sustenta que a Constituição de 1988 reposicionou o
lugar da mulher na sociedade promovendo-a de “cidadã de segunda classe para a
condição de cidadania plena”.
Em 1792, a escritora Mary Wollstonecraft escreveu
o seu ensaio, pioneiro do pensamento feminista, “Reivindicação dos Direitos da
Mulher”. Leio-o agora e é como se o tempo não tivesse passado. “Quem fez do
homem o juiz exclusivo, se a mulher compartilha com ele o dom da razão?”,
pergunta a escritora.
Rosa em seu voto lembra que a criminalização
veio da década de 1940, tempo em que se “excluía as mulheres da condição de
sujeito”. Diante dessa “face coercitiva e interventiva mais extrema do Estado
nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos
silenciadas!”. O voto de Rosa quebra o silêncio.
Voto corajoso da ministra.
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