Ao mostrar que não tem medo do passado, país aumentará a pressão para que outros, como os EUA, façam o mesmo
Há 50 anos, quando Augusto
Pinochet fulminou a mais longeva democracia da América
Latina, o Brasil foi o primeiro país
a reconhecer a nova junta militar do Chile.
Com milhares de civis a serem despejados no Estádio
Nacional de Santiago, a arena esportiva convertida em centro de
prisioneiros, o governo de Emílio
Garrastazu Médici despachou uma missão, sob o comando do SNI
(Sistema Nacional de Informações), para auxiliar nos
"interrogatórios".
Enquanto notícias de torturas e execuções
corriam o mundo, diplomatas brasileiros foram os principais advogados da
neófita ditadura em
foros internacionais e bilateralmente. O Brasil saltou novamente à frente ao
tentar evitar uma bancarrota chilena, oferecendo crédito subsidiado de US$ 1,8
bilhão (R$ 9 bilhões, em valores atuais). Rapidamente, virou o segundo maior
fornecedor de armas ao Chile. E dezenas de agentes da Dina —a polícia secreta
de Pinochet— receberiam treinamento em território brasileiro.
Cinco décadas após aquele 11 de setembro de
1973, documentos antes secretos do Brasil, Chile e Estados
Unidos mostram como, ao lado do governo Richard Nixon, a
ditadura brasileira foi o principal ponto de apoio externo à destruição da
democracia no Chile.
É um passado que ainda nos assombra, perpetuando-se na injustiça dos desaparecidos, chilenos e brasileiros, e no revisionismo histórico que hoje intoxica ambas as democracias. O antídoto é encarar essa história. Cabe ao Brasil reconhecer sua responsabilidade no apoio ao golpe contra Salvador Allende e ao regime de terror que o sucedeu.
Esse capítulo vergonhoso da política
externa brasileira não começou em 1973, mas três anos antes, com a eleição do
socialista Allende à Presidência. Desde o início do governo, o Brasil criou
canais secretos com militares que conspiravam, liderou uma campanha diplomática
para isolar o Chile, preparou-se para apoiar a oposição em uma guerra civil,
protegeu terroristas de extrema direita, e mais.
Paranoico, o governo Médici viu no triunfo
de Allende um precedente intolerável à América Latina —uma coalizão de
socialistas e comunistas chegara ao poder pelo voto, sem disparar um tiro. Ao
mesmo tempo, a ditadura criou o mito de que o Chile se tornara uma
"nova Cuba",
onde os milhares de exilados brasileiros que ali viviam receberiam treinamento
guerrilheiro. Pior: ao contrário da ameaça cubana, o problema não estaria à
deriva no Caribe, mas fincado na vizinhança do Cone Sul.
Médici e os militares não estavam sozinhos.
Os principais jornais brasileiros defendiam uma intervenção militar no Chile à
la Brasil em 1964. Parte da imprensa brasileira virou uma caixa de ressonância
do que hoje chamaríamos de fake news da extrema direita chilena.
Setores empresariais brasileiros —como a
Confederação Nacional das Indústrias (CNI)— apoiaram grêmios patronais
chilenos, convencidos de que o papel do empresariado na derrocada de João Goulart poderia
se repetir no Chile de Allende. Estavam certos.
Não por acaso, no momento do golpe, a
espionagem americana, a repressão brasileira e membros da recém-criada junta
chilena faziam todos referência a um tal "modelo brasileiro". Um
regime militar anticomunista, enraizado no campo do Ocidente na Guerra Fria,
capaz de obliterar a ameaça da esquerda e colocar o país nos trilhos do
progresso. A ditadura brasileira provia, a um só tempo, um exemplo —seu soft
power— e apoio político, econômico e material.
Cinquenta anos depois, o governo brasileiro
tem a oportunidade de usar seu poder em defesa da democracia. Um primeiro
gesto, tímido, já foi anunciado: a colocação de
uma placa com os nomes dos brasileiros assassinados no golpe
chileno diante da embaixada do Brasil e na Praça Brasil, em Santiago. A decisão
foi fruto da pressão de uma caravana de ex-exilados brasileiros que retornará
ao Chile para o cinquentenário.
É preciso bem mais. Os ministros da Justiça
e dos Direitos Humanos, Flávio Dino e Silvio
Almeida, que representarão o Brasil em Santiago, terão a chance de
reconhecer, sem assombros e com todas as letras, que o Estado brasileiro teve
um papel na tragédia chilena. Os documentos da ditadura brasileira sobre ações
no Chile e no Cone Sul —todos eles teoricamente públicos, mas não facilmente
acessíveis— podem ser disponibilizados digitalmente, incluindo a autoridades
que investigam casos de desaparecidos.
Ao mostrar que não tem medo de seu passado,
o Brasil assumirá um protagonismo regional no tema e aumentará a pressão para
que outros façam o mesmo. É o caso, sobretudo, dos EUA, que ainda se recusam a
liberar grande parte de um vasto acervo
documental da época, inclusive sobre suas vergonhosas ações no
Chile.
Meio século nos separa do golpe chileno,
mas a maneira como lidamos com ele tem consequências reais para nossas
democracias hoje.
*Mestre em políticas públicas pela Universidade Harvard, é autor de “O Brasil contra a Democracia: a Ditadura Brasileira, o Golpe no Chile e a Guerra Fria no Cone Sul”
Excelente! Novamente desmistifica os EUA, falso líder global da democracia...
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