terça-feira, 10 de outubro de 2023

Andrea Jubé - O insuportável peso das guerras

Valor Econômico

Há mais conflitos armados em andamento, agravando a crise dos refugiados e turbinando as estatísticas de mortes em combates

Durou poucos meses a Primavera de Praga, o respiro democrático de 1968, quando a população saiu às ruas para protestar contra o regime autoritário da então União Soviética - da qual a Tchecoslováquia fazia parte - e alçou conquistas como liberdade de expressão e o fim da censura à imprensa. Logo tanques russos invadiram a capital, Moscou retomou o governo e radicalizou a repressão que se estendeu por mais de 20 anos.

O conflito tcheco é pano de fundo do romance “A insustentável leveza do ser”, de Milan Kundera, morto em julho. Na obra, a eclosão do embate aprofunda a crise existencial dos personagens, impondo a reflexão sobre o impacto da guerra nos destinos humanos.

Em um ensaio sobre a leveza, o escritor Italo Calvino, morto em 1985, referiu-se ao livro de Kundera como a “constatação amarga do inelutável peso de viver”. Convidado a ministrar um ciclo de conferências na Universidade de Harvard, Calvino elegeu a leveza como um dos valores - literários e humanos - a serem preservados para o século XXI.

Ao se deparar com uma realidade opaca, apática e perversa, Calvino afirmou que o mundo inteiro parecia transformado em pedra, como se “ninguém pudesse escapar ao olhar inexorável da Medusa”. Lembrou que o único herói capaz de decepar a cabeça da Medusa foi Perseu, que voava com sandálias aladas, e sustentava-se sobre o que há de mais leve, “as nuvens e o vento”.

No mesmo texto, Calvino observou que, sob vários aspectos, a época que serve de pano de fundo à peça “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, “não difere muito das nossas cidades ensanguentadas, de disputas tão violentas e insensatas quanto as dos Capuleto e Montecchio” - alusão às famílias adversárias, cuja guerra particular é obstáculo ao amor dos protagonistas.

Para Calvino, a guerra simboliza o peso de viver, sobretudo ao interromper abruptamente os destinos de inocentes, em especial de crianças. Peso que desabou no Oriente Médio, a partir do ataque terrorista do Hamas contra civis israelenses no sábado, e que motivou a reação de Israel, e um novo capítulo da guerra sangrenta entre os dois povos.

 

Há um ano e meio, a Rússia invadiu a Ucrânia, ocupando pontos de fronteira no país europeu, e lançando bombas sobre as principais cidades ao redor do país, dando início a uma guerra que até a semana passada era o principal foco de atenções do palco internacional. Agora divide os sombrios holofotes com o conflito no Oriente Médio.

Há mais conflitos armados em andamento, agravando a crise dos refugiados e turbinando as estatísticas de mortes em combates: Síria, Iêmen, Etiópia, Afeganistâo, Haiti e Mianmar, além dos grupos jihadistas em atuação em vários países da África.

O mundo está sobrecarregado de sangue e sofrimento. Não se pode afirmar, na definição exata do termo, que o Brasil encontra-se em guerra. Num cenário em que confrontos entre a polícia e os criminosos, ou entre facções criminosas ceifam vidas com balas perdidas, impedem o funcionamento de escolas, restringem a liberdade de ir e vir de moradores das regiões atingidas, o que podemos dizer é que regiões do país vivem em estado de guerra.

Nesta segunda-feira, as forças de segurança no Rio de Janeiro montaram uma verdadeira operação bélica, mobilizando mil agentes das polícias Militar e Civil, em ações simultâneas no Complexo da Maré, na Vila Cruzeiro e na Cidade de Deus. O alvo era a facção criminosa a quem se atribui a morte de três médicos em um quiosque em área nobre da capital fluminense na semana passada.

O poder bélico dos criminosos é tão impressionante que disparos de fuzis atingiram dois helicópteros, que tiveram de fazer pousos de emergência. Na verdade, estas aeronaves são o símbolo mais evidente do estado de guerra do Rio de Janeiro. Vejam que o seguro das aeronaves tem “cláusulas de guerra”, ou seja, condições especiais mais comuns em países em conflito, como a Rússia e a Ucrânia, que contemplam reparos em casos de acidentes em conflitos armados.

Se o Brasil não declarou guerra contra um oponente, a Natureza declarou guerra ao país, em meio ao aquecimento global. A região da Floresta Amazônica enfrenta uma seca que pode bater recordes, com rios em níveis mínimos, mortes de peixes e botos, população ribeirinha com carência de itens básicos. Dezenas de municípios do Amazonas estão em situação de emergência. Há risco desta estiagem superar a megasseca de 2005, quando o Estado agonizou com falta de alimentos, água, combustível e energia.

Se o Norte sofre com a estiagem, a Região Sul está praticamente submersa. Há um mês, um ciclone extratropical causou dezenas de mortes e devastou cidades no Rio Grande do Sul, destruindo comércios e obras de infraestrutura. Até hoje, fortes chuvas assolam a região.

A sucessão de guerras e conflitos encurrala os cidadãos, dissemina o terror, e cobra saída premente para a paz.

Se escolhesse um símbolo para saudar o novo milênio, que não viu chegar, Calvino escolheria a leveza. “Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço”. Mas como fazer, sem as sandálias aladas de Perseu?

 

4 comentários:

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  2. Atente-se para um fato.
    =》Não há no mundo sequer uma democracia em guerra contra outra democracia.
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    1. Estou tentando lembrar de alguma vez nas últimas décadas, após as democracia se consolidaram, de ter havido uma guerra entre duas democracias. Não me recordo de nenhuma.

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  3. No Norte do Brasil, a colunista poderia ter destacado as centenas de mortes em Manaus e arredores por falta de oxigênio, durante a pandemia de Covid no recente DESgoverno Bolsonaro, e o genocídio ianomâmi no finas deste DESgoverno, quando o genocida abandonou os índios à própria sorte, levando à morte, descontrole de doenças e fome generalizada de milhares de índios, e levando o STF a ter que OBRIGAR o governo federal a agir, situação que escandalizou o mundo inteiro quando o governo Lula começou a reverter a situação e a mídia se conscientizou dos meses de abandono no final do DESgoverno genocida de Bolsonaro.

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