segunda-feira, 18 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Brasil continua a investir mal em educação

O Globo

País é um dos piores na despesa com ensino básico, mas alcança países ricos no gasto com formação superior

O Brasil ocupa a terceira pior posição em investimento público na educação básica, num ranking de 42 países avaliados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Os US$ 3.583 por aluno gastos todo ano são um terço da média (US$ 10.949), superando apenas África do Sul e México, diz o estudo Panorama da Educação 2023.

Embora o relatório aponte que o Brasil reduziu em 10,5% a despesa pública com educação depois da pandemia (enquanto os países da OCDE registraram aumento de 2,1%), não se pode dizer que o país não invista em educação. Na proposta orçamentária para 2024, a verba do MEC passa de R$ 147 bilhões para 181 bilhões, uma das maiores entre as pastas. Como proporção do PIB, o gasto brasileiro, incluindo os três níveis de governo, fica em torno de 5,4%, nível comparável ao da França (5,5%), mais que Espanha (5%) ou Portugal (5,1%) — na OCDE, a média é 5,1%.

Continuamos gastando mal, com prioridades equivocadas. Chama a atenção que, no ensino superior, o gasto do Brasil (US$ 14.735 por aluno) esteja na média da OCDE (US$ 14.839). Investe-se na ponta, mas descuida-se da base, necessária para a formação das novas gerações. “O relatório mostra que a gente precisa priorizar os recursos, investindo mais no ensino básico, observando como eles são gastos, avaliando a qualidade da alocação e sua efetividade”, diz Alexandre Schneider, pesquisador da FGV especializado em educação. “Usamos os recursos para atrair professores, melhorar sua formação? Ou destinamos o dinheiro a políticas que não fazem sentido?”

As distorções apontadas no relatório sugerem que a segunda alternativa reflete melhor a realidade. O estudo também evidencia o descaso brasileiro com o ensino profissionalizante. O Brasil registra o terceiro pior indicador na modalidade: apenas 11% dos jovens de 15 a 19 anos estão matriculados nesses cursos, ante média de 37% nos países da OCDE. A meta de atingir 5,2 milhões de matrículas até 2024 se mostra inviável, uma vez que no ano passado eram apenas 2,1 milhões.

O ensino profissionalizante é um caminho para jovens adquirirem uma perspectiva profissional e financeira. Infelizmente, políticas públicas que tentam corrigir as falhas enfrentam obstáculos. O Novo Ensino Médio, que estimula cursos técnicos, está parado por decisão do MEC em meio a discussões estéreis. O Brasil aparece mal também quando o assunto são jovens que não estudam nem trabalham, os “nem-nem”. Na faixa de 18 a 24 anos, representam 24,4% da população, sexto pior indicador do ranking (a média é 15%).

O país deveria se perguntar por quê. Cursos e currículos divorciados da realidade, que não preparam os jovens para um mercado competitivo ou para as demandas da economia, certamente têm influência. Será acaso que, nas últimas décadas, o Brasil ampliou as matrículas e a escolaridade da população, mas a produtividade permanece estagnada, ao contrário do que ocorreu em países como Chile ou Coreia do Sul?

É um erro afirmar que o problema se resume à falta de dinheiro. Há questões mais relevantes. É preciso melhorar a formação dos professores, equipar escolas que ainda se encontram na era analógica, tornar os currículos mais atraentes etc. Levando em conta o desempenho pífio dos estudantes brasileiros em exames nacionais e internacionais, não é difícil concluir que o Brasil usa mal seus escassos recursos.

É urgente que seja marcado um novo julgamento da Boate Kiss

O Globo

Em mais de dez anos, Justiça não cumpriu dever de punir responsáveis pela tragédia que matou 242 pessoas

Por quatro votos a um, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve na semana passada a anulação do júri popular que condenara os réus acusados de responsabilidade pelo incêndio na Boate Kiss, ocorrido em 2013 em Santa Maria. A tragédia começou quando um integrante da banda Gurizada Fandangueira acendeu em cima do palco um fogo de artifício que inflamou o revestimento de espuma do teto e das paredes, lançando gases tóxicos num ambiente sem ventilação nem saídas adequadas. Morreram 242 pessoas e 636 ficaram feridas.

Tantas foram as protelações da Justiça, que o primeiro julgamento levou oito anos e dez meses para acontecer. Em dezembro de 2021, o júri condenou os sócios da boate, Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, o músico Marcelo de Jesus dos Santos e o produtor Luciano Bonilha Leão a penas entre 18 e 22 anos de prisão. Os condenados puderam recorrer em liberdade, mas depois foram detidos. Em agosto do ano passado, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou o júri em razão de questões formais, sem entrar no mérito das acusações. Desde então, os réus passaram a acompanhar o caso em liberdade.

Agora, o STJ confirmou a anulação. O ministro relator, Rogério Schietti Cruz, foi o único a votar contra. Ele não viu nas falhas técnicas apontadas pela defesa razão suficiente para tornar sem efeito o julgamento de Porto Alegre. Os demais ministros, Antonio Saldanha Palheiro, Sebastião Reis, Jesuino Rissato e Laurita Vaz, discordaram e deram o voto vencedor, destacando como grave uma reunião reservada do juiz Orlando Faccini Neto com os jurados, sem a participação de advogados de defesa ou representantes do Ministério Público.

Os atrasos ocorrem desde o começo da tramitação do processo. Os réus foram beneficiados pelo enorme tempo gasto em discussões sobre pedidos de arquivamento, acerca da transferência do julgamento de Santa Maria a Porto Alegre e por inúmeras tentativas de impugnar os promotores, com a intenção de segurar a tramitação.

Nem a morte de 242 pessoas, nem os ferimentos de 636, nem o trauma de familiares, amigos e sobreviventes foram suficientes para que o Judiciário tratasse o caso como deveria. Sem deixar de ouvir todas as testemunhas nem de analisar as provas técnicas, a Justiça poderia ter evitado que mais uma vez a legislação brasileira, com seus incontáveis recursos protelatórios, fosse usada para retardar o desfecho judicial de uma história trágica.

Restou à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) lembrar nas redes sociais: “Foram 242 vidas roubadas, 636 jovens que sobreviveram àquela noite marcada pela ganância e horror. São famílias destruídas, pais e mães que dez anos depois ainda lutam e esperam pela Justiça”. O novo julgamento precisa ser marcado com urgência. Tamanha tragédia não pode entrar para a História com a mancha da impunidade.

Mesmo com juros altos, inflação pode ter repique

Valor Econômico

Novas pressões de custos poderão ocorrer em uma economia que resiste trimestres a fio a seguir as previsões de desaceleração

A inflação voltou a subir nos Estados Unidos, mantém-se inaceitavelmente alta na Europa, após meses de quedas contínuas, e exibe recuo promissor no Brasil, embora fatores externos possam vir a atrapalhar o ritmo do ciclo de corte de juros desenhado pelo Banco Central. Os riscos para o combate à inflação advêm de fatores comuns, e o mais imediato deles é a alta das cotações do petróleo, que chegaram ao nível mais elevado no ano na quinta-feira. Há ainda fatores impulsionando a demanda: a política fiscal, mais claramente nos Estados Unidos e no Brasil, é estimulativa, e vai na contramão da política monetária.

Arábia Saudita e Rússia, que têm nas mãos 40% da oferta atual de petróleo, decidiram cortar a produção quando o consumo chegou ao recorde de 101,8 milhões de barris por dia, apesar da desaceleração global e das dificuldades econômicas que contêm o crescimento da China. Com isso, os preços do tipo Brent chegaram a US$ 93,70, com alta de 25% em relação a junho. As cotações do diesel, influentes nos transportes e na agricultura, avançaram 20% em três meses. O momento para ampliar lucros dos produtores de petróleo é favorável: os estoques estão baixos e aproxima-se o inverno no Hemisfério Norte.

Os aumentos dos combustíveis atingiram o índice de preços ao consumidor dos Estados Unidos (CPI), que passou de 3,3% em julho para 3,7% em agosto. Os preços da energia cresceram 10,4% no mês passado, o que levou os preços ao produtor (PPI) a subirem 0,7%, a maior alta em um ano. O núcleo do CPI, que exclui energia e comida, fez o caminho contrário e caiu de 4,7% para 4%. A alta não será um problema caso as cotações não sigam subindo continuamente, mas um outro item muito sensível também se elevou. O núcleo de serviços não domésticos (alta de 0,5%, a maior desde janeiro), está sempre presente nos discursos de Jerome Powell, presidente do Fed, como uma prova convincente de que não há certeza de que a inflação esteja rumando para as metas.

A alta da energia encontra uma economia que reluta em desacelerar, apesar de aumento de 5 pontos percentuais na taxa de juros. A produção industrial subiu 0,4% em agosto ante julho, mesmo com uma queda de 5% na produção automobilística. As vendas no varejo avançaram 0,6%. O índice do gerente de compras (ISM) dos serviços subiu acima da previsão. A taxa de desemprego mantém-se a menor em décadas. O déficit público dos EUA deve ser este ano o dobro de 2022 (quando atingiu US$ 1,5 trilhão). O Federal Reserve se reúne nesta semana, com boa parte dos investidores considerando possível uma nova, e última, elevação dos juros, e outra parcela, maior, estimando sua manutenção em 5,5%.

Desde que o euro foi criado, em 2001, nunca os juros estiveram tão altos. O Banco Central Europeu elevou-os a 4% na quinta-feira, assim como fez com as estimativas de inflação do ano (de 5,4% para 5,6%) e de 2024 (de 3% para 3,2%), indicando que ela só se aproximará da meta (perto, mas inferior, a 2%) em 2025. A diferença em relação aos EUA é que a economia da zona do euro está desacelerando de fato - a previsão recuou de 0,9% para 0,7% este ano e de 1% no próximo. Ainda que a compensação pelos aumentos de energia para o consumidor tenha sido generosa, as exportações, um forte motor de crescimento, especialmente da Alemanha, estão em queda.

No Brasil, o IPCA de agosto, de 0,23%, ficou abaixo do esperado e trouxe sinais favoráveis. Os preços dos serviços diminuíram, assim como o núcleo dos serviços subjacentes, mais ligados ao comportamento do ciclo econômico. A alta do petróleo, se persistir, pode mudar um pouco o cenário positivo, ao pressionar a Petrobras para reajustar seus preços com certa urgência. O El Niño começa a provocar estragos no país e pode afetar a próxima safra, empurrando os preços dos alimentos para cima, assim como o fim do acordo entre Rússia e Ucrânia para liberar as exportações de grãos pelo Mar Negro.

Novas pressões de custos poderão ocorrer em uma economia que resiste trimestres a fio a seguir as previsões de desaceleração. O início do terceiro trimestre parece seguir o mesmo roteiro. O varejo restrito cresceu acima do esperado, 0,7%, com 5 dos 8 setores em alta. Em doze meses, o indicador subiu 1,6%, e o varejo ampliado (inclui veículos e construção), 2,6%. O setor de serviços cresceu 0,5% em julho, pelo terceiro mês consecutivo, e 4,5% no ano. Serviços correspondem a dois terços do PIB pelo lado da demanda. Eles estão sendo impulsionados pela recomposição dos salários, auxiliada pela inflação em queda, e pelo aumento do emprego.

A resistência da inflação é também nutrida por uma virada de R$ 151 bilhões no déficit do governo central (sete meses de 2023 ante mesmo período de 2022), mas o decisivo para o futuro é que os números indicam que a economia segue crescendo abaixo de seu potencial. Nesse caso, a inflação só terá um repique por choques inesperados (petróleo, por exemplo). Mas se ela estiver correndo acima desse potencial, tenderá a continuar excedendo a meta pelo menos até que as atividades econômicas esfriem de fato - o ritmo da política de corte de juros teria de ser revisto a curto prazo. Essa é uma das questões que o Copom deve revisitar em sua reunião de terça e quarta-feira.

Pior a emenda

Folha de S. Paulo

Ao propor alta da criminalização, Pacheco insiste em política de drogas falida

Enquanto o Supremo Tribunal Federal ensaia discreto avanço na política sobre drogas, com placar de 5 a 1 a favor da descriminalização do porte de maconha até agora, o presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indica retrocesso no tema que pode piorar a já calamitosa situação dos cárceres brasileiros sem ganho algum em segurança pública.

Pacheco apresentou na última quinta-feira (14) Proposta de Emenda à Constituição que criminaliza o porte e a posse de drogas, desconsiderando quantidade ou substância. O senador quer incluir no Artigo 5 da Constituição Federal, destinado a garantias e direitos fundamentais, um dispositivo que, na prática, consolida a arbitrariedade judicial e policial.

De acordo com o texto da PEC, "a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar".

Pacheco já escrevera para a Folha defendendo que cabe ao Poder Legislativo debater a política criminal, e não ao Judiciário. Mas a emenda é pior que o soneto.

O válido argumento de que cabe ao Congresso propor leis sobre o tema não pode servir como desculpa para retrocessos que violem os direitos dos usuários.

O Estado não deveria penalizar de forma paternalista o consumo pessoal de substância psicoativa, mesmo sob argumento de resguardar a saúde do usuário —até porque criminalizar não é proteção.

A emenda reforça a principal causa de prisão por crimes relacionados a entorpecentes desde a adoção, em 2006, da Lei de Drogas: a falta de critérios que diferenciem traficante de usuário, que impacta sobretudo negros e pobres.

Ao determinar que o crime ocorreria "independentemente da quantidade", a proposta retira do da lei qualquer resquício de proporcionalidade entre gravidade da conduta e sua punição.

Outro aspecto irrazoável está em expandir a proibição para quaisquer drogas, sem considerar a gravidade de seus efeitos atestada por pesquisas científicas.

Outros países, sobretudo os mais democráticos, têm substituído repressão penal por políticas focadas em saúde. Cerca de 30 nações tão diversas quanto Armênia, Bélgica, Chile e Quirguistão já descriminalizaram porte para uso pessoal. Não se seguiu qualquer caos social, nesses casos, que justifique o alarmismo da medida de Pacheco.

O tempo dos parlamentares seria mais bem aproveitado se debatessem formas de avançar a legislação brasileira além do entendimento por ora majoritário do STF. A política de drogas é questão de saúde, não de cadeia.

Alento de ocasião

Folha de S. Paulo

Datafolha mostra sensação de melhora na atividade, mas há inquietação com futuro

Os brasileiros reconhecem hoje alguma melhora nas condições econômicas, mas se mostram mais temerosos a respeito do futuro. É o que indica pesquisa do Datafolha.

A parcela da população que declara ver melhoria atingiu 35%, pico da série histórica, mesmo patamar de 34% em outubro do ano passado, mas bem acima do verificado nos dois levantamentos anteriores —26% em dezembro de 2022 e 23% em março deste ano.

O padrão se repete na pergunta a respeito da situação pessoal: os que relatam melhora caíram de 34% em dezembro para 23% em março, subindo agora para 30%.

É plausível que o pessimismo no início do ano refletisse tensões políticas, as incertezas mais altas quanto ao governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a inflação concentrada em itens de primeira necessidade, como alimentos, energia e combustíveis —o que onerava sobretudo pobres e classe média.

É também compreensível o alívio recente, dado o desempenho da economia superior ao esperado no início do ano, quando as projeções para o crescimento do Produto Interno Bruto estavam em 0,7%. Hoje se fala em 3%.

Há alguns fatores relevantes para o alento. O choque positivo no campo com a safra recorde, o aumento nas transferências sociais e a recuperação da renda disponível (com 5% de alta ante 2022) conforme amainou a inflação contribuem para os bons resultados recentes do consumo das famílias.

Mas há sensação de insegurança sobre a durabilidade dessas condições. Os juros ainda estão altos e tendem a desacelerar a atividade.

Tem crescido a parcela dos que esperam alta da inflação (de 39% em dezembro de 2022 para 54% em setembro), piora do poder de compra (de 1% para 33%) e aumento do desemprego (de 37% para 46%).

De modo geral, além disso, a parcela dos que esperam melhora na economia caiu de 62% em dezembro para 41% agora. Os que anteveem piora passaram de 13% para 28%, mesmo patamar do grupo que crê em estabilidade.

Preocupam sinais de polarização política. Entre eleitores de Jair Bolsonaro (PL), houve alta do pessimismo —de 43% para 52%. Entre quem votou em Lula, o índice dos que esperam que a economia vá melhorar passou de 79% para 66%.

A combinação de condições razoáveis no momento com certa insegurança futura são um alerta para o governo não desviar de prudência na gestão econômica.

Mais um capítulo da ficção orçamentária

O Estado de S. Paulo

Ano após ano, seja qual for o governo, o Orçamento traz receitas irreais e despesas subestimadas. É o resultado da sobreposição de regras que fazem com que a conta simplesmente não feche

A proposta de Orçamento apresentada ao Congresso já contava com certo otimismo no que diz respeito às receitas, mas ainda não se sabia que o governo estava imbuído desse mesmo tom esperançoso ao estimar as despesas previstas para o ano que vem. Reportagem publicada pelo Estadão mostrou que o valor atribuído ao pagamento de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) estaria subestimado em algo entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões.

Não é difícil chegar a essa conclusão. Basta considerar que o governo projetou um aumento de 5% nas despesas com a Previdência Social, desprezando o fato de que a mesma peça prevê um reajuste de 7,65% para o salário mínimo, piso que serve como referência na fixação dos pagamentos. A equipe econômica rejeitou essa tese e reafirmou a intenção de economizar até R$ 10 bilhões com a adoção de medidas para combater irregularidades no INSS, embora as filas apontem para uma demanda reprimida de 1,69 milhão de benefícios a serem concedidos.

Da mesma forma, o governo estimou gastos de R$ 169,5 bilhões com o Bolsa Família em 2024, embora as despesas com o programa devam chegar bem próximo ao patamar de R$ 180 bilhões neste ano. No caso do Bolsa Família, o pente-fino para apurar fraudes tem surtido um efeito bem menor que o inicialmente projetado. Em contrapartida, novas famílias incluídas neste ano reverteram, em parte, a economia gerada pela exclusão daquelas que se dividiam artificialmente para auferir dois benefícios.

Como já dissemos neste espaço, a reavaliação de práticas e processos internos deve ser parte de um esforço permanente do Estado para reduzir o índice de falhas na concessão desses benefícios. Afinal, uma vez aprovados, eles se tornam parte de despesas fixas e de caráter obrigatório da União – ou seja, não podem ser cortadas nem contingenciadas. Não é possível, no entanto, classificar este pente-fino como corte de gastos, demanda certamente indigesta, mas fundamental para colocar o Orçamento de pé no médio e longo prazos.

Isso não seria um problema tão grande, se as receitas com as quais o governo conta no ano que vem fossem minimamente realistas. Mas o fato é que não são. Construir maioria no Legislativo para aprovar a taxação das apostas esportivas, dos fundos exclusivos e das offshores já será bastante desafiador, mas, segundo a colunista Adriana Fernandes, até mesmo receitas que dependem apenas do próprio governo, como as relacionadas a concessões de infraestrutura, estariam infladas, considerando a carteira de projetos a serem leiloados em 2024.

Subestimar despesas fixas gera, como consequência, uma necessidade de aumentar o contingenciamento de gastos não obrigatórios para cumprir a meta fiscal. O termo que define a rubrica orçamentária não faz jus à sua relevância. Nela se incluem investimentos, cruciais para o crescimento econômico; emendas parlamentares, sem as quais o Executivo não consegue apoio suficiente para votar qualquer projeto; e dispêndios como faturas de água e energia, cuja inadimplência impede o funcionamento das estruturas físicas do governo.

Esse contexto faz do Orçamento, ano a ano, uma peça de ficção. Não há exatamente má-fé por parte da equipe que elabora a peça, mas o resultado da sobreposição de regras que impõem pisos mínimos, tetos máximos e reajustes indexados, passando por fundos e tipos de transferência cuja execução conta com o privilégio de estar livre de qualquer limite.

A realidade é que a conta simplesmente não fecha, sobretudo quando o objetivo anunciado é zerar o déficit fiscal de um ano para o outro sem realizar reformas estruturais. Diante de uma meta tão ambiciosa quanto irrealizável, cabe ao governo explorar as possibilidades de empoçamento e execução na boca do caixa, bem como os limites autorizados pelo arcabouço, para impedir que o buraco que já está contratado se amplie ainda mais. Ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, resta resistir a pressões de todos os lados para flexibilizar a meta, nem que isso se sustente apenas no discurso e no papel.

Petróleo: a hora de decidir é agora

O Estado de S. Paulo

Agência Internacional de Energia antecipa para antes de 2030 o pico de demanda por combustíveis fósseis; o governo tem de decidir já o que pretende fazer com reservas de petróleo do Brasil

Em artigo publicado no Financial Times, o diretor executivo da Agência Internacional de Energia (AIE), Fatih Birol, antecipa uma importante informação do relatório anual que será divulgado em outubro. O mundo está testemunhando o começo do fim da era dos combustíveis fósseis, que devem atingir o pico de demanda ainda nesta década para, em seguida, iniciar a curva declinante. É a primeira vez que a AIE prevê para antes de 2030 o auge da demanda.

Nos cenários traçados por Birol para os três principais combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão), uma peculiaridade chama a atenção: não são previstas quedas lineares de demanda, mas picos, quedas e patamares durante todo o trajeto de descida.

Por isso, políticas energéticas definidas mundo afora consideram a necessidade da manutenção de pesados investimentos no fornecimento de petróleo e gás.

Como um grande produtor, o Brasil precisa tomar uma decisão urgente sobre o que fazer com suas reservas de petróleo. Cientes de que a transição energética não é um processo disruptivo, com a substituição de fontes de energia num estalar de dedos, companhias produtoras de petróleo participam hoje de uma frenética busca por investimentos que justifiquem custos, riscos e prazos de execução, enquanto trabalham, internamente, em seus próprios planejamentos de transição.

A decisão política do Brasil não pode mais ser protelada, considerando que os trabalhos de exploração em campos marítimos de petróleo demoram entre seis e dez anos até o início da produção. Como não há exploração de novas fronteiras para repor as reservas do pré-sal – já em fase declinante –, não é exagero dizer que o País corre o risco de chegar ao ponto de pico de demanda previsto pela AIE como dependente de importação.

O que está acontecendo hoje pode se traduzir em um hiato na oferta interna em alguns anos. De acordo com monitoramento feito pela própria AIE, em junho o consumo mundial de petróleo atingiu a média de 103 milhões de barris por dia. As estimativas de mercado são de que, em 2050, essa demanda se reduza a algo em torno de 60 milhões de barris/dia. Uma queda forte, mas ainda assim um consumo gigante. Basta compará-lo ao recorde da produção brasileira, alcançado em julho: 4,4 milhões de barris/dia.

Hoje, a Bacia da Foz do Amazonas é o exemplo mais gritante do limbo em que o País se encontra, com o interminável cabo de guerra entre os Ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia. Mas há dezenas de outros casos. No mais recente, a Shell anunciou, em agosto, a desistência de quatro dos dez blocos adquiridos na Bacia de Barreirinhas, no Maranhão, também na chamada Margem Equatorial, pela dificuldade de obter licenciamento para o início da operação.

Quanto mais o tempo passa, mais custoso é o investimento. A antecipação do ponto de virada da transição energética foi atribuída por Birol a questões como o aumento espetacular da energia limpa, com uma frota mundial crescente de carros elétricos, especialmente na China. Ele admitiu, porém, que a procura por fontes alternativas de combustíveis será muito diferente em cada região e que ainda está previsto crescimento na demanda por petróleo em economias emergentes e em desenvolvimento.

O governo brasileiro está permitindo a criação de um vácuo que tem deixado o País em suspenso. A hora de decidir se serão permitidas novas atividades de exploração de petróleo é agora, sob o risco de invalidar investimentos num futuro próximo. Caso a decisão política seja a de deixar as reservas de petróleo onde estão, que isso fique claro, mesmo assumindo o duplo prejuízo de não transformar em capital esses recursos e de aumentar a dependência brasileira de fornecedores externos.

O mercado brasileiro não acompanha, como se sabe, a escalada de eletrificação veicular que vem sendo verificada em outras partes do mundo. A migração do maquinário industrial nacional para fontes mais limpas também é lenta. Já a tecnologia do petróleo no Brasil é uma das mais avançadas do mundo. Uma expertise que não pode ser jogada no lixo.

Mais autoritário, impossível

O Estado de S. Paulo

Ao ser acionada contra jornalista, a tal Procuradoria de Defesa da Democracia já diz a que veio

Quando o governo Lula anunciou a criação de um órgão para combater “a desinformação sobre políticas públicas” – a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, vinculada à Advocacia-Geral da União (AGU) –, este jornal criticou a iniciativa (ver o editorial O monopólio lulopetista da verdade, 5/1/2023). Não cabe ao governo definir o que é desinformação, menos ainda estabelecer o que é a verdade.

A medida do governo era uma evidente contradição. Com o objetivo oficial de defender a democracia, o órgão se propunha a realizar uma tarefa própria dos regimes autoritários: o estabelecimento pelo governante do que pode ser dito numa sociedade.

Recentemente, a pretensão autoritária materializou-se. O advogado-geral da União, Jorge Messias, determinou à Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia “a imediata instauração de procedimento contra a campanha de desinformação promovida pelo jornalista”. Referia-se a Alexandre Garcia que, no canal da revista Oeste, no YouTube, havia defendido a necessidade de investigar “que não foi só a chuva” a causa das enchentes no Rio Grande do Sul, mencionando a criação, na gestão estadual anterior do PT, de três represas “que aparentemente abriram as comportas ao mesmo tempo”.

A informação sobre suposta causa adicional foi desmentida pelo Estadão. Não existe a possibilidade aventada, uma vez que as hidrelétricas foram construídas com técnica que não interfere na vazão dos rios, apurou o jornal.

No entanto, a arbitrariedade da atuação da AGU não tem nenhuma relação se a hipótese aventada pelo jornalista era correta ou não. O ponto é prévio. Não cabe ao Executivo fazer o controle da informação numa sociedade livre. Não cabe ao Estado ter censores da verdade, que, como se pôde constatar agora, são usados apenas contra os inimigos do governo.

Desde janeiro, o presidente Lula e o PT difundiram diversas inverdades sobre questões públicas. Caso recente foi a reedição da historieta do golpe contra Dilma Rousseff, a partir da distorção do conteúdo de uma decisão judicial. Reconhecendo a condenação de Dilma Rousseff por crime de responsabilidade em razão das pedaladas fiscais, o juiz entendeu que não cabia uma dupla responsabilização. Absolveu-a sumariamente, sem entrar no mérito do caso. No entanto, Lula e o PT disseram que a sentença havia desautorizado o processo de impeachment. Não se viu a AGU agir para impedir a difusão de tal desinformação que, entre outros danos, ofende gravemente o Legislativo e o Judiciário.

Dizer que o Estado não é o censor da verdade não significa postular um regime de irresponsabilidade para o jornalismo. A imprensa responde juridicamente pelo que publica. Mas a análise dessa responsabilidade é feita a posteriori pelo Judiciário, com as garantias próprias de um processo judicial. Não é o Executivo, porque assim o quer, quem define o que pode ser dito. Isso não é democracia. É mais que hora de ser reconhecida a inconstitucionalidade da tal Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia.

 Uma armadilha diplomática

Correio Braziliense

"A reconstrução da imagem do Brasil diante do resto do mundo demanda um esforço conjunto"

A lista de atrocidades cometidas pelas forças russas na invasão da Ucrânia é longa. Desde fevereiro de 2022, quando os militares liderados pelo presidente Vladimir Putin entraram no país vizinho, as acusações incluem ataques a hospitais, tortura, estupro e assassinato de civis e de soldados inimigos rendidos. Mas nenhuma é tão séria quanto o envio de crianças ucranianas para a Rússia. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 16 mil meninos e meninas foram deportados contra sua vontade das áreas ocupadas pelos russos, majoritariamente da região do Donbass.

A situação é tão grave que levou Putin a ser condenado pelo Tribunal Penal Internacional, em Haia, nos Países Baixos. O órgão também emitiu uma ordem internacional de prisão para o presidente russo, decisão que deve ser cumprida por todos os signatários do Estatuto de Roma, o tratado internacional que fundou o TPI — incluindo aí o Brasil.

A decisão fez Putin restringir ainda mais sua mobilidade internacional, que já estava limitada após o início da invasão na Ucrânia. A ausência do presidente russo foi sentida na reunião da Cúpula do Brics — grupo de países que inclui Brasil, Índia, China e África do Sul, além da Rússia — em agosto, em Joanesburgo, e no encontro do G20, em setembro, em Nova Déli, na Índia. Pois foi nesse atoleiro que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu entrar.

Com o Brasil sediando o próximo encontro do G20, em julho do ano que vem, e após assumir a presidência do grupo, Lula achou por bem afirmar que Putin não seria preso caso decidisse ir ao Rio de Janeiro para a reunião de 2024. “Acredito que o Putin pode ir facilmente ao Brasil. Eu posso te dizer que, se eu sou o presidente do Brasil e se ele vem para o Brasil, não tem por que ele ser preso”, disse Lula, no encerramento do G20.

A fala, claro, caiu muito mal. O Tribunal de Haia reagiu e afirmou que o Brasil, por ser signatário, tem obrigação de cumprir suas determinações. Três dias depois, o petista recuou e disse que é a Justiça brasileira quem deveria decidir sobre uma eventual prisão de Putin. Ele ainda atacou o TPI, dizendo não entender os motivos de o Brasil ser parte do acordo — ratificado, segundo ele, apenas por países “bagrinhos” — e potências como EUA, China e a própria Rússia, não. Vale lembrar que o próprio Lula chegou a recorrer ao TPI quando estava preso em Curitiba.

Diante de uma situação cada vez mais complexa e delicada entre Rússia e Ucrânia, com um aprofundamento do apoio das nações ocidentais ao governo do presidente Volodymyr Zelensky, Putin hoje é visto por boa parte dos países do mundo como um personagem tóxico, que contamina tudo que toca e em crescente isolamento. Ao estender a mão, Lula, que é figura benquista na geopolítica internacional, queima parte de seu capital político e da boa vontade dos outros governos com o Brasil e sua gestão, e causa dificuldades para o corpo diplomático brasileiro, ocupado com a reconstrução das conexões internacionais que foram perdidas durante a conturbada gestão de Ernesto Araújo à frente da chancelaria.

A reconstrução da imagem do Brasil diante do resto do mundo demanda um esforço conjunto. A presença de Lula nos eventos globais é fundamental, mas é necessário confiar também nas medidas de sua equipe diplomática, para aprofundar o diálogo e a cooperação diante dos desafios complexos nas relações exteriores. É com uma contribuição para a estabilidade e a paz mundial que o país voltará a ser um ator respeitado e confiável no cenário internacional.

 

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