domingo, 17 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Conservadorismo terá de se livrar do extremismo

O Globo

Visão conservadora, predominante no Brasil, foi contaminada por teses conspiratórias e ataques à democracia

Por muitas décadas, a divisão entre os campos políticos identificados como direita e esquerda se baseava em questões como papel do Estado na economia ou desigualdade social. Mais recentemente, a pauta de costumes, influenciada pela agenda identitária originada nos Estados Unidos, passou a ocupar espaço. Temas como aborto, sexualidade, armas ou drogas se tornaram mais relevantes para explicar a sociedade. Dentro dessa temática, a visão associada ao conservadorismo tem sido predominante no Brasil — e decisiva na política. É o que constatou a mais recente pesquisa A Cara da Democracia, feita com 2.558 entrevistados pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT) no fim de agosto.

A maioria se diz contra a legalização do aborto (79%), contra a descriminalização do uso de drogas (70%) e a favor da redução da maioridade penal (65%). É certo que, entre os partidários do ex-presidente Jair Bolsonaro, os percentuais são mais altos (respectivamente, 90%, 83% e 77%). Mesmo assim, uma maioria expressiva dos admiradores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva defende as mesmas posições (77%, 71% e 62%). O principal contraste entre os dois grupos se dá na opinião sobre questões de gênero e sexualidade (60% dos lulistas são favoráveis ao casamento gay, enquanto 69% dos bolsonaristas são contrários).

Quando se pede aos entrevistados que se situem no espectro ideológico, 22% apontam a extremidade direita na escala, o dobro dos que escolhem a esquerda (11%). Em 2018, ano da primeira pesquisa A Cara da Democracia, mais brasileiros se diziam de centro (17%) que de esquerda (6%) ou direita (9%) somadas. De lá para cá, a situação se inverteu. O centro atrai 16%, e os dois polos mais que o dobro (33%).

Mais que a predominância do conservadorismo, chama a atenção como o bolsonarismo se apropriou dessa parcela da sociedade. Isso pode ser medido pela adesão às teorias conspiratórias disseminadas pelas redes bolsonaristas. Um terço dos entrevistados — e 72% dos bolsonaristas — diz acreditar que as eleições do ano passado foram fraudadas e que Bolsonaro venceu. É aproximadamente o mesmo percentual de americanos que creem na “grande mentira” de Donald Trump, segundo a qual Joe Biden só chegou à Casa Branca graças a fraudes eleitorais (30%).

Tanto Trump como Bolsonaro usaram a autoridade e a exposição que tinham para disseminar mentiras sobre a lisura das eleições. Como resultado, contribuíram para corroer a confiança na democracia. Embora três em cada cinco bolsonaristas entrevistados afirmem preferir a democracia a qualquer outra forma de governo, um quarto deles aceitaria uma ditadura em algumas circunstâncias. “A pesquisa mostra que ainda existe uma base bolsonarista que rejeita a democracia e as instituições democráticas”, afirmou ao GLOBO o cientista político Leonardo Avritzer, um dos responsávels pela pesquisa.

Para os conservadores brasileiros, a pesquisa traz uma mensagem ambivalente. De um lado, com Bolsonaro, seus valores reverberaram nos últimos anos e se tornaram predominantes na sociedade. De outro, foram contaminados pela visão conspiratória que emana do bolsonarismo. Para prevalecer na arena política, o conservadorismo precisará doravante encontrar seu caminho para fazer valer suas opiniões dentro das instituições democráticas. Lidar com as sequelas deixadas pelo bolsonarismo será seu maior desafio.

Desmatamento no Cerrado exige mesma urgência que na Amazônia

O Globo

Na região de expansão da fronteira agrícola, é preciso estabelecer limites à exploração predatória

Enquanto na Amazônia o desmatamento tem caído de modo consistente desde o início do atual governo, no Cerrado ele prossegue sem freios. Entre agosto de 2022 e julho deste ano, 6.359 quilômetros quadrados foram destruídos, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) — cinco vezes a área do município do Rio de Janeiro. Tudo acontece no ritmo da expansão da fronteira agrícola, na borda dos estados de MaranhãoTocantins, Piauí e Bahia, conhecidos pelo acrônimo Matopiba.

Apenas três municípios — São Desidério e Correntina, na Bahia, e Balsas, no Maranhão — desmataram 51,5 mil hectares no primeiro semestre. São Desidério, líder no ranking, abriga 30 grandes propriedades e extensas plantações de algodão e soja. É o município que mais produz grãos no país.

A conquista do Cerrado pela agricultura foi uma vitória da ciência brasileira. Trata-se de terra árida, de vegetação rasteira, muito diferente da amazônica. O Cerrado é considerado a formação de savana com maior biodiversidade do planeta. Os métodos de plantio desenvolvidos pela Embrapa converteram essa região seca em terra fértil para cultivo de algodão, soja ou milho. Mas o sucesso dos empreendedores agrícolas, muitos deles migrantes do Sul, se deu sem maiores cuidados com o meio ambiente. Agora é preciso implementar uma nova dinâmica e uma nova regulação na exploração do Cerrado.

É fundamental preservar a produção agrícola, atividade que tem sido motor do nosso crescimento, mas é necessário estabelecer critérios para deter mudanças no clima e no regime de chuvas. Os afluentes da margem direita do Amazonas dependem das nascentes de água do Cerrado. Por isso a região, sob a qual está parte do enorme aquífero Guarani, é chamada de “caixa-d’água do Brasil”. Abastece oito bacias hidrográficas, entre elas as do Paraná, do Tocantins, do São Francisco e do Pantanal, com reflexos em Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia. Se isso mudar, a própria agricultura seria a primeira a perder. Ampliar áreas produtivas sem limites pode pôr em risco as vantagens de que hoje os produtores se beneficiam. A solução é aumentar a produtividade, não a área plantada. A ciência já dá os caminhos.

Enquanto o Código Florestal protege 80% das áreas privadas na Amazônia, as reservas legais no Cerrado são de no máximo 35%. O tratamento das unidades de conservação também é desproporcional: no Cerrado, são de apenas 8,21%, ante quase 50% na Amazônia. Nesse quadro permissivo, mais da metade do desmatamento ocorre por permissão das secretarias estaduais de Meio Ambiente. Não é o caso de promover rixas entre estados e União, mas de reconhecer que o sistema de freios à devastação tem sido falho. É preciso implementar uma visão de conjunto, sob jurisdição federal. Cabe ao governo informar a produtores e políticos locais que a maneira predatória como a terra tem sido explorada reverterá em prejuízo cedo ou tarde, com a mesma repercussão internacional da destruição da Amazônia. Não há tempo a perder.

Sem elevar

Folha de S. Paulo

Propostas tributárias são defensáveis, mas sem alta da

A proposta de lei orçamentária enviada ao Congresso não deixa dúvidas de que a estratégia do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para atingir a meta de zerar o déficit orçamentário em 2024 depende quase exclusivamente de uma forte elevação de impostos.

A projeção oficial de receita adicional é de exorbitantes e improváveis R$ 276,4 bilhões, que seriam obtidos por meio de um amplo conjunto de medidas legislativas, várias delas ainda em tramitação.

Entre os exemplos, busca-se elevar a tributação de aplicações financeiras voltadas para grandes investidores. A medida provisória 1.184, que deve ser convertida em projeto de lei, elimina o diferimento de Imposto de Renda dos fundos de investimento fechados.

A regra a ser mudada permite a cobrança de IR apenas quando há retirada dos recursos, o que na prática pode adiar por muitos anos a incidência. Com a alteração, a tributação será equivalente à de outras modalidades do mercado.

O governo pretende obter R$ 13 bilhões em 2024 com a taxação do estoque de rendimento acumulado nos fundos fechados, fixando alíquota reduzida de 10% para recolhimento à vista. Adiante, o padrão será a cobrança de 15%.

Já o projeto de lei 4.173 atinge aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior, com potencial estimado de R$ 7 bilhões. O princípio é o mesmo dos fundos fechados —acabar com a possibilidade de adiamento da cobrança sobre o rendimento financeiro.

Nesse caso, há incentivo para pagamento voluntário dos ganhos acumulados, também com alíquota de 10%. Há opção de recolher mais tarde, conforme regras específicas, mas o gravame seria bem maior, de 22,5%.

Ambas as iniciativas são defensáveis para corrigir distorções e tornar o sistema tributário mais progressivo, com peso maior sobre os contribuintes mais ricos. É preciso análise cuidadosa do Congresso, entretanto, para evitar consequências indesejadas.

Desequilíbrio na cobrança local ante a internacional, por exemplo, poderá incentivar a fuga de capitais. Erros de calibragem poderão reduzir a base de incidência.

Em todo caso, o objetivo central do governo deveria ser distribuir melhor, não aumentar ainda mais a já exagerada carga tributária.

A dificuldade em obter os valores pretendidos é óbvia —mesmo que todas as medidas venham a ser aprovadas, a receita extra projetada pela Instituição Fiscal Independente (IFI) é de R$ 108,6 bilhões a mais em 2024, apenas cerca de 40% do que quer o Executivo.

Se não houver disposição para controlar os gastos, o governo não apenas terá dificuldades quase intransponíveis para o ajuste fiscal como também perderá condições políticas de pedir mais impostos.

50 anos após o golpe

Folha de S. Paulo

Democracia chilena está resguardada, mas deve superar revisionismo e polarização

Às 11h52 do dia 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, era bombardeado por militares comandos pelo general Augusto Pinochet. Em poucas horas, o então presidente Salvador Allende cometeria suicídio —o que dava início a uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, só encerrada em 1990.

Segundo a Subsecretaria de Direitos Humanos do país sul-americano, o regime fez mais de 40 mil vítimas, entre desaparecidos, executados, presos e torturados.

Após a Segunda Guerra e até a queda do Muro de Berlim, o mundo viveu a polarização da Guerra Fria, em que EUA e URSS apoiaram disrupções políticas em países menos desenvolvidos para expandir o raio de alcance de suas ideologias.

O temor do comunismo foi usado como artifício para destituir governos na América Latina, como no caso do Chile —que chega aos 50 anos do golpe em cenário político também polarizado.

Gabriel Boric, presidente mais à esquerda desde Allende, enfrentou seu primeiro baque logo após a eleição, com a tentativa frustrada de implementar uma nova Constituição. O texto, militante em demasia, foi rechaçado pela eleitorado.

Desde então, Boric tenta se equilibrar entre demandas por avanços sociais e pressões conservadoras contra a pauta de costumes.

A direita radical do Partido Republicano está em ascensão. Obteve 22 das 50 cadeiras —e a direita tradicional, 11— da comissão responsável pela nova Carta. Ademais, o golpe militar de 1973 passa por um revisionismo canhestro, que tenta imputar a Allende a culpa pela violenta ruptura institucional.

A tradicional UDI emitiu nota afirmando que o golpe era inevitável. Já José Antonio Kast, que criou o Partido Republicano e ficou em segundo lugar nas eleições de 2021, disse que "a primeira ditadura no Chile foi a de Salvador Allende".

Boric rechaçou essa mistificação em seu discurso no evento que marcou a efeméride e tem sido voz crítica a regimes ditatoriais de esquerda na região, como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela —que lideranças como Luiz Inácio Lula da Silva (PT) insistem em apoiar.

A democracia chilena parece resguardada, com apoio popular, mas terá de buscar o entendimento e a retomada da trajetória de progresso econômico e social.

Bússola institucional avariada

O Estado de S. Paulo

Há um clima de permissividade institucional. Executivo federal e setores do Judiciário sentem-se autorizados a atuar como bem entenderem, indiferentes à Constituição. É preciso reagir

Este jornal faz um alerta. Tendo vencido os ataques do bolsonarismo contra a democracia, o País enfrenta agora outra ameaça, mais sutil, mas não menos perigosa, contra o funcionamento das instituições democráticas. Sob pretexto de defesa da democracia, o Executivo federal e setores do Judiciário vêm se sentindo autorizados a atuar como bem entenderem, indiferentes às competências e previsões legais. O tema é especialmente grave não apenas em razão do funcionamento irregular de órgãos públicos, mas pela tolerância dos mecanismos de controle e, verdade seja dita, de boa parte da própria sociedade.

Por se colocar frontalmente contrário a valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, como o respeito às minorias e ao resultado das eleições, o bolsonarismo suscitava imediata reação da sociedade e dos outros Poderes. O Supremo Tribunal Federal (STF) foi valente na defesa da Constituição, assegurando, por exemplo, a competência concorrente dos Estados e dos municípios na área da saúde pública em meio à pandemia de covid-19. Por sua vez, o Senado rechaçou os ataques bolsonaristas contra a separação dos Poderes. Rejeitou liminarmente um pedido de impeachment apresentado por Jair Bolsonaro contra um ministro do Supremo.

Agora, há uma tolerância em relação a ações não republicanas do Judiciário e do Executivo federal. Numa ação de reclamação antiga, de 2020, o ministro Dias Toffoli decretou uma espécie de terra arrasada em relação a tudo o que foi feito no País desde a Lava Jato. Seja qual for sua motivação – dizem que deseja o perdão de Lula por suas decisões passadas coniventes com o lavajatismo –, o ministro não pode atuar assim. Infelizmente, o restante do STF apenas observou passivamente. A impressão é de desleixo com a imagem do Judiciário. A prioridade seria alinhar-se aos ventos da política.

Na decisão, Dias Toffoli encarregou um órgão do Executivo federal, a Advocacia-Geral da União (AGU), para apurar os supostos danos causados pela Lava Jato. A medida é um acinte: o STF autoriza o governo Lula a usar a máquina estatal contra seus inimigos. Também não se viu resistência.

Tal é o ambiente que, no mesmo dia da decisão de Dias Toffoli, a AGU anunciou a criação de uma força-tarefa para investigar a magistratura e o Ministério Público envolvidos na Lava Jato. Assume-se despudoradamente a ideia de ação coordenada. E pior: com a forçatarefa, o Executivo assumirá nada mais, nada menos, que a função de polícia sobre a Justiça e o Ministério Público. Mas ninguém se preocupa, na estranha lógica de que só o bolsonarismo ataca a Constituição.

Outro caso preocupante é o modus operandi do ministro Alexandre de Moraes, empenhado em seguir todos os erros da Lava Jato – desde uma competência universal costurada por uma compreensão ampla de conexão até prisão preventiva com intuito de obter delação de investigado. A atuação necessária e firme do ministro em defesa da lei e das instituições democráticas no ano passado não lhe outorga um poder irrestrito agora. Ele não está acima da lei. Precisa, sim, submeter-se ao que dispõem o Direito e a jurisprudência do STF.

Não cabe desleixo com o Estado Democrático de Direito, simplesmente porque Jair Bolsonaro não está mais na Presidência da República ou porque foi declarado inelegível. O governo Lula tem de se submeter à lei. E é preciso chamar suas ações pelo seu nome. É inconstitucional o governo federal investigar magistrados e procuradores.

São muitos os fatores para esse estado de coisas. A sociedade dá mostras de exaustão depois dos quatro anos de bolsonarismo. Mas neste governo Lula há um fator novo, diferente dos outros dois. Falta um ministro da Justiça. O atual chefe da pasta parece ser o primeiro a incentivar e a aproveitar, para seus interesses políticos, a bagunça institucional vigente.

Defender a democracia não é uma ideia romântica. Trata-se de assegurar, em todas as circunstâncias, o funcionamento dos Poderes de acordo com o que determina a Constituição. Sem exceção. Não cabe ingenuidade.

Nova ordem no comércio mundial

O Estado de S. Paulo

Brasil precisa eliminar custos e incertezas para entrar no jogo do comércio e tirar proveito dos caminhos abertos pela rixa entre EUA e China, que impõe uma nova ordem mercantil

A janela aberta no comércio internacional, movida principalmente pela disputa entre Estados Unidos e China, está modificando relações mercantis entre países com uma amplitude que há muito não se via. O distanciamento das duas potências movimenta o eixo do comércio exterior com base em três pilares: proximidade, relações diplomáticas e negociais e produtividade.

O Brasil se vale de safras recordes e da excelência do setor do agronegócio para expandir suas vendas externas de commodities agrícolas, liderando o mercado de soja, milho e algodão, como já abordado neste espaço (ver o editorial Depois do milho e da soja, o algodão, de 13/9/2023). Mas assiste com inexplicável passividade às mudanças impostas pela nova ordem econômica que se desenha, perdendo ou, quando muito, apenas mantendo posição em manufaturados e produtos de maior valor agregado.

Desde os anos 2000, o comércio de manufaturados brasileiros vem caindo paulatinamente. No início daquela década, representava 59% da balança comercial; no ano passado, recuou para 29%. É como cair de um precipício. Outro exemplo a ilustrar a perda de competitividade, desta vez em valores: em 2005, a balança de manufaturados brasileira registrou superávit de US$ 7,5 bilhões; sucessivas quedas levaram a um déficit de US$ 128 bilhões em 2022.

O comércio agrícola avança, mas fica à mercê da flutuação de preços internacionais, e aqui vale ressaltar que o Brasil, apesar de grande produtor e exportador, não tem a menor influência na formação de preço dessas commodities.

Ou seja, não há como os exportadores brasileiros definirem preços de comercialização. Apenas seguem o que ditam os preços internacionais.

A indústria carrega o peso da baixa produtividade e da pífia competitividade, problemas que afinal podem ser atenuados pela reforma tributária, com redução gradual do altíssimo “custo Brasil”. Apesar da tramitação mais lenta do que era previsto e das modificações que o projeto tem sofrido no Congresso, a simplificação tributária proposta na reforma tende a facilitar a atuação brasileira no comércio externo.

A complexidade da estrutura atual dificulta, por exemplo, o funcionamento do Reintegra, benefício fiscal destinado a retornar aos exportadores os resíduos tributários de PIS, Cofins, Imposto de Renda e CPMF remanescentes da cadeia de produção dos produtos. O benefício existe, mas não funciona de fato. Além do mais, o decreto que regulamentou a lei limitou a alíquota de restituição a 0,1% da receita com exportação. O resultado é que a indústria brasileira não vende somente seus produtos, exporta também tributos e fica em desvantagem na competição internacional.

O governo precisa voltar sua atenção às mudanças em curso no mundo todo e promover a abertura comercial do País para não perder a oportunidade de participar da onda que mudará a correlação de forças global. Guinadas no comércio mundial são movidas a circunstâncias como guerras, disputa entre potências e pandemias – a covid, por exemplo, promoveu um êxodo de empresas que haviam montado bases de produção na China em busca de mão de obra barata.

Em 2018, o governo dos EUA, sob Donald Trump, iniciou a guerra comercial com a China, que permanece até hoje, tendo como pano de fundo a disputa pela liderança econômica mundial. O tempo que esta janela permanecerá aberta é imprevisível, mas já arrastou negociações comerciais para países próximos (nearshoring) e promoveu o retorno de fabricantes às suas bases (reshoring).

O México, vizinho dos Estados Unidos, com quem divide, junto com o Canadá, um acordo comercial, é um dos países que mais têm tirado proveito da nova ordem na parcela ocidental. Ásia, Malásia, Tailândia e Indonésia também surfam a nova onda. Enquanto isso, o Brasil, que tem na China e nos EUA seus principais parceiros comerciais, assiste inerte a todo esse movimento.

Em 1980, com participação de 0,99% no comércio mundial, o Brasil estava à frente de países como China, Coreia e México, que detinham, cada um, 0,88%. A China hoje é a primeira do ranking, a Coreia está em 6.º e o México, em 13.º. O Brasil caiu para a 26.ª posição. Está na hora de acordar.

Compromisso com a memória

O Estado de S. Paulo

Só os que vivem de distorcer a história podem ser contrários ao memorial do DOI-Codi

A memória do complexo situado no número 921 da Rua Tutoia, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, não pertence ao governo de São Paulo nem ao Exército. A rigor, não pertence nem sequer às cerca de 7 mil pessoas que para lá foram levadas à força e submetidas a toda sorte de suplícios, dezenas delas até a morte. A memória do lugar onde durante quase 14 anos funcionou o terrível DOI-Codi do então 2.º Exército, entre 1969 e 1982, é patrimônio da sociedade brasileira e como tal deve ser preservado pelo Estado.

É lamentável que as antigas instalações do DOI-Codi em São Paulo, um centro de violações ininterruptas dos direitos humanos durante a fase mais brutal da repressão aos opositores da ditadura militar, até hoje não tenham sido convertidas em memorial. Em 2021, o Ministério Público ingressou com uma ação civil pública a fim de reparar esse erro, mas ainda não houve acordo entre o parquet e o governo estadual, responsável pelo imóvel. O imbróglio segue na Justiça e, no que depender do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), pouco ou nada avançará.

O governo estadual, por meio da Secretaria da Cultura, é contra a criação do memorial do DOI-Codi. Os argumentos da secretária Marilia Marton para se opor ao projeto são tão pueris que é inevitável a inferência de que se está diante de uma oposição de viés político-ideológico. Ao jornal Valor, a sra. Marton reduziu a construção do memorial – de evidente interesse público – a questões orçamentárias, logísticas e até turísticas, como se um espaço dessa natureza se prestasse a outra coisa senão à preservação da memória de um dos momentos mais dramáticos da história brasileira, do qual geração após geração há de lembrar para que os horrores de um passado ainda nem tão distante jamais sejam esquecidos.

A posição do governo estadual não chega a ser surpreendente, haja vista que Tarcísio em pessoa não viu problema algum em homenagear o infame coronel Erasmo Dias, símbolo da linha-dura da ditadura militar no Estado, sancionando uma lei de iniciativa da Alesp que batiza com o nome desse militar um viaduto em Paraguaçu Paulista. Tudo indica, portanto, que se trata de mais um aceno a Jair Bolsonaro, admirador declarado do mais cruel dos chefes do DOI-Codi, o coronel Brilhante Ustra, e à base bolsonarista que ajudou a eleger Tarcísio.

A coragem para enfrentar temas sensíveis para a sociedade, malgrado as divergências que possa haver entre os cidadãos, é atributo que costuma transformar governantes em estadistas. Estes, por sua vez, são os que têm a capacidade de identificar, entre a miríade de conflitos próprios de qualquer sociedade livre e vibrante, quais valores comuns devem ser preservados para as gerações futuras – entre os quais, não há dúvida, está a defesa inarredável dos direitos humanos.

Obstar a criação de um memorial no exato local onde a própria condição humana foi negada a muitos brasileiros não passa de uma tentativa canhestra de apagar o registro de um passado que jamais deve ser esquecido.

 

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