Resultado do Desenrola é incerto
O Globo
Governo prevê leilão para desconto em dívidas
enquanto Congresso ainda discute MP que criou o mecanismo
Expira no início da semana que vem a Medida
Provisória (MP) que criou o Desenrola
Brasil, programa do Ministério da Fazenda para renegociar dívidas de
pessoas físicas. Enquanto a MP ainda está em vigor, o governo prevê realizar
nesta semana o primeiro leilão de dívidas em que estarão disponíveis recursos
do Fundo Garantidor de Operações (FGO). Nele, os credores poderão oferecer
descontos aos devedores, e a diferença será coberta pelo Erário até o limite de
R$ 8 bilhões.
A meta do governo é limpar o nome de milhões de contribuintes na praça, para que voltem a obter crédito e possam ajudar a empurrar a economia pela via do consumo. Considerando as dívidas até R$ 5 mil, o estoque que poderá ser renegociado é de R$ 78,9 bilhões (ou 65,9 milhões de contratos). Se o limite das dívidas for de R$ 20 mil, o total soma R$ 161,3 bilhões, e o benefício poderia alcançar quase 33 milhões de brasileiros.
Numa primeira fase, sem cobertura do Erário,
1,5 milhão já renegociaram dívidas acima de R$ 100, e cerca de 6 milhões de
registros de pendências até R$ 100 nos bancos foram suspensos, segundo a
Febraban. Ao todo, o valor repactuado atingiu R$ 13,2 bilhões. Contando também
instituições fora da Febraban, o Ministério da Fazenda estima ter havido mais
contratos de até R$ 100 beneficiados, 10 milhões. Mesmo assim, o resultado está
abaixo da expectativa inicial e bem aquém dos 71,4 milhões de inadimplentes em julho.
A justificativa para o contribuinte arcar com
o perdão das dívidas agora é que o alívio estará disponível apenas a quem tenha
renda de até dois salários mínimos ou esteja inscrito no cadastro de programas
sociais do governo (CadÚnico) — para renegociar, contudo, será preciso estar
cadastrado nos níveis ouro ou prata do sistema gov.br. O resultado é incerto,
pois não se sabe o que o Congresso fará com a MP.
A Câmara incluiu no projeto encaminhado ao
Senado um prazo para emissores de cartão e varejistas apresentarem uma proposta
de regulação dos juros e encargos cobrados no crédito rotativo. Na ausência de
acordo, o texto prevê restringi-los a um teto. A mistura entre as duas
discussões — Desenrola e juro do cartão — desperta temores de que o projeto não
seja votado antes do prazo de expiração da MP.
Mesmo que os leilões do Desenrola sejam
bem-sucedidos, o efeito tende a ser temporário, pois nada impede os
beneficiados de, mais adiante, parar de pagar as prestações. A discussão sobre os
cartões, em contrapartida, tem alcance mais duradouro. Há pouca dúvida sobre a
necessidade de mudanças na regulação. Em dois anos, as dívidas com cartão mais
que duplicaram, e a inadimplência passou de 26,6% para 49%. “A indústria de
cartões é uma máquina de produzir endividados”, diz o economista Lauro
Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão
Financeira da FGV. Mas não necessariamente limitar os juros será a melhor
solução. É preciso estabelecer regras que inibam a tentação do consumo fácil,
mas, ao mesmo tempo, preservem a saúde das empresas que oferecem crédito.
Trabalho por aplicativo não pode ser regido
por velhas regras da CLT
O Globo
Decisão judicial que obriga Uber a reconhecer
vínculo empregatício não condiz com realidade do setor
Uma decisão
recente da 4ª Vara da Justiça de Trabalho de São Paulo condenou
o aplicativo de transporte Uber a
pagar multa de R$1 bilhão e a reconhecer vínculo empregatício com todo
motorista que o use. Movida pelo Ministério Público do Trabalho de São Paulo, a
ação pretende enquadrar na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) uma ocupação
que se caracteriza pela flexibilidade e deveria ser regida por outras regras.
Não se trata de questionar a legitimidade da
demanda dos motoristas de aplicativos, muitas vezes sujeitos a jornadas
extenuantes, sem garantia de cobertura previdenciária, direitos trabalhistas ou
qualquer tipo de proteção social. Mas a Justiça trabalhista precisa entender a
nova realidade. Não é de hoje que o mundo digital altera a forma como se
trabalha, pondo em xeque regras adotadas noutros tempos, para outro tipo de
trabalho.
É certo que alguma garantia social precisa
existir para novos mercados de trabalho, como os formados pelos motoristas ou
pelos entregadores que prestam serviço por meio de aplicativos. A própria
Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, que reúne as empresas do
setor, reconhece a necessidade de incluí-los de alguma forma na Previdência
Social. Mas isso não significa vinculá-los à velha CLT.
Não é por acaso que tribunais de segunda
instância ou o Tribunal Superior do Trabalho (TST) têm derrubado decisões como
a da Justiça paulista. Qualquer um que tenha carro e deseje auferir renda como
motorista pode usar a plataforma do Uber ou dos concorrentes. Não há vínculo
empregatício exclusivo de uma empresa com seus motoristas. Instaurar um vínculo
convencional, com jornada diária fixa, os impediria de trabalhar apenas nos
horários de maior procura, quando as corridas são mais caras, beneficiando-se
da maior demanda. Quando a Espanha tentou fazer algo do tipo, não deu certo,
pois os próprios motoristas preferiram manter a flexibilidade. O maior erro é
imaginar que existem patrões e empregados no trabalho por aplicativo.
Logo que surgiu, o Uber impôs desafios ao
modelo tradicional de transporte individual. A primeira reação veio de
taxistas. Ao fim, eles tiveram de se adaptar. A oferta de corridas por
aplicativo se consolidou e é hoje adotada não apenas por Uber e congêneres, mas
por táxis em quase todas as cidades. Criou-se no mercado uma competição
saudável, em que é possível escolher o tipo de veículo, avaliar o motorista e
pagar preços compatíveis com a oferta e a demanda num determinado momento. Tudo
isso foi pioneirismo do Uber.
No primeiro semestre, o governo criou um
grupo de trabalho com representantes de motoristas e empresas de aplicativo
para formular uma proposta de regulamentação do trabalho no setor. Foi uma
iniciativa bem-vinda. O Ministério do Trabalho informou que pretende chegar a
um acordo até o o final deste mês. Se obtiver sucesso, será fundamental que
depois o Congresso debata a proposta. Caberá aos parlamentares adequar a
legislação brasileira aos novos tempos. E, ao Judiciário, entender que o mundo
mudou.
Sabesp à venda
Folha de S. Paulo
Privatização da empresa paulista deve
facilitar investimentos e universalização
Mesmo diante da resistência retrógrada do
governo federal, vão avançando em vários estados as privatizações e concessões
na área de saneamento, facilitadas
pelo novo marco regulatório que prevê a universalização da coleta de água e
tratamento de esgoto até 2033.
Tal objetivo demandará investimentos de cerca
de R$ 700 bilhões no país, que não serão possíveis sem a participação do setor
privado. Há diferentes caminhos possíveis —venda de empresas estatais,
concessão da exploração de serviços e parcerias público-privadas são
alternativas para atender as realidades locais.
Entre as muitas operações em andamento, a de maior
dimensão é a que será aplicada à Sabesp, a empresa do governo paulista que
opera em 370 dos 645 municípios do estado, abrangendo cerca de 28 milhões de
pessoas.
Eleito com a promessa de promover a
privatização da companhia, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) dá
sinais de que pretende fazê-lo ainda na primeira metade de seu mandato.
Um passo fundamental foi dado em agosto com a
adesão da capital à unidade regional de atendimento 1, que abrange os
municípios com contratos vigentes com a estatal. Há outras três unidades,
criadas pela administração estadual em 2021 conforme determinação do marco do
saneamento.
Como a cidade de São Paulo responde por quase
metade do faturamento da empresa, sem sua adesão não seria possível avançar com
a privatização. Agora, com todos os municípios reunidos, apenas um novo
contrato precisará ser celebrado e aprovado no âmbito do conselho da unidade 1.
Apesar de ser boa notícia, a decisão
súbita do prefeito Ricardo Nunes (MDB) não deixou de causar espécie.
O prazo de adesão vencera em 2022, mas foi prorrogado por seis meses,
permitindo a assinatura do emedebista —que pretende obter o apoio do governador
à sua reeleição em 2024.
Ainda neste ano deve ser enviado à Assembleia
Legislativa o projeto de lei que detalhará o modelo da venda de parte da
participação do governo paulista no capital da Sabesp, hoje de 50,3%.
A operação buscará garantir pelo menos R$ 66
bilhões em investimentos para antecipar a universalização de 2033 para 2029.
Deverão ser garantidos os aportes nos municípios menores; cumpre buscar um
modelo regulatório que prime por ganhos de eficiência e mantenha a modicidade
tarifária.
A Sabesp já figura entre as maiores empresas
de saneamento do mundo e adiante poderá se firmar como a principal plataforma
de expansão de investimentos no setor, em São Paulo e outros estados. Cumpre
agora assegurar o caráter democrático e transparente do processo, visando sua
conclusão.
Câmeras integradas
Folha de S. Paulo
Relatório apresenta diretrizes para
consolidar uso da tecnologia pelas polícias
Entre 2021 e 2023, o número de estados
brasileiros com programas de câmeras corporais em suas polícias se elevou de
3 para apenas 7. Tal lentidão indica que a implementação da
ferramenta exige esforço político e planejamento técnico.
Relatório elaborado por Robson Cabanas Duque,
ex-gerente do programa da Polícia Militar de São Paulo, e pelo Instituto Sou da
Paz mostra que as vantagens
do emprego das câmeras precisam estar claras para os policiais, a
fim de que haja convencimento sobre a importância da medida para o trabalho das
forças de segurança.
O texto elenca diversos benefícios, como
incremento da produção de prova material, redução de indicadores criminais,
diminuição de denúncias e reclamações contra agentes, afirmação da cultura
profissional com a diminuição do uso da força letal e aprimoramento do
treinamento, entre outros.
As melhorias são atestadas por números. Em
São Paulo, não somente houve redução de óbitos em decorrência de intervenção
policial como a morte de PMs em serviço atingiu o menor índice dos últimos 31
anos em 2021, quando a política foi implementada no estado.
Defender o uso da tecnologia como forma de
profissionalização das polícias pode ajudar a convencê-las de sua importância,
evitando que haja intermitências na implementação a depender do humor político
de ocasião.
Governadores, secretários e comandantes devem
explicitar o compromisso com a medida. Ademais, não basta a instalação da
ferramenta, é preciso acompanhamento técnico, como a criação de indicadores de
avaliação e de metodologia de uso dos vídeos em treinamentos policiais.
A implantação de câmeras pelas forças
policiais federais, que tem sido aventada pelo governo, poderia contribuir como
exemplo. O incentivo por meio de recursos e orientação técnica aos estados é
outra ação importante que está sob análise pelo Ministério da Justiça.
Apesar de não se tratar de panaceia, já que a
segurança pública é tema multifatorial, as câmeras tem aprimorado o trabalho
das polícias e protegido a população.
O que o relatório mostra é que a mudança da cultura interna de forças de segurança propensas à violência requer a integração da tecnologia à profissionalização da atuação policial, com convencimento, planejamento e incentivo.
Por uma PGR normal
O Estado de S. Paulo
O País espera do presidente e do Senado um
procurador-geral avesso aos extremos do jacobinismo e do servilismo que têm
desviado o MP da defesa do direito e da democracia
À medida que o mandato do procurador-geral da
República, Augusto Aras, se aproxima do fim e as disputas palacianas fervilham
nos corredores do Brasília, o Brasil cruza os dedos por um mandatário capaz de
reconduzir as águas ao seu leito. A Constituição conferiu ao Ministério Público
independência e prerrogativas para a “defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Mas as
perversões da Procuradoria-Geral, ora abusando de seus poderes, ora omitindo-se
de seus deveres, contribuíram não pouco para a insegurança jurídica, a
polarização política e a desmoralização institucional que corroem a República.
Considere-se o 8 de Janeiro. A maior agressão
ao Estado Democrático de Direito desde a redemocratização não foi um raio em
céu azul, mas uma tempestade perfeita diligentemente fabricada por quatro anos
no Planalto. Os ataques ao sistema eleitoral que levaram à condenação de Jair
Bolsonaro pela Justiça Eleitoral começaram já em 2020. Por ocasião do 7 de
Setembro de 2021, a Polícia Federal relatou indícios de uma conspirata para
invadir o Supremo e o Congresso. A farsa se repetiu como tragédia em 2023.
Entrementes, Aras só tirava a cabeça do
avestruz do buraco para tentar convencer a população de que as nuvens pretas no
firmamento de Brasília eram mera ilusão de ótica num céu de brigadeiro. Fossem
os ataques às instituições, fossem as investigações da CPI da Covid ou os
indícios de corrupção na saúde e educação, tudo recebia o mesmo e monótono
destino: uns “procedimentos preliminares” para cumprir tabela, logo sepultados
na gaveta do procurador-geral para gozar de seu descanso eterno.
Ao indicar Aras, Bolsonaro disse que ele
seria a “rainha” no xadrez de seu governo, ou seja, a peça mais poderosa na
defesa do “rei” e no ataque a seus desafetos. Agora que as eleições viraram a
mesa, Aras afanou-se em cortejar o novo rei.
Contraste-se essa atitude com a de Rodrigo
Janot (2013-17), que no jogo de xadrez era o pombo – aquele que joga todas as
peças para fora do tabuleiro. No pico da euforia lavajatista, Janot investiu-se
de um figurino messiânico, como se a única missão do Ministério Público fosse
purgar a política da corrupção ou, antes, purgar a República dos políticos.
Para quem tem um martelo, tudo é prego, e nas mãos de Janot todo e qualquer
meio – investigações imprecisas e infindáveis, delações inverossímeis, atuações
midiáticas ou intromissões na esfera administrativa – era justificado por seus
fins redentores. O País paga até hoje pelas denúncias ineptas e maliciosas que
sabotaram a gestão de Michel Temer e lanharam a credibilidade do STF.
Ao cair das cortinas, o rei não só estava nu,
mas ensandecido. A sociedade se deu conta de que seu Ministério Público fora
comandado por um maníaco, não só no sentido figurado, mas literal, quando o
próprio Janot confessou que entrou armado no STF para executar um ministro e
estourar seus miolos.
Aras foi empossado prometendo corrigir abusos
ativistas. Mas moveu-se ao outro extremo, e o resto é história. Como já
dissemos neste espaço, comparando a sua gestão à de Janot: “Antes, bastava uma
delação para perseguir e prender pessoas, inclusive um presidente da República.
Agora, meses de trabalho do Senado, com a reunião de sérios indícios, são
incapazes de mover a PGR. As duas situações, no entanto, padecem do mesmo erro:
o abandono da lei. Em ambas, o processo penal foi substituído pela simples
‘convicção’, pela mera vontade – ora de condenar, ora de perdoar” (ver o
editorial Os extremos do Ministério Público, de 11/2/2022).
Nem um extremo nem outro. A virtude, dizia
Aristóteles, está no meio, entre vícios opostos, como a coragem entre a
covardia e a temeridade. O País não precisa nem de um novo Janot nem de um novo
Aras (muito menos do mesmo Aras), mas do oposto de ambos. Nem jacobinismo nem
servilismo; nem antagonismo ao poder nem alinhamento a ele; nem punitivismo nem
garantismo; nem histeria nem apatia; nem alarmismo nem negacionismo; nem um
algoz de políticos nem o seu servo – só um servo da lei, algoz daqueles que a
violam. Será pedir demais?
A desorganização das Nações Unidas
O Estado de S. Paulo
A tecnologia aproximou os humanos como nunca.
Mas, com falhas estruturais agravadas pelas contingências, o órgão de
governança global arrisca-se a se tornar irrelevante como nunca
O século 21 nasceu com imensos desafios existenciais:
um mundo multipolarizado após a bipolaridade da guerra fria; uma população que,
após crescer vertiginosamente, está se estagnando e envelhecendo; as mudanças
climáticas; a quarta revolução industrial; ondas migratórias; o terrorismo e as
organizações criminosas; a proliferação nuclear; a fome, a miséria, as
violações dos direitos humanos; as tensões entre países ricos e pobres,
democráticos e autocráticos, ocidentais e orientais.
Por quase 80 anos, a Assembleia-Geral da
Organização das Nações Unidas foi o principal fórum onde as lideranças
internacionais se uniam para deliberar sobre esses e outros desafios.
Paradoxalmente, quando essa união é necessária como nunca, a Assembleia de 2023
esteve esvaziada como nunca.
A ausência de quatro dos cinco líderes do
Conselho de Segurança fala por si. Após invadir a Ucrânia, o russo Vladimir
Putin se entrincheirou no Kremlin. Por um paradoxo aparente, num momento em que
a China intensifica suas investidas diplomáticas, buscando liderar o Sul Global
e reformular a ordem internacional, Xi Jinping foi também uma ausência ilustre.
Mais surpreendente foi a falta, impensável há poucos anos, dos líderes da
França e do Reino Unido. Só o americano Joe Biden marcou presença – de resto
incontornável, dado que a Assembleia acontece em Nova York.
A crise de identidade da ONU tem raízes
estruturais. “Suas estruturas mudaram pouco desde 1945. Paradoxalmente, sua
tendência congênita à inclusão gerou disparidades ainda não sanadas. Cada voto
dos 193 membros da Assembleia-Geral vale o mesmo – o da Índia (1,4 bilhão de
pessoas) tanto quanto o de Tuvalu (12 mil)”, notou este jornal nos 75 anos da
ONU, em 2020. “Suas distorções representativas, sobrecarregadas por uma
burocracia exasperante, obstruem a meritocracia e a defesa dos direitos humanos
contra a ilegalidade internacional, a miséria ou governos corruptos e cruéis”
(ver o editorial A ONU aos 75 anos, de 24/6/2020).
O próprio Conselho de Segurança ilustra essas
disfunções. Ele inclui só 8% dos membros da ONU. Os cinco permanentes com poder
de veto são os mesmos que triunfaram na 2.ª Guerra, e não há representantes da
América Latina, África, Oriente Médio ou Sul da Ásia.
Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável
para 2030 não estão passando no teste da realidade e precisam ser
hierarquizados e readequados a padrões mais pragmáticos. Instituições
multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial ou a OMC, têm sua legitimidade
contestada e precisam urgentemente de reformas.
A apatia da ONU e órgãos multilaterais afins
é, em parte, causa e sintoma dos novos dramas que intensificaram os desafios
congênitos do século 21: os impactos da crise financeira de 2008 e a
necessidade de prevenir outras, assim como as sequelas da covid-19 e a
necessidade de prevenir outras pandemias; a desregulação de tecnologias com
inacreditável poder de transformação e destruição, como a engenharia genética
ou a inteligência artificial; a proliferação dos protecionismos; a polarização
e a deterioração institucional nas democracias e o recrudescimento das autocracias;
e os impactos socioeconômicos de um conflito na Europa com potencial de
precipitar uma terceira guerra mundial. Como o próprio secretário-geral da ONU,
António Guterres, admitiu na Assembleia, o mundo mudou, mas as instituições
internacionais não mantiveram o passo, potencialmente tornando-se parte do
problema, e não da solução. “É reforma ou ruptura”, alertou.
Num mundo em que a tecnologia implode
barreiras que separam a humanidade há milênios, um globalismo sadio – não as
quimeras de um mundo sem fronteiras ou Estados nacionais que povoam os
pesadelos de nacionalistas radicais ou os delírios de idealistas
inconsistentes, mas o engajamento da humanidade, através da valorização e
cooperação de suas nações, em interesses e obrigações comuns – é não só desejável,
mas indispensável.
A ONU é, em tese, relevante como nunca. Mas
se, na prática, as nações não concertarem fórmulas para rejuvenescê-la, o
paradoxo é que ela caminhará para se tornar irrelevante como nunca.
A persistente inadimplência
O Estado de S. Paulo
Enquanto questões de fundo não forem
enfrentadas, renegociar dívidas será enxugar gelo
As dívidas dos brasileiros com contas de
energia elétrica, água, gás e telefone atingiram o patamar de 24,47% do total
em agosto, segundo dados do Mapa de Inadimplência e Renegociação de Dívidas da
Serasa. É o maior nível registrado em toda a série histórica do levantamento da
empresa.
O resultado não chega a surpreender. Afinal,
a primeira fase do programa de renegociação de dívidas lançado pelo governo, o
Desenrola, teve como foco os débitos de pessoas físicas com bancos e cartões.
Era até esperado, portanto, que as dívidas com serviços essenciais subissem um
pouco mais nesse período.
Em apenas dois meses de Desenrola, R$ 13,2
bilhões em débitos foram renegociados, segundo balanço da Federação Brasileira
de Bancos (Febraban). Cerca de 6 milhões de brasileiros ficaram com o nome
limpo na praça e voltaram a ter acesso a crédito.
Os dados da Serasa mostram, no entanto, que
reduzir o endividamento do brasileiro não é algo simples de ser resolvido.
Depois de recuar por dois meses consecutivos, a inadimplência voltou a subir em
agosto. Mais de 320 mil devedores ficaram com o nome sujo, ampliando o universo
de inadimplentes para 71,74 milhões de pessoas.
Não seria nenhum exagero concluir, portanto,
que os brasileiros estão escolhendo quais contas pagar em cada mês. Deixar de
pagar faturas de água e energia implica cortes no fornecimento do serviço, mas
não de forma imediata. No caso da energia elétrica, somente após 90 dias de
atraso as distribuidoras podem suspender o fornecimento. Além disso, multas e
juros são limitados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Sem dúvida alguma, é um cenário menos
desconfortável do que aquele em que o consumidor atrasa o pagamento da fatura
do cartão de crédito. No crédito rotativo, linha a que os clientes recorrem
quando não conseguem pagar o valor integral da fatura, a dívida pode dobrar em
apenas um ano. Segundo a Serasa, mais da metade dos consumidores inadimplentes
possui três cartões de crédito ou mais.
Na guerra pública entre os bancos e as
maquininhas sobre o parcelamento sem juros, até agora não há qualquer proposta
para impor novas regras para o rotativo. Enquanto isso, a medida provisória que
criou o Desenrola vence em 3 de outubro.
Há um projeto de lei com o mesmo teor
tramitando em regime de urgência no Senado, mas o relator, Rodrigo Cunha
(Podemos-AL), não prevê submeter o parecer a votação antes desse prazo. O tema
requer pressa, mas o senador propôs uma reflexão bastante pertinente. “Como é
que uma pessoa que recebe um salário mínimo tem um limite no cartão de crédito
de R$ 12 mil?”, questionou, em entrevista à Folha.
De fato, há que pensar sobre as consequências do acesso facilitado ao crédito, modelo de negócios bastante praticado no setor. As mesmas empresas que não cobram taxas na abertura das contas nem anuidade para os cartões não hesitam em impor juros escorchantes ao primeiro tropeço do consumidor. Enquanto essas questões não forem enfrentadas com seriedade, iniciativas como o Desenrola serão o mesmo que enxugar gelo.
O novo consenso de Washington, protecionista
e nacionalista
Valor Econômico
O argumento da segurança estratégica
ratificou a retomada do protecionismo e da adoção de medidas de política
industrial
A União Europeia (UE) lançou neste mês uma
investigação sobre a importação de veículos elétricos chineses, suspeitos de se
beneficiarem de apoio estatal de Pequim. Nos EUA, Donald Trump, que tenta
voltar à Presidência, ameaça fazer uma nova onda de aumento de tarifas
externas. Na abertura da Assembleia-Geral da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva atacou o neoliberalismo. Isso tudo indica como uma nova ordem
econômica mundial está avançando com força.
Durante mais de 30 anos, a partir da década
de 80, o livre comércio foi o motor da economia mundial. Abertura comercial e
redução do papel do Estado na economia se tornaram princípios amplamente
aceitos. Acordos comerciais se disseminaram. A Organização Mundial do Comércio
foi criada para favorecer e vigiar esse processo. Protecionismo e políticas
industriais viraram anátemas, apesar de nunca terem sido totalmente postos de
lado.
Há alguns anos esse processo começou a andar
para trás. O crescente clima de disputa entre EUA e China e a pandemia de
covid-19 aceleraram esse refluxo. Mas o mal-estar era anterior. A aprovação do
Brexit pelo Reino Unido, em 2016, já indicava uma insatisfação crescente. A
eleição de Donald Trump nos EUA foi a coroação do discurso antiglobalista.
Esse recuo não dá sinais de perder ritmo.
Pelo contrário. O presidente Joe Biden não só manteve a maioria das tarifas
comerciais de Trump como também aprovou em 2022 enorme pacote de incentivo à
indústria, com o objetivo declarado de trazer produção industrial de volta aos
EUA.
A tensão crescente entre EUA e China, num
clima de nova Guerra Fria, vem reforçando o processo de desglobalização.
Afinal, um confronto estratégico é incompatível com o livre comércio. Qualquer
vantagem tecnológica de um lado será recebida com um esforço do outro lado para
recuperar terreno, seja na forma de protecionismo, seja com políticas
industriais para favorecer a produção local.
Do mesmo modo, produtos, serviços e ativos de
interesse estratégico serão cada vezes mais protegidos, para dificultar o
desenvolvimento do adversário. É o que os EUA estão fazendo com a proibição de
exportação de chips de alta tecnologia para a China. Do mesmo modo, a China
ameaça de modo recorrente barrar a exportação de terras raras (metais de grande
valor para a indústria).
A pandemia exacerbou essa percepção, já que
itens como material hospitalar e vacinas se tornaram de interesse estratégico.
À custa de sua população, a China não aprovou a utilização de nenhuma vacina
ocidental.
A guerra na Ucrânia colocou uma grande
barreira à ideia de permitir que a produção flua livremente pelo mundo. A
Rússia usou o gás como arma para tentar barrar o apoio da UE à Ucrânia. A
Alemanha, que havia apostado alto na energia russa barata para mover seu
complexo industrial, será a única grande economia em recessão neste ano. Do
mesmo modo, o Ocidente cortou a Rússia do Swift, sistema global de compensações
bancárias.
O argumento da segurança estratégica
ratificou a retomada do protecionismo e da adoção de medidas de política
industrial, como subsídios e outros benefícios para produção local. Decoupling
(descolamento), nearshoring (trazer a produção para perto de casa),
friendshoring (trazer a produção para países amigos) e de-risking (reduzir
riscos na produção, como produzir demais num só país ou produzir num país que
pode se tornar inimigo) passaram a ser as prioridades dos governos e das
empresas. Muitos temem a formação de duas cadeias de produção separadas, uma
para o Ocidente e seus aliados e outra para a China e seus aliados.
Tudo isso tem sido tema de intenso debate.
Num seminário em julho, o economista Larry Summers (secretário do Tesouro de
Bill Clinton e assessor econômico de Barack Obama) criticou Biden por se
desviar da liberalização comercial adotada por esses dois presidentes
democratas e se disse “profundamente preocupado pela doutrina de nacionalismo
econômico centrado na indústria que está sendo cada vez mais adotada como
princípio geral em Washington”, a que ele chamou de “perigosa”.
Em resposta, Robert Reich (secretário do
Trabalho no governo Clinton) escreveu (The Guardian, 29/08) que a liberalização
comercial trouxe bens baratos, mas favoreceu as empresas e o setor financeiro
enquanto destruía milhões de empregos e mantinha os salários estagnados nos EUA.
O discurso do presidente Lula na ONU ecoou esse argumento.
Para o Brasil esse debate tem implicações
importantes, pois pode afetar a inserção global do país. Lula parece simpatizar
com o crescente protecionismo (reluta em avançar no acordo UE-Mercosul) e com a
reabilitação de medidas de política industrial que ele sempre defendeu. Já o
candidato favorito para presidir a Argentina, Javier Milei, defende uma
abertura comercial unilateral e irrestrita, ecoando o discurso neoliberal.
Um novo consenso parece estar emanando de
Washington, menos liberal e mais protecionista, menos globalizador e mais
nacionalista. Haverá oportunidades, como a de atrair parte da produção de
empresas ocidentais que pode deixar a China. Mas também haverá riscos, já que o
Brasil não consegue competir com as nações mais ricas em subsídios e apoio a
suas empresas.
Exatamente!
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