segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Resultado do Desenrola é incerto

O Globo

Governo prevê leilão para desconto em dívidas enquanto Congresso ainda discute MP que criou o mecanismo

Expira no início da semana que vem a Medida Provisória (MP) que criou o Desenrola Brasil, programa do Ministério da Fazenda para renegociar dívidas de pessoas físicas. Enquanto a MP ainda está em vigor, o governo prevê realizar nesta semana o primeiro leilão de dívidas em que estarão disponíveis recursos do Fundo Garantidor de Operações (FGO). Nele, os credores poderão oferecer descontos aos devedores, e a diferença será coberta pelo Erário até o limite de R$ 8 bilhões.

A meta do governo é limpar o nome de milhões de contribuintes na praça, para que voltem a obter crédito e possam ajudar a empurrar a economia pela via do consumo. Considerando as dívidas até R$ 5 mil, o estoque que poderá ser renegociado é de R$ 78,9 bilhões (ou 65,9 milhões de contratos). Se o limite das dívidas for de R$ 20 mil, o total soma R$ 161,3 bilhões, e o benefício poderia alcançar quase 33 milhões de brasileiros.

Numa primeira fase, sem cobertura do Erário, 1,5 milhão já renegociaram dívidas acima de R$ 100, e cerca de 6 milhões de registros de pendências até R$ 100 nos bancos foram suspensos, segundo a Febraban. Ao todo, o valor repactuado atingiu R$ 13,2 bilhões. Contando também instituições fora da Febraban, o Ministério da Fazenda estima ter havido mais contratos de até R$ 100 beneficiados, 10 milhões. Mesmo assim, o resultado está abaixo da expectativa inicial e bem aquém dos 71,4 milhões de inadimplentes em julho.

A justificativa para o contribuinte arcar com o perdão das dívidas agora é que o alívio estará disponível apenas a quem tenha renda de até dois salários mínimos ou esteja inscrito no cadastro de programas sociais do governo (CadÚnico) — para renegociar, contudo, será preciso estar cadastrado nos níveis ouro ou prata do sistema gov.br. O resultado é incerto, pois não se sabe o que o Congresso fará com a MP.

A Câmara incluiu no projeto encaminhado ao Senado um prazo para emissores de cartão e varejistas apresentarem uma proposta de regulação dos juros e encargos cobrados no crédito rotativo. Na ausência de acordo, o texto prevê restringi-los a um teto. A mistura entre as duas discussões — Desenrola e juro do cartão — desperta temores de que o projeto não seja votado antes do prazo de expiração da MP.

Mesmo que os leilões do Desenrola sejam bem-sucedidos, o efeito tende a ser temporário, pois nada impede os beneficiados de, mais adiante, parar de pagar as prestações. A discussão sobre os cartões, em contrapartida, tem alcance mais duradouro. Há pouca dúvida sobre a necessidade de mudanças na regulação. Em dois anos, as dívidas com cartão mais que duplicaram, e a inadimplência passou de 26,6% para 49%. “A indústria de cartões é uma máquina de produzir endividados”, diz o economista Lauro Gonzalez, coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV. Mas não necessariamente limitar os juros será a melhor solução. É preciso estabelecer regras que inibam a tentação do consumo fácil, mas, ao mesmo tempo, preservem a saúde das empresas que oferecem crédito.

Trabalho por aplicativo não pode ser regido por velhas regras da CLT

O Globo

Decisão judicial que obriga Uber a reconhecer vínculo empregatício não condiz com realidade do setor

Uma decisão recente da 4ª Vara da Justiça de Trabalho de São Paulo condenou o aplicativo de transporte Uber a pagar multa de R$1 bilhão e a reconhecer vínculo empregatício com todo motorista que o use. Movida pelo Ministério Público do Trabalho de São Paulo, a ação pretende enquadrar na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) uma ocupação que se caracteriza pela flexibilidade e deveria ser regida por outras regras.

Não se trata de questionar a legitimidade da demanda dos motoristas de aplicativos, muitas vezes sujeitos a jornadas extenuantes, sem garantia de cobertura previdenciária, direitos trabalhistas ou qualquer tipo de proteção social. Mas a Justiça trabalhista precisa entender a nova realidade. Não é de hoje que o mundo digital altera a forma como se trabalha, pondo em xeque regras adotadas noutros tempos, para outro tipo de trabalho.

É certo que alguma garantia social precisa existir para novos mercados de trabalho, como os formados pelos motoristas ou pelos entregadores que prestam serviço por meio de aplicativos. A própria Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, que reúne as empresas do setor, reconhece a necessidade de incluí-los de alguma forma na Previdência Social. Mas isso não significa vinculá-los à velha CLT.

Não é por acaso que tribunais de segunda instância ou o Tribunal Superior do Trabalho (TST) têm derrubado decisões como a da Justiça paulista. Qualquer um que tenha carro e deseje auferir renda como motorista pode usar a plataforma do Uber ou dos concorrentes. Não há vínculo empregatício exclusivo de uma empresa com seus motoristas. Instaurar um vínculo convencional, com jornada diária fixa, os impediria de trabalhar apenas nos horários de maior procura, quando as corridas são mais caras, beneficiando-se da maior demanda. Quando a Espanha tentou fazer algo do tipo, não deu certo, pois os próprios motoristas preferiram manter a flexibilidade. O maior erro é imaginar que existem patrões e empregados no trabalho por aplicativo.

Logo que surgiu, o Uber impôs desafios ao modelo tradicional de transporte individual. A primeira reação veio de taxistas. Ao fim, eles tiveram de se adaptar. A oferta de corridas por aplicativo se consolidou e é hoje adotada não apenas por Uber e congêneres, mas por táxis em quase todas as cidades. Criou-se no mercado uma competição saudável, em que é possível escolher o tipo de veículo, avaliar o motorista e pagar preços compatíveis com a oferta e a demanda num determinado momento. Tudo isso foi pioneirismo do Uber.

No primeiro semestre, o governo criou um grupo de trabalho com representantes de motoristas e empresas de aplicativo para formular uma proposta de regulamentação do trabalho no setor. Foi uma iniciativa bem-vinda. O Ministério do Trabalho informou que pretende chegar a um acordo até o o final deste mês. Se obtiver sucesso, será fundamental que depois o Congresso debata a proposta. Caberá aos parlamentares adequar a legislação brasileira aos novos tempos. E, ao Judiciário, entender que o mundo mudou.

Sabesp à venda

Folha de S. Paulo

Privatização da empresa paulista deve facilitar investimentos e universalização

Mesmo diante da resistência retrógrada do governo federal, vão avançando em vários estados as privatizações e concessões na área de saneamento, facilitadas pelo novo marco regulatório que prevê a universalização da coleta de água e tratamento de esgoto até 2033.

Tal objetivo demandará investimentos de cerca de R$ 700 bilhões no país, que não serão possíveis sem a participação do setor privado. Há diferentes caminhos possíveis —venda de empresas estatais, concessão da exploração de serviços e parcerias público-privadas são alternativas para atender as realidades locais.

Entre as muitas operações em andamento, a de maior dimensão é a que será aplicada à Sabesp, a empresa do governo paulista que opera em 370 dos 645 municípios do estado, abrangendo cerca de 28 milhões de pessoas.

Eleito com a promessa de promover a privatização da companhia, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) dá sinais de que pretende fazê-lo ainda na primeira metade de seu mandato.

Um passo fundamental foi dado em agosto com a adesão da capital à unidade regional de atendimento 1, que abrange os municípios com contratos vigentes com a estatal. Há outras três unidades, criadas pela administração estadual em 2021 conforme determinação do marco do saneamento.

Como a cidade de São Paulo responde por quase metade do faturamento da empresa, sem sua adesão não seria possível avançar com a privatização. Agora, com todos os municípios reunidos, apenas um novo contrato precisará ser celebrado e aprovado no âmbito do conselho da unidade 1.

Apesar de ser boa notícia, a decisão súbita do prefeito Ricardo Nunes (MDB) não deixou de causar espécie. O prazo de adesão vencera em 2022, mas foi prorrogado por seis meses, permitindo a assinatura do emedebista —que pretende obter o apoio do governador à sua reeleição em 2024.

Ainda neste ano deve ser enviado à Assembleia Legislativa o projeto de lei que detalhará o modelo da venda de parte da participação do governo paulista no capital da Sabesp, hoje de 50,3%.

A operação buscará garantir pelo menos R$ 66 bilhões em investimentos para antecipar a universalização de 2033 para 2029. Deverão ser garantidos os aportes nos municípios menores; cumpre buscar um modelo regulatório que prime por ganhos de eficiência e mantenha a modicidade tarifária.

A Sabesp já figura entre as maiores empresas de saneamento do mundo e adiante poderá se firmar como a principal plataforma de expansão de investimentos no setor, em São Paulo e outros estados. Cumpre agora assegurar o caráter democrático e transparente do processo, visando sua conclusão.

Câmeras integradas

Folha de S. Paulo

Relatório apresenta diretrizes para consolidar uso da tecnologia pelas polícias

Entre 2021 e 2023, o número de estados brasileiros com programas de câmeras corporais em suas polícias se elevou de 3 para apenas 7. Tal lentidão indica que a implementação da ferramenta exige esforço político e planejamento técnico.

Relatório elaborado por Robson Cabanas Duque, ex-gerente do programa da Polícia Militar de São Paulo, e pelo Instituto Sou da Paz mostra que as vantagens do emprego das câmeras precisam estar claras para os policiais, a fim de que haja convencimento sobre a importância da medida para o trabalho das forças de segurança.

O texto elenca diversos benefícios, como incremento da produção de prova material, redução de indicadores criminais, diminuição de denúncias e reclamações contra agentes, afirmação da cultura profissional com a diminuição do uso da força letal e aprimoramento do treinamento, entre outros.

As melhorias são atestadas por números. Em São Paulo, não somente houve redução de óbitos em decorrência de intervenção policial como a morte de PMs em serviço atingiu o menor índice dos últimos 31 anos em 2021, quando a política foi implementada no estado.

Defender o uso da tecnologia como forma de profissionalização das polícias pode ajudar a convencê-las de sua importância, evitando que haja intermitências na implementação a depender do humor político de ocasião.

Governadores, secretários e comandantes devem explicitar o compromisso com a medida. Ademais, não basta a instalação da ferramenta, é preciso acompanhamento técnico, como a criação de indicadores de avaliação e de metodologia de uso dos vídeos em treinamentos policiais.

A implantação de câmeras pelas forças policiais federais, que tem sido aventada pelo governo, poderia contribuir como exemplo. O incentivo por meio de recursos e orientação técnica aos estados é outra ação importante que está sob análise pelo Ministério da Justiça.

Apesar de não se tratar de panaceia, já que a segurança pública é tema multifatorial, as câmeras tem aprimorado o trabalho das polícias e protegido a população.

O que o relatório mostra é que a mudança da cultura interna de forças de segurança propensas à violência requer a integração da tecnologia à profissionalização da atuação policial, com convencimento, planejamento e incentivo.

Por uma PGR normal

O Estado de S. Paulo

O País espera do presidente e do Senado um procurador-geral avesso aos extremos do jacobinismo e do servilismo que têm desviado o MP da defesa do direito e da democracia

À medida que o mandato do procurador-geral da República, Augusto Aras, se aproxima do fim e as disputas palacianas fervilham nos corredores do Brasília, o Brasil cruza os dedos por um mandatário capaz de reconduzir as águas ao seu leito. A Constituição conferiu ao Ministério Público independência e prerrogativas para a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Mas as perversões da Procuradoria-Geral, ora abusando de seus poderes, ora omitindo-se de seus deveres, contribuíram não pouco para a insegurança jurídica, a polarização política e a desmoralização institucional que corroem a República.

Considere-se o 8 de Janeiro. A maior agressão ao Estado Democrático de Direito desde a redemocratização não foi um raio em céu azul, mas uma tempestade perfeita diligentemente fabricada por quatro anos no Planalto. Os ataques ao sistema eleitoral que levaram à condenação de Jair Bolsonaro pela Justiça Eleitoral começaram já em 2020. Por ocasião do 7 de Setembro de 2021, a Polícia Federal relatou indícios de uma conspirata para invadir o Supremo e o Congresso. A farsa se repetiu como tragédia em 2023.

Entrementes, Aras só tirava a cabeça do avestruz do buraco para tentar convencer a população de que as nuvens pretas no firmamento de Brasília eram mera ilusão de ótica num céu de brigadeiro. Fossem os ataques às instituições, fossem as investigações da CPI da Covid ou os indícios de corrupção na saúde e educação, tudo recebia o mesmo e monótono destino: uns “procedimentos preliminares” para cumprir tabela, logo sepultados na gaveta do procurador-geral para gozar de seu descanso eterno.

Ao indicar Aras, Bolsonaro disse que ele seria a “rainha” no xadrez de seu governo, ou seja, a peça mais poderosa na defesa do “rei” e no ataque a seus desafetos. Agora que as eleições viraram a mesa, Aras afanou-se em cortejar o novo rei.

Contraste-se essa atitude com a de Rodrigo Janot (2013-17), que no jogo de xadrez era o pombo – aquele que joga todas as peças para fora do tabuleiro. No pico da euforia lavajatista, Janot investiu-se de um figurino messiânico, como se a única missão do Ministério Público fosse purgar a política da corrupção ou, antes, purgar a República dos políticos. Para quem tem um martelo, tudo é prego, e nas mãos de Janot todo e qualquer meio – investigações imprecisas e infindáveis, delações inverossímeis, atuações midiáticas ou intromissões na esfera administrativa – era justificado por seus fins redentores. O País paga até hoje pelas denúncias ineptas e maliciosas que sabotaram a gestão de Michel Temer e lanharam a credibilidade do STF.

Ao cair das cortinas, o rei não só estava nu, mas ensandecido. A sociedade se deu conta de que seu Ministério Público fora comandado por um maníaco, não só no sentido figurado, mas literal, quando o próprio Janot confessou que entrou armado no STF para executar um ministro e estourar seus miolos.

Aras foi empossado prometendo corrigir abusos ativistas. Mas moveu-se ao outro extremo, e o resto é história. Como já dissemos neste espaço, comparando a sua gestão à de Janot: “Antes, bastava uma delação para perseguir e prender pessoas, inclusive um presidente da República. Agora, meses de trabalho do Senado, com a reunião de sérios indícios, são incapazes de mover a PGR. As duas situações, no entanto, padecem do mesmo erro: o abandono da lei. Em ambas, o processo penal foi substituído pela simples ‘convicção’, pela mera vontade – ora de condenar, ora de perdoar” (ver o editorial Os extremos do Ministério Público, de 11/2/2022).

Nem um extremo nem outro. A virtude, dizia Aristóteles, está no meio, entre vícios opostos, como a coragem entre a covardia e a temeridade. O País não precisa nem de um novo Janot nem de um novo Aras (muito menos do mesmo Aras), mas do oposto de ambos. Nem jacobinismo nem servilismo; nem antagonismo ao poder nem alinhamento a ele; nem punitivismo nem garantismo; nem histeria nem apatia; nem alarmismo nem negacionismo; nem um algoz de políticos nem o seu servo – só um servo da lei, algoz daqueles que a violam. Será pedir demais?

A desorganização das Nações Unidas

O Estado de S. Paulo

A tecnologia aproximou os humanos como nunca. Mas, com falhas estruturais agravadas pelas contingências, o órgão de governança global arrisca-se a se tornar irrelevante como nunca

O século 21 nasceu com imensos desafios existenciais: um mundo multipolarizado após a bipolaridade da guerra fria; uma população que, após crescer vertiginosamente, está se estagnando e envelhecendo; as mudanças climáticas; a quarta revolução industrial; ondas migratórias; o terrorismo e as organizações criminosas; a proliferação nuclear; a fome, a miséria, as violações dos direitos humanos; as tensões entre países ricos e pobres, democráticos e autocráticos, ocidentais e orientais.

Por quase 80 anos, a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas foi o principal fórum onde as lideranças internacionais se uniam para deliberar sobre esses e outros desafios. Paradoxalmente, quando essa união é necessária como nunca, a Assembleia de 2023 esteve esvaziada como nunca.

A ausência de quatro dos cinco líderes do Conselho de Segurança fala por si. Após invadir a Ucrânia, o russo Vladimir Putin se entrincheirou no Kremlin. Por um paradoxo aparente, num momento em que a China intensifica suas investidas diplomáticas, buscando liderar o Sul Global e reformular a ordem internacional, Xi Jinping foi também uma ausência ilustre. Mais surpreendente foi a falta, impensável há poucos anos, dos líderes da França e do Reino Unido. Só o americano Joe Biden marcou presença – de resto incontornável, dado que a Assembleia acontece em Nova York.

A crise de identidade da ONU tem raízes estruturais. “Suas estruturas mudaram pouco desde 1945. Paradoxalmente, sua tendência congênita à inclusão gerou disparidades ainda não sanadas. Cada voto dos 193 membros da Assembleia-Geral vale o mesmo – o da Índia (1,4 bilhão de pessoas) tanto quanto o de Tuvalu (12 mil)”, notou este jornal nos 75 anos da ONU, em 2020. “Suas distorções representativas, sobrecarregadas por uma burocracia exasperante, obstruem a meritocracia e a defesa dos direitos humanos contra a ilegalidade internacional, a miséria ou governos corruptos e cruéis” (ver o editorial A ONU aos 75 anos, de 24/6/2020).

O próprio Conselho de Segurança ilustra essas disfunções. Ele inclui só 8% dos membros da ONU. Os cinco permanentes com poder de veto são os mesmos que triunfaram na 2.ª Guerra, e não há representantes da América Latina, África, Oriente Médio ou Sul da Ásia.

Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para 2030 não estão passando no teste da realidade e precisam ser hierarquizados e readequados a padrões mais pragmáticos. Instituições multilaterais, como o FMI, o Banco Mundial ou a OMC, têm sua legitimidade contestada e precisam urgentemente de reformas.

A apatia da ONU e órgãos multilaterais afins é, em parte, causa e sintoma dos novos dramas que intensificaram os desafios congênitos do século 21: os impactos da crise financeira de 2008 e a necessidade de prevenir outras, assim como as sequelas da covid-19 e a necessidade de prevenir outras pandemias; a desregulação de tecnologias com inacreditável poder de transformação e destruição, como a engenharia genética ou a inteligência artificial; a proliferação dos protecionismos; a polarização e a deterioração institucional nas democracias e o recrudescimento das autocracias; e os impactos socioeconômicos de um conflito na Europa com potencial de precipitar uma terceira guerra mundial. Como o próprio secretário-geral da ONU, António Guterres, admitiu na Assembleia, o mundo mudou, mas as instituições internacionais não mantiveram o passo, potencialmente tornando-se parte do problema, e não da solução. “É reforma ou ruptura”, alertou.

Num mundo em que a tecnologia implode barreiras que separam a humanidade há milênios, um globalismo sadio – não as quimeras de um mundo sem fronteiras ou Estados nacionais que povoam os pesadelos de nacionalistas radicais ou os delírios de idealistas inconsistentes, mas o engajamento da humanidade, através da valorização e cooperação de suas nações, em interesses e obrigações comuns – é não só desejável, mas indispensável.

A ONU é, em tese, relevante como nunca. Mas se, na prática, as nações não concertarem fórmulas para rejuvenescê-la, o paradoxo é que ela caminhará para se tornar irrelevante como nunca.

A persistente inadimplência

O Estado de S. Paulo

Enquanto questões de fundo não forem enfrentadas, renegociar dívidas será enxugar gelo

As dívidas dos brasileiros com contas de energia elétrica, água, gás e telefone atingiram o patamar de 24,47% do total em agosto, segundo dados do Mapa de Inadimplência e Renegociação de Dívidas da Serasa. É o maior nível registrado em toda a série histórica do levantamento da empresa.

O resultado não chega a surpreender. Afinal, a primeira fase do programa de renegociação de dívidas lançado pelo governo, o Desenrola, teve como foco os débitos de pessoas físicas com bancos e cartões. Era até esperado, portanto, que as dívidas com serviços essenciais subissem um pouco mais nesse período.

Em apenas dois meses de Desenrola, R$ 13,2 bilhões em débitos foram renegociados, segundo balanço da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Cerca de 6 milhões de brasileiros ficaram com o nome limpo na praça e voltaram a ter acesso a crédito.

Os dados da Serasa mostram, no entanto, que reduzir o endividamento do brasileiro não é algo simples de ser resolvido. Depois de recuar por dois meses consecutivos, a inadimplência voltou a subir em agosto. Mais de 320 mil devedores ficaram com o nome sujo, ampliando o universo de inadimplentes para 71,74 milhões de pessoas.

Não seria nenhum exagero concluir, portanto, que os brasileiros estão escolhendo quais contas pagar em cada mês. Deixar de pagar faturas de água e energia implica cortes no fornecimento do serviço, mas não de forma imediata. No caso da energia elétrica, somente após 90 dias de atraso as distribuidoras podem suspender o fornecimento. Além disso, multas e juros são limitados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Sem dúvida alguma, é um cenário menos desconfortável do que aquele em que o consumidor atrasa o pagamento da fatura do cartão de crédito. No crédito rotativo, linha a que os clientes recorrem quando não conseguem pagar o valor integral da fatura, a dívida pode dobrar em apenas um ano. Segundo a Serasa, mais da metade dos consumidores inadimplentes possui três cartões de crédito ou mais.

Na guerra pública entre os bancos e as maquininhas sobre o parcelamento sem juros, até agora não há qualquer proposta para impor novas regras para o rotativo. Enquanto isso, a medida provisória que criou o Desenrola vence em 3 de outubro.

Há um projeto de lei com o mesmo teor tramitando em regime de urgência no Senado, mas o relator, Rodrigo Cunha (Podemos-AL), não prevê submeter o parecer a votação antes desse prazo. O tema requer pressa, mas o senador propôs uma reflexão bastante pertinente. “Como é que uma pessoa que recebe um salário mínimo tem um limite no cartão de crédito de R$ 12 mil?”, questionou, em entrevista à Folha.

De fato, há que pensar sobre as consequências do acesso facilitado ao crédito, modelo de negócios bastante praticado no setor. As mesmas empresas que não cobram taxas na abertura das contas nem anuidade para os cartões não hesitam em impor juros escorchantes ao primeiro tropeço do consumidor. Enquanto essas questões não forem enfrentadas com seriedade, iniciativas como o Desenrola serão o mesmo que enxugar gelo.

O novo consenso de Washington, protecionista e nacionalista

Valor Econômico

O argumento da segurança estratégica ratificou a retomada do protecionismo e da adoção de medidas de política industrial

A União Europeia (UE) lançou neste mês uma investigação sobre a importação de veículos elétricos chineses, suspeitos de se beneficiarem de apoio estatal de Pequim. Nos EUA, Donald Trump, que tenta voltar à Presidência, ameaça fazer uma nova onda de aumento de tarifas externas. Na abertura da Assembleia-Geral da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva atacou o neoliberalismo. Isso tudo indica como uma nova ordem econômica mundial está avançando com força.

Durante mais de 30 anos, a partir da década de 80, o livre comércio foi o motor da economia mundial. Abertura comercial e redução do papel do Estado na economia se tornaram princípios amplamente aceitos. Acordos comerciais se disseminaram. A Organização Mundial do Comércio foi criada para favorecer e vigiar esse processo. Protecionismo e políticas industriais viraram anátemas, apesar de nunca terem sido totalmente postos de lado.

Há alguns anos esse processo começou a andar para trás. O crescente clima de disputa entre EUA e China e a pandemia de covid-19 aceleraram esse refluxo. Mas o mal-estar era anterior. A aprovação do Brexit pelo Reino Unido, em 2016, já indicava uma insatisfação crescente. A eleição de Donald Trump nos EUA foi a coroação do discurso antiglobalista.

Esse recuo não dá sinais de perder ritmo. Pelo contrário. O presidente Joe Biden não só manteve a maioria das tarifas comerciais de Trump como também aprovou em 2022 enorme pacote de incentivo à indústria, com o objetivo declarado de trazer produção industrial de volta aos EUA.

A tensão crescente entre EUA e China, num clima de nova Guerra Fria, vem reforçando o processo de desglobalização. Afinal, um confronto estratégico é incompatível com o livre comércio. Qualquer vantagem tecnológica de um lado será recebida com um esforço do outro lado para recuperar terreno, seja na forma de protecionismo, seja com políticas industriais para favorecer a produção local.

Do mesmo modo, produtos, serviços e ativos de interesse estratégico serão cada vezes mais protegidos, para dificultar o desenvolvimento do adversário. É o que os EUA estão fazendo com a proibição de exportação de chips de alta tecnologia para a China. Do mesmo modo, a China ameaça de modo recorrente barrar a exportação de terras raras (metais de grande valor para a indústria).

A pandemia exacerbou essa percepção, já que itens como material hospitalar e vacinas se tornaram de interesse estratégico. À custa de sua população, a China não aprovou a utilização de nenhuma vacina ocidental.

A guerra na Ucrânia colocou uma grande barreira à ideia de permitir que a produção flua livremente pelo mundo. A Rússia usou o gás como arma para tentar barrar o apoio da UE à Ucrânia. A Alemanha, que havia apostado alto na energia russa barata para mover seu complexo industrial, será a única grande economia em recessão neste ano. Do mesmo modo, o Ocidente cortou a Rússia do Swift, sistema global de compensações bancárias.

O argumento da segurança estratégica ratificou a retomada do protecionismo e da adoção de medidas de política industrial, como subsídios e outros benefícios para produção local. Decoupling (descolamento), nearshoring (trazer a produção para perto de casa), friendshoring (trazer a produção para países amigos) e de-risking (reduzir riscos na produção, como produzir demais num só país ou produzir num país que pode se tornar inimigo) passaram a ser as prioridades dos governos e das empresas. Muitos temem a formação de duas cadeias de produção separadas, uma para o Ocidente e seus aliados e outra para a China e seus aliados.

Tudo isso tem sido tema de intenso debate. Num seminário em julho, o economista Larry Summers (secretário do Tesouro de Bill Clinton e assessor econômico de Barack Obama) criticou Biden por se desviar da liberalização comercial adotada por esses dois presidentes democratas e se disse “profundamente preocupado pela doutrina de nacionalismo econômico centrado na indústria que está sendo cada vez mais adotada como princípio geral em Washington”, a que ele chamou de “perigosa”.

Em resposta, Robert Reich (secretário do Trabalho no governo Clinton) escreveu (The Guardian, 29/08) que a liberalização comercial trouxe bens baratos, mas favoreceu as empresas e o setor financeiro enquanto destruía milhões de empregos e mantinha os salários estagnados nos EUA. O discurso do presidente Lula na ONU ecoou esse argumento.

Para o Brasil esse debate tem implicações importantes, pois pode afetar a inserção global do país. Lula parece simpatizar com o crescente protecionismo (reluta em avançar no acordo UE-Mercosul) e com a reabilitação de medidas de política industrial que ele sempre defendeu. Já o candidato favorito para presidir a Argentina, Javier Milei, defende uma abertura comercial unilateral e irrestrita, ecoando o discurso neoliberal.

Um novo consenso parece estar emanando de Washington, menos liberal e mais protecionista, menos globalizador e mais nacionalista. Haverá oportunidades, como a de atrair parte da produção de empresas ocidentais que pode deixar a China. Mas também haverá riscos, já que o Brasil não consegue competir com as nações mais ricas em subsídios e apoio a suas empresas.

 

 

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