segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sergio Lamucci - O ‘conflito fiscal monetário’ continua em cena

Valor Econômico

O grau de incerteza fiscal não voltou ao nível observado antes do arcabouço, mas a alta recente dos juros reais de longo prazo mostra que a nova regra não é vista como uma solução estrutural

As incertezas sobre as contas públicas aumentaram nas últimas semanas. A avaliação é que a proposta de Orçamento de 2024 tem previsões muito otimistas de receitas e, em alguns casos, despesas subestimadas, como as relacionadas aos gastos com aposentadorias e pensões. Para os especialistas em contas públicas, tem ficado ainda mais distante o cumprimento da meta do governo de zerar o déficit primário no ano que vem. Com isso, os juros reais (descontada a inflação) de longo prazo voltaram a subir, mesmo num cenário em que a aposta dominante é que a taxa Selic seguirá em queda até o fim de 2023 e ao longo de 2024.

Na sexta-feira, as taxas dos títulos do Tesouro corrigidos pelo IPCA com vencimento em 2045 e 2050 fecharam na casa de 5,75% ao ano, depois de bater em 5,4% em 11 de agosto, na mínima do ano. São juros reais inferiores aos 6,5% a 6,6% que chegaram a ser registrados na primeira quinzena de março, antes da apresentação do novo arcabouço fiscal, mas uma taxa de 5,75%, descontada a inflação, é muito elevada, não sendo sustentável no longo prazo. Ela impõe um custo que exige superávits primários muito altos para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB, além de afetar o ritmo de crescimento, como lembra sempre o ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore.

O grau de incerteza fiscal não voltou ao nível observado antes da apresentação e aprovação do arcabouço fiscal, mas a alta recente dos juros reais de longo prazo mostra que a nova regra não é vista como uma solução estrutural para as contas públicas. Vale dizer que o aumento das taxas dos títulos corrigidos pela inflação também foi influenciado por um cenário externo mais adverso, com a avaliação de que os juros ficarão mais altos por mais tempo nos países avançados. Ainda assim, as dúvidas recentes sobre o Orçamento de 2024 têm peso para a elevação das taxas reais de longo prazo no país.

A maior incerteza em relação ao Orçamento é quanto à capacidade de o governo conseguir receitas adicionais de R$ 168,5 bilhões. Sem elas, a administração federal não será capaz de zerar o déficit do resultado primário (que exclui gastos com juros) da União. Segundo relatório da Instituição Fiscal Independente (IFI) divulgado na semana passada, o projeto de lei orçamentária do ano que vem “prevê arrecadar R$ 69,7 bilhões com medidas em tramitação no Legislativo mais R$ 97,9 bilhões com o retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), matéria que aguarda sanção presidencial”. Para a IFI, porém, o governo deverá conseguir apenas R$ 51,9 bilhões com essas iniciativas, e não R$ 168,5 bilhões.

Em relatório, a A.C. Pastore & Associados, a consultoria de Pastore, afirma que as receitas necessárias para cumprir as metas fiscais do governo central nos próximos três anos só seriam atingidas com aumento de alíquotas de impostos já existentes - algo que não está no radar e nem seria viável politicamente. Nesse cenário, a expectativa da consultoria é que o país tenha déficits primários em 2024, 2025 e 2026, o que aumenta a taxa neutra de juros - aquela que permite a economia crescer sem pressões inflacionárias. Os analistas avaliam que essa taxa subiu nos últimos anos. Em junho, o Banco Central (BC), por exemplo, elevou a sua estimativa para o indicador de 4% para 4,5%, descontada a inflação.

Além do problema das receitas, alguns analistas têm apontado que algumas despesas para o ano que vem estão subdimensionadas. Pesquisador do Insper, Marcos Mendes avalia que os gastos com benefícios previdenciários podem estar subestimados em R$ 16 bilhões, como mostrou reportagem do Valor de Jéssica Sant’Ana. Isso aumenta o risco de o resultado primário de 2024 ficar mais distante da meta de déficit zero. Além de projeções de receitas irrealistas, as estimativas para algumas despesas parecem subestimadas. Para completar, o resultado fiscal deste ano tem mostrado queda da receita e alta forte das despesas.

Para a A.C. Pastore, com as dificuldades para obter a arrecadação necessária para atingir as metas de resultado primário, “fica claro que em 2024, 2025 e 2026 a política fiscal continuará sendo expansionista”. O governo não “abdica” de manter o crescimento dos gastos não financeiros acima da inflação, por considerar que o aumento de despesas é “o que promove o crescimento econômico”, segundo a consultoria. Como a alta da demanda do governo expande a demanda total da economia, a taxa neutra de juros será mais elevada, segundo a A.C. Pastore. “Ou seja, ao expandir a demanda agregada a política fiscal expansionista leva, caso o Banco Central mantenha seu compromisso em atingir o centro da meta em 2025 [de 3%], a um ‘crowding out’ da demanda do setor privado, com maior efeito naquelas componentes da demanda do setor privado mais sensíveis à taxa de juros, como são a demanda de bens duráveis de consumo e a formação bruta de capital fixo [medida do que se investe em máquinas e equipamentos, construção civil e inovação].” Isso significa que uma demanda mais forte do setor público toma o lugar na economia da demanda do setor privado. O mais preocupante é o impacto sobre o investimento, que segue baixo no Brasil e precisa crescer para a economia conseguir avançar a taxas mais elevadas de modo sustentado.

Se o BC passar a trabalhar com uma “meta implícita” de inflação superior ao centro da meta, é possível que reduza mais os juros, diz a A.C. Pastore, mas à custa de um IPCA mais elevado, superior aos 3%. Com isso, haveria a continuidade nos próximos anos do “conflito fiscal monetário”, cuja existência o ex-presidente do BC tem apontado reiteradamente.

O arcabouço trouxe algum norte para as contas públicas, afastando o risco de um cenário de ruptura fiscal num prazo mais curto. No entanto, a dependência do novo regime de receitas que poderão não se concretizar e a possibilidade de que algumas despesas estejam subestimadas, com uma regra que prevê expansão dos gastos sempre acima da inflação, apontam para uma coleção de fragilidades, que tornam mais provável o quadro traçado pela A.C. Pastore para os próximos anos.

 

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