Partidos de direita e extrema direita dominam a agenda nacional e divisões ameaçam plebiscito sobre nova Constituição
Janaina Figueiredo / O Globo
Em outubro de 1988, num plebiscito
convocado para determinar se o regime ditatorial comandando pelo general
Augusto Pinochet, líder do golpe de Estado que derrubou o governo do socialista
Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, quase 56% dos chilenos optaram pelo
retorno da democracia. Depois de uma ditadura que, segundo dados oficiais,
matou mais de 3 mil pessoas e teve, no total, mais de 40 mil vítimas de uma
violência brutal contra opositores, a sociedade chilena disse basta. Hoje,
quando muitos imaginaram que os 50 anos do golpe seriam lembrados num ambiente
de consenso sobre um período nefasto de sua História, o Chile continua sendo
um país rachado, que não encontra caminhos para enterrar um passado que ainda o
atormenta, e seu legado, principalmente a Constituição deixada pelo regime
militar.
Depois de um primeiro plebiscito no qual um projeto de nova Carta Magna foi rechaçado, no ano passado, os chilenos irão novamente às urnas em 17 de dezembro. Segundo recentes pesquisas, o mais provável é que um segundo texto, desta vez redigido por uma Convenção Constitucional na qual os partidos de direita são maioria, também naufrague. Se este for o resultado, o governo do presidente Gabriel Boric, à frente de uma coalizão de esquerda, já avisou que não haverá, em sua gestão, uma terceira tentativa. O Chile entraria num período de forte instabilidade e, diante do temor que essa possibilidade provoca, a presidente do Banco Central, Rossana Costa, declarou recentemente que “até agora conseguimos que todo o processo de mudanças não afete o desempenho da economia”. Costa destacou que essa contenção de danos permitiu, até mesmo, que o país tenha registrado uma queda da inflação, tema que preocupa a grande maioria da população.
Nas semanas prévias às homenagens
organizadas pelo governo de Boric para as vítimas da ditadura e, sobretudo,
para mostrar à sociedade chilena que existe um compromisso nacional com a democracia,
as tentativas de unir todos os partidos políticos fracassaram. Na última
quarta-feira, a aliança de direita Chile Vamos, formada, entre outros, pelos
partidos Renovação Nacional e União Democrática Independente, divulgaram sua
própria declaração, intitulada “50 anos da ruptura da democracia”, sem utilizar
a palavra golpe. No texto, os partidos da direita chilena afirmam que “a
vivência que cada pessoa experimentou e suas severas consequências nos obrigam
a refletir sobre estas cinco décadas, tomar consciência dos aprendizados e
erros cometidos por todos os setores, e olhar para o futuro”. Em sintonia com
declarações de vários dirigentes da direita nos últimos meses, o documento não
apenas não menciona o golpe de Estado dado por Pinochet e as posteriores
violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura, como justifica as ações
do ditador e fala em erros cometidos por todos os chilenos.
A extrema-direita, liderada pelo
ex-candidato presidencial José Antonio Kast, do Partido Republicano, não
assinou o documento da direita tradicional e tem uma posição ainda mais
contundente sobre o que aconteceu no país a partir da decisão de Pinochet de
bombardear o Palácio de la Moneda em plena vigência da democracia. Em
entrevista a um canal de TV local, Kast, que integra uma rede de extrema direita
regional junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao candidato presidencial
argentino Javier Milei, declarou que "o governo militar interrompeu uma
ditadura marxista. O pronunciamento militar ocorreu por uma convocação do
povo”.
— Os 50 anos voltaram a colocar nossas
diferenças em evidência e não conseguimos produzir um momento de reflexão
coletiva. Não há consenso sobre um Nunca Mais no Chile — diz ao GLOBO o
embaixador chileno no Brasil, Sebastián Depolo.
O embaixador lamentou "a falta de
visão de longo prazo da direita”, e a dificuldade de “entender um convite do
presidente Boric a “refletir sobre as lições da História”.
— A conjuntura política afetou o momento.
Espero que passado este momento possamos fazer essa reflexão — afirma Depolo.
'Retrocesso'
As disputas entre o governo de Boric e a
direita e extrema-direita dominaram a agenda pelos 50 anos do golpe, efeméride
que, segundo pesquisa divulgada pela Fundação Ativa, desperta interesse em
apenas 44% dos chilenos. O mesmo estudo mostrou que 32,8% dos entrevistados
disseram estar a favor do golpe de 1973 e 39,6% culparam Allende pela ação dos
militares comandados por Pinochet. Hoje, 43,7% dos chilenos justificam um golpe
de Estado dependendo “das condições em que viva um país”.
Na visão da ex-chanceler Antonia Urrejola,
o Chile vive um momento de retrocesso.
— Nas comemorações dos 30 e 40 anos, a
mesma direita que hoje se nega a assinar um documento conjunto com o governo
reconheceu as violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura. O
ex-presidente [de direita] Sebastián Piñera falou inclusive em cúmplices
passivos da ditadura, algo que nenhum outro governo tinha feito — apontou
Urrejola.
Nesta ocasião, porém, Piñera apoiou a
declaração paralela da aliança Chile Vamos. Para a ex-chanceler, a direita
chilena se tornou “negacionista" e passou a “relativizar graves violações
dos direitos humanos, o que tem um enorme impacto na democracia”.
— Uma deputada chegou a dizer que a
violência sexual, que está documentada, era uma lenda urbana. Isso é
negacionismo, isso é tentar transformar as vítimas em culpados e os culpados em
vítimas. O que mais me preocupa é que existe uma ausência de memória, os jovens
sentem que o golpe não tem a ver com eles e a memória é um valor essencial para
a dignidade humana — frisa Urrejola.
País dividido
O negacionismo da direita e extrema direita
convive com um revival da figura de Pinochet. Em Santiago, a loja Bazar
Patriota vende os famosos bonecos Funkos com a imagem do ditador, além de
outros souvenirs e até mesmo garrafas de vinho com a legenda “Missão Cumprida”.
Procurada pelo GLOBO, a loja fez uma enquete em sua conta na rede social X
(Ex-Twitter) para decidir se daria ou não uma entrevista, e finalmente
declinou, seguindo o conselho da grande maioria de seus 7.812 seguidores. Para
este setor da sociedade chilena, Pinochet hoje é pop, e Allende o responsável
de um caos que obrigou o general a dar um golpe.
— Podemos ter diferentes visões, podem
falar em caos, mas ninguém pode duvidar de que Allende era um democrata. É
triste o que estamos vivendo — enfatiza a ex-chanceler.
Hoje, Boric realizará uma cerimônia no
Palácio de La Moneda, da qual não participarão os partidos da direita. A única
ex-presidente presente será Michele Bachelet, vítima da ditadura. Os ex-chefes
de Estado Eduardo Frei e Ricardos Lagos não poderão estar por problemas de
agenda e de saúde, respectivamente. Será um evento do governo de Boric, e não
da sociedade e da classe política chilena, para repudiar uma ditadura que,
segundo a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura, criada em 2003 e
cujo relatório inicial foi ampliado em 2011, assassinou, torturou, sequestrou e
abusou sexualmente milhares de pessoas. O Chile, em palavras de Marta Lagos,
diretora da Mori e da Latinobarometro, “está dividido em dois países e isso não
tem solução”.
— Teremos os dois lados nas ruas, e a possibilidade de incidentes violentos é grande. O Chile tem uma incapacidade de reconciliar-se com seu passado e hoje a direita domina a agenda nacional — conclui Marta.
Não é só o Brasil que está tentando reescrever a História.
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